A maior parte da água utilizada pela indústria, agricultura e pelo consumidor brasileiro em geral tem suas nascentes em áreas naturais protegidas. Muitas são unidades de conservação, que prestam esse serviço à sociedade, mas recorrentemente contam os centavos para se manter. Um estudo recém concluído da organização Conseração Estratégica (CSF Brasil), aplicado ao Parque Estadual dos Três Picos, na região Serrana do Rio de Janeiro, defende uma mudança radical na forma como isso é administrado.
O estudo, financiado pelo Fundo de Parcerias para Ecossistemas Críticos, propõe uma metodologia para a regulamentação de artigos da lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc) que prevêem a contribuição financeira de usuários de água (tanto para abastecimento, quanto para produção de energia elétrica) na criação e implementação das unidades de conservação que protegem mananciais. A cobrança é baseada no princípio do “protetor-recebedor”, ou seja, quem protege essas áreas recebe pelo serviço ambiental prestado. No caso, as unidades de conservação. Os resultados da pesquisa serão divulgados na próxima edição da revista científica Megadiversidade.
A idéia é estabelecer uma espécie de cobrança diferente da já exercida em algumas bacias hidrográficas brasileiras, como é o caso da bacia do Rio Paraíba do Sul (que abastece parte dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais) e a bacia Piracicaba, Capivari e Jundiaí (SP). Nelas, o princípio aplicado é o do poluidor ou usuário pagador. Quer dizer, paga quem polui e quem usa.
Esse é o princípio estabelecido pela Lei 9.433, do Plano Nacional de Recursos Hídricos (PNHR). O dinheiro arrecadado vai em parte (7,5%) para o custeio administrativo dos Comitês de gerenciamento das bacias e para melhorar as condições do monitoramento realizado. O bolo maior (92,5%) é investido em projetos, estudos e obras envolvendo a conservação do recurso, como combate à erosão e construção de estações de tratamento de esgoto. Como mostrou O Eco em maio passado, parece que até agora a cobrança tem dado frutos. A idéia da CSF é promover uma contribuição que complemente a já estabelecida. Além de pagar pelo uso da água, o usuário contribui com a manutenção do agente responsável pela sua conservação.
Experiência inédita
Segundo Marcos Amend, um dos autores do estudo e diretor executivo da CSF, a cobrança tem como objetivo mudanças no comportamento dos usuários (no sentido de estimular uma maior eficiência no uso do recurso, com melhorias técnicas) e gerar arrecadação suficiente para resolver os problemas de degradação ambiental das bacias, em geral não totalmente garantida, diz ele, pela cobrança por uso e poluição. Ao mesmo tempo, as unidades de conservação são um universo limitado e oferecem uma oportunidade legal a ser aproveitada. “Resolvemos encaixar a cobrança por proteção na Lei do Snuc, que seria uma tarefa mais local e de negociação mais simples do que se utilizássemos o PNRH”, diz Amend.
Tal experiência nunca foi feita no Brasil. Com o estudo pronto, a primeira unidade de conservação a ter parte de seus gastos financiada pelos usuários da água que protege pode ser o Parque Estadual de Três Picos (PETP). O parque abrange 46.350 hectares dos municípios de Cachoeiras de Macacu, Silva Jardim, Guapimirim, Nova Friburgo e Teresópolis, na região serrana do Rio. Sua criação, em 2002, correspondeu a um aumento de 75% na área protegida por parques e reservas no estado. Desde o início, os pesquisadores receberam apoio da administração, que se propôs a adotar a metodologia desenvolvida. Esse foi um dos motivos porque o PETP foi escolhido para o estudo, assim como a existência de consumidores com capacidade de pagamento, custos acessíveis de negociação (são relativamente poucos os usuários da bacia que precisarão ser convencidos de pagar a contribuição) e informações disponíveis sobre a região.
A pesquisa da CSF se restringiu a apenas uma bacia, a Guapi-Macacu, composta principalmente pelos rios Macacu e Guapiaçu, ambos com nascente em Três Picos. A água da bacia é captada em vários pontos de seu percurso e utilizada para diversas finalidades. A empresa de bebidas Schincariol, por exemplo, seria um dos usuários que contribuiriam para a manutenção do PETP, assim como a Cedae, que capta sete metros cúbicos por segundo de água no Canal de Imunana – que interliga o rio Macacu (depois de sua confluência com o Guapiaçu) e o Guapimirim – e abastece mais de 1,6 milhão de habitantes.
Cálculos
“Assim como vem acontecendo nos casos de cobrança pelo uso, a Cedae pode ou não repassar os novos custos ao consumidor final”, diz o oceanógrafo Wilson Cabral de Sousa, outro que assina o estudo. Segundo o engenheiro Francisco José Lobato, integrante da Comissão Nacional de Recursos Hídricos, em geral as concessionárias não têm optado por repassar o aumento de gastos onde a cobrança já é realidade. “Apenas a mineira COPASA, entre as que já pagam pela captação, destaca na conta de seus clientes essa parcela, relativa a 2% do valor total cobrado pelo serviço de abastecimento”, diz ele.
O cálculo proposto pelos pesquisadores da CSF parte da quantia utilizada pelo parque na manutenção e proteção dos recursos hídricos, como folha de pagamentos (só a parcela de tempo empregado pelos funcionários em tarefas de proteção da área), recursos para regularização fundiária e compra de equipamentos. No caso do PETP, a soma resultou em pouco mais de 635 mil reais por ano. A seguir, determinou-se a contribuição do parque para o fluxo hídrico em diferentes pontos de captação. Dividiu-se, então, aquela soma entre os usuários, levando em conta o grau de contribuição, além de outros fatores econômicos, como elasticidade de cada setor no uso da água (o nível de reação deles à variação de preço).
O PETP é mantido hoje, em boa parte, com o dinheiro recebido pela compensação ambiental paga no licenciamento de uma indústria termelétrica, a TermoRio, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Esses recursos só entrarão até 2008. Depois disso, segundo o estudo, o parque vai precisar encontrar uma nova fonte para se manter, uma vez que o dinheiro repassado pelo governo é bastante limitado. Para ser implantada, a cobrança proposta pela CSF precisa passar ainda pelo aval do Instituto Estadual de Florestas (IEF) do Rio de Janeiro – órgão a que está submetida a administração do PETP – e, em seguida, ser negociada com os usuários.
Leia também
COP da Desertificação avança em financiamento, mas não consegue mecanismo contra secas
Reunião não teve acordo por arcabouço global e vinculante de medidas contra secas; participação de indígenas e financiamento bilionário a 80 países vulneráveis a secas foram aprovados →
Refinaria da Petrobras funciona há 40 dias sem licença para operação comercial
Inea diz que usina de processamento de gás natural (UPGN) no antigo Comperj ainda se encontra na fase de pré-operação, diferentemente do que anunciou a empresa →
Trilha que percorre os antigos caminhos dos Incas une história, conservação e arqueologia
Com 30 mil km que ligam seis países, a grande Rota dos Incas, ou Qapac Ñan, rememora um passado que ainda está presente na paisagem e cultura local →