Reportagens

Benefício indesejado

Transformação de metano em energia limpa não agrada moradores do entorno de aterro em São Paulo. Apesar dos lucros ambientais, comunidade considera projeto insustentável e ilegal.

Aline Ribeiro ·
31 de outubro de 2006 · 18 anos atrás

Em operação desde 1979, o aterro Bandeirantes, destino de quase metade dos resíduos sólidos produzidos pela população de São Paulo, recebe todos os dias cerca de seis mil toneladas de lixo. Situado no entorno do bairro Perus, extremo noroeste da capital, o espaço com área equivalente a 150 campos de futebol ganhou nova utilidade no início deste ano: gera energia limpa a partir do gás metano liberado pelo lixo. O processo evita o lançamento do gás na atmosfera, contribui para a redução do efeito estufa e gera créditos de carbono que serão negociados no mercado mundial. Mesmo com predicados ambientais para ninguém botar defeito, o projeto de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) desagrada os vizinhos do aterro. Não que sejam contrários à transformação de poluentes em energia. O que eles não querem é o aterro funcionando a todo vapor ao lado de suas casas.

Segundo os moradores, o aterro provoca mau cheiro, favorece a criação de vetores de doença, promove a degradação ambiental urbana e aumenta o tráfego de veículos pesados na região. Recentemente, a população resolveu botar a boca no trombone. “A Loga (consórcio que tem concessão para cuidar do lixo em São Paulo) tinha prometido fechar até 2006. Agora vem dizer que não vai ser mais este ano. Queremos um plano de encerramento que mostre quando vão parar e o que vai ser do futuro da área”, diz Paulo Rodrigues, da Associação Comunitária de Perus. O Departamento de Limpeza Urbana (Limpurb), órgão municipal que gerencia os serviços de limpeza na capital, informa que não tem previsão para finalizar o plano de encerramento. E assegura que o aterro tem capacidade para funcionar até agosto do ano que vem. Já a Loga diz que toma todas as medidas para a preservação e manutenção da área.

Na tentativa de fechar o aterro, os moradores do bairro Perus entraram com representação junto ao Ministério Público Federal em São Paulo questionando o projeto de MDL do Bandeirantes. Fique claro – mais uma vez – que eles não são contra a geração de energia limpa a partir do metano. Mas querem atingir seu objetivo a todo custo, nem que tenham de atirar para todos os lados. “Vamos atacar em todas as frentes, para verem que sabemos quais são nossos direitos”, enfatiza Rodrigues. A Associação Comunitária alega que o projeto foi validado e aprovado sem cumprir requisitos exigidos pelo Protocolo de Quioto, como a sustentabilidade da área onde é implementado. “O MDL não visa a redução dos gases de efeito estufa a qualquer custo. Em troca da geração de créditos de carbono, o projeto dever contribuir com o desenvolvimento sustentável do país que o hospeda. Portanto, o projeto e a atividade que o sustenta devem trazer benefícios à população do entorno. E não é isso que acontece”, diz a advogada Daniela Stump, do escritório Pinheiro Pedro Advogados, que representa a associação.

Os moradores apontam que o projeto de MDL não cumpre a legislação brasileira, uma vez que o aterro funciona com Licença a Título Precário. Isso não o torna irregular, mas atesta que tem pendências ambientais. “O aterro não recebeu licença definitiva porque a Secretaria de Meio Ambiente solicitou no passado a revegetação de um dos lados da área e essa ainda não foi feita”, justifica Mauro Kazuo Sato, gerente da Agência Ambiental de Santana, regional da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb) responsável pela fiscalização do aterro. Ele explica que, como um trecho do Rodoanel passa hoje pelo local onde a barreira vegetal teria de ser implantada, a exigência perdeu o sentido. “Estamos esperando uma posição da secretaria sobre a necessidade da revegetação. Se até o próximo dia 15 de novembro, quando a licença vence novamente, não tivermos uma resposta, teremos de renová-la.”

Outras pendências

O aterro Bandeirantes, segundo a associação, é alvo de polêmica desde 1993, quando o Ministério Público Estadual abriu inquérito civil para a averiguação de irregularidades ambientais no local. De acordo com o procedimento, ainda não concluído, o aterro “apresenta riscos não devidamente avaliados e controlados, e possui compensações ambientais pendentes de realização. Nem mesmo o Termo de Compromisso firmado contribuiu para a solução definitiva dos problemas”. Baseando-se também nessa pendência, os moradores consideram que o projeto de MDL está em desacordo com a legislação brasileira.

A legalidade das atividades de transformação de metano em energia está sendo avaliada pelo Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo – o que não significa que o órgão tenha aberto uma ação civil pública nem mesmo instaurado um inquérito civil. “Fizemos alguns despachos pedindo informações para as partes. Não está claro ainda qual a vinculação da usina com o aterro e até que ponto a possível irregularidade de um inviabiliza o outro. A notícia que temos é de que a termoelétrica está funcionando com licença”, informa a procuradora da República do MPF, Ana Cristina Bandeira Lins.

A Biogás, que tem a concessão para explorar o metano do aterro por 21 anos, reforça que a Licença de Operação da empresa é válida até 2008. “Nosso projeto foi auditado por duas empresas credenciadas pela ONU. Quem diz que estamos irregulares está mal informado e sendo usado politicamente”, defende Antonio Carlos Delbim, diretor técnico da Biogás. “Eles estão misturando as duas coisas. Esse [o MDL] é um projeto de mitigação do aterro. Cumprimos a legislação e ainda vamos investir no bairro”, diz, ao lembrar que parte dos recursos provenientes da venda de créditos de carbono deve ser revertida em melhorias para o entorno do local.

Segundo a Associação Comunitária de Perus, os moradores não foram, “em momento algum”, ouvidos a respeito da extração do biogás no aterro. Isso agrediria a Resolução n° 1 (de 11 de setembro de 2003) da Comissão Interministerial de Mudança Global do Clima, que estabelece critérios para a aprovação de projetos de MDL implementados no Brasil, entre eles que as comunidades atingidas sejam consultadas. “Esse projeto é um dos melhores do Brasil. Não faz sentido que os moradores reprovem, até porque gera receita para o bairro e empregos. Eu estive pessoalmente lá e vi que funciona muito bem”, destaca José Domingos Gonzalez Miguez, coordenador geral de Mudanças Globais de Clima e secretário executivo da Comissão. Ele lembra que o MDL do Bandeirantes é “um projeto de ponta”, com capacidade para gerar 170 mil megawatts-hora de energia elétrica – o suficiente para abastecer uma cidade de 400 mil habitantes.

Para a química Christianne Maroun, especialista em MDL do ICF International, não faz sentido cancelar um projeto que já está funcionando. “A Comissão que aprova essas atividades é extremamente séria. Eles pedem toda a documentação que comprova a regularidade. Isso significa que, no momento da análise, o projeto estava de acordo.” Ela acrescenta que, se o problema é a ilegalidade do aterro, esse tem de ser resolvido junto aos órgãos ambientais responsáveis. “São coisas distintas. Se o aterro não cumpre a legislação, as autoridades ambientais precisam ser acionadas para ajustar sua conduta.”

A economista Ana Claudia Nioac de Salles, doutoranda pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também acredita que o rigor da Comissão não permitiria a aprovação de um projeto em desacordo com a lei. “Casos como esse sempre abrem precedentes para outros, mas, para se sustentarem, precisam de justificativas bastante embasadas.” Na opinião de Toni Nelson, originadora de Projetos de Aterros da consultoria EcoSecurities, por ser isolado, o caso do Bandeirantes não deve influenciar no surgimento de outros projetos de MDL. “É uma situação única que não terá impactos em outros aterros. Esse tipo de conflitos é bastante incomum.”

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