Reportagens

Muriquis perdem aliado

Ambientalista que ajudou a criar a reserva que protege o muriqui-do-norte em Minas Gerais morreu atropelado junto com a mulher. Denúncias de desmatamento podem ter motivado o crime.

Aline Ribeiro ·
12 de outubro de 2006 · 18 anos atrás

Uma força-tarefa investiga a morte do ambientalista Eduardo Marcelino Ventura Veado, 46, e de sua mulher, a professora Simone Furtini Abras, 41. O casal foi atropelado ao anoitecer do dia 5 de outubro na rodovia MG-474, entre Ipanema e Pocrane, no Vale do Rio Doce, Minas Gerais. Um motorista em uma picape branca os atingiu pelas costas e não prestou socorro. Suspeita-se de que o crime tenha sido intencional porque Veado recebeu ameaças de morte por denunciar desmatamento ilegal em reservas florestais na região. Nessa matas mineiras vive o muriqui-do-norte (Brachyteles hypoxanthus), maior primata das Américas que nos últimas duas décadas Veado ajudou a preservar.

A equipe do Departamento de Investigações da Polícia Civil de Minas Gerais, formada por um delegado e dois agentes, além de peritos do Instituto de Criminalística, seguiu para Ipanema na noite da última quarta-feira para investigar o crime. A pedido de Nilmário Miranda, ex-secretário nacional de Direitos Humanos e presidente do PT no estado, a Polícia Federal também entrou no caso.

Segundo o assessor da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH), Olmar Klich, não está descartada a possibilidade de execução. “O que reforça essa linha de investigação é o fato de o carro ter deixado a pista e pegado o casal na contramão. Além disso, ele recebeu ameaças de fazendeiros no passado”, afirma o assessor, que também é encarregado de acompanhar as investigações do assassinato da missionária Dorothy Stang, no Pará. Apesar de trabalharem com a hipótese de crime encomendado, ele diz que dois fatos não sustentam essa suspeita. “O primeiro é que as ameaças registradas ocorreram há cerca de três anos. Depois, o veículo não passou por cima do casal e nem bateu de frente”, diz.

Veado era chefe-adjunto de Meio Ambiente e coordenador da Defesa Civil da Prefeitura de Ipanema. Ele se mudou para a região em 1985 e durante 18 anos dirigiu a Estação Biológica de Caratinga, principal refúgio da maior população conhecida do muriqui-do-norte. A área de proteção de 900 hectares foi criada graças a um acordo firmado entre Veado e o falecido fazendeiro Feliciano Abdalla, que concordou em ceder grande parte da fazenda Montes Claros para a realização de pesquisas com o primata.

Quando chegou à reserva, Veado trabalhou com a bióloga americana Karen Strier – que até hoje desenvolve projetos de pesquisa na área voltados para a preservação dos macacos. “Eduardo dedicou sua vida profissional para cuidar da mata e dos muriquis da Fazenda Montes Claros. Suas contribuições foram significantes para manter a infra-estrutura necessária e ótima equipe de pesquisadores na estação. Além disso, ele foi essencial para divulgar a importância deste lugar. Ele gostava muito do seu Feliciano e participou da decisão de se transformar aquelas matas em RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural). Nos aproximamos muito ao longo dos anos, fomos amigos e companheiros na conservação. Ele faz parte da história dos muriquis na reserva e da minha vida no Brasil”, diz Karen.

Veado também era um dos responsáveis pela nova fase do movimento conservacionista mineiro, criado pelos professores Célio Valle e Ney Carnevalli, ambos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), além de Gustavo Fonseca, Russel Mittermeier e Anthony Rylands, da Conservação Internacional, na década de 80. Nos últimos tempos, trabalhava em um plano de recuperação da mata atlântica na região para criar corredores ecológicos entre os fragmentos de floresta remanescentes.

Investigação

Segundo a perícia, Veado caminhava atrás e Simone na frente. O corpo dele foi jogado a 15 metros da pista e o dela numa cerca. Além disso, verificou-se que as peças do veículo destruídas durante o acidente são da parte lateral do automóvel, indício de que o motorista não tinha a intenção de atropelar as vítimas. “Ele pode ter tentado fazer a curva reta para controlar o carro”, especula Klich. Pelas pistas, o carro estava desgovernado e não houve tentativa de freada ou cavalo de pau.

O delegado titular de Ipanema, Nilson Belmiro de Oliveira, informa que o laudo da perícia deve sair nos próximos dias. “Já temos o ano e o modelo do veículo. Não vamos divulgar para não atrapalhar as investigações. Mas as buscas nas concessionárias estão sendo feitas.” De acordo com ele, o fato de o carro ter quase caído no barranco depois do acidente é um indício de que o crime não foi premeditado. “Ninguém arriscaria a vida assim”.

Sobre o fato de o motorista não ter prestado socorro às vítimas, Oliveira esclarece. “Isso não é suficiente para dizer que foi intencional. Pessoas fogem do local do crime por diversos motivos: por desespero, por exemplo. É bastante comum acontecer. Mas, na maioria das vezes, se apresentam à polícia depois. Isso ainda pode acontecer. Além do mais, a apresentação pode estar prejudicada pelo alvoroço que se criou em cima do caso”.

Acusações

Boletins de Ocorrência registrados em 2003 mostram que Veado recebeu ameaças de morte no passado, quando se desentendeu com um dos filhos do fazendeiro Feliciano Abdalla. O motivo da briga foi a construção de uma cerca que dividia a área de preservação do pasto onde o herdeiro do fazendeiro colocava seu gado. “Meu tio fez uma cerca com uma madeira irregular. Não era de dentro da mata, mas foi retirada da zona de amortecimento que fica ao redor da reserva. Qualquer coisa que é feita nessa área tem de ser comunicado ao estado. Meu tio não comunicou e foi multado. Na época, achou que o Eduardo tivesse denunciado e falou umas bobagens”, conta Abdalla neto.

Depois do ocorrido, Veado teve de deixar a administração da Estação Biológica de Caratinga, transição que já estava sendo planejada antes do episódio. “Apesar de não ter fundamento, acho que a família tem todo o direito de investigar. É compreensível, faz parte da cicatrização da ferida. Para nós, posso dizer que Eduardo vai fazer falta. Temos muito respeito por ele, um companheiro de luta pela preservação das matas e parceiro importante também na criação de corredores ecológicos que ajudariam na preservação do muriqui”, afirma Abdalla Neto.

O atual diretor da estação, Antônio Bragança, era amigo de Veado e conversou com o ambientalista pouco antes do acidente. “Ele estava super feliz, empolgado com um monte de projetos para o futuro. Não comentou nada sobre ameaças, mesmo porque não era aquele tipo eco-chato que fica denunciando as pessoas. Tenho 100% de certeza que foi uma fatalidade. Ele não tinha inimigos, era querido por toda a cidade.” Sobre a briga com o filho de Feliciano Abdalla, Bragança diz que o desentendimento teria cessado há muito tempo. “Ele (o fazendeiro) sempre me falava para levar o Eduardo lá, para acabar com essa rixa”, diz.

A família do casal desconfia. Segundo Alexandre Veado, irmão do ambientalista, esta e outras ameaças estão registradas em ata de uma reunião da Associação Pró-Primata Atlântico que ocorreu há menos de dois meses. “Ele relatou toda a história da Estação Biológica de Caratinga, inclusive as brigas, e entregou o documento para parentes e amigos há menos de 15 dias. As picuinhas eram diárias e os fazendeiros não queriam ele aqui. Fui até o local do acidente e não vi marca nenhuma de freio. A visibilidade do local é perfeita. O que queremos é saber exatamente quem está por trás disso.”

O irmão de Simone, Michael Furtini Abras, reforça que a ata incrimina mais de uma pessoa. “Que o clima ficou ruim desde que seu Feliciano morreu [em 2000, aos 92 anos], é claro. Não podemos dizer quem foi, mas juntando as peças do quebra-cabeça dá para ver que tudo indica para isso.”O documento, segundo o delegado de Ipanema, ainda não foi apresentado pelos familiares.

Na época do crime, estavam acampados na cidade ciganos que tinham picapes brancas como a envolvida no acidente. “A polícia foi até o local e o automóvel suspeito não estava mais lá. Um dia depois, retornou e o grupo tinha ido embora. Nenhuma possibilidade será descartada”, enfatiza Olmar Klich.

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