Carnívora, caçadora de espreita, pequena e espinhenta, a traíra goza de má fama. Por suas características, virou até xingamento para designar gente que se enquadra nessas conotações. Não bastassem essas metáforas, a ciência acaba de comprovar haver traíras iguais que se apresentam com nomes diferentes. A pergunta não cala: ter dois nomes é “coisa de traíra”?
No caso, não. De acordo com o zoólogo George Mattox, o duplo batizado da espécie Hoplias aimara (foto) – ou Hoplias macrophthalmus – foi inocente. H. aimara foi descrita em 1846 por Valenciennes, e H. macrophthalmus em 1907, por Pellegrin, ambos pesquisadores franceses do grupo dos grandes naturalistas europeus responsáveis por descrever as ricas fauna e flora recém-descobertas no Novo Mundo.
“Naquela época o conhecimento sobre a diversidade taxonômica e morfológica era limitado e boa parte das descrições originais de espécies era sucinta, pouco detalhada e um tanto quanto vaga. As técnicas de conservação do material, bem como a tecnologia disponível para estudá-lo, eram bem diferentes e restritivas se comparadas ao que temos hoje. Além disso, a comunicação entre os pesquisadores era muito mais lenta ou mesmo inexistente, enquanto hoje é possível encontrar fotografias do material de museus na Internet e corresponder-se com os curadores rapidamente por e-mails, trocando material via correio, por exemplo”, explica o pesquisador do Departamento de Zoologia do Instituto de Biociências da USP.
Desde suas descrições originais, Hoplias aimara e Hoplias macrophthalmus foram citadas em publicações e por pesquisadores diferentes. Só na década de 1980 é que o pesquisador francês Jacques Géry sugeriu, em uma nota de rodapé, que ambos os nomes poderiam ser sinônimos, isto é, referir-se a uma única espécie. Não havia um estudo de caráter comparativo.
Cooperação científica
De acordo com Mattox, para determinar se existiam uma ou duas espécies, era necessário examinar o maior número possível de exemplares, cobrindo uma ampla área geográfica. “Só o esforço conjunto de vários pesquisadores em diversas instituições poderia levar a uma idéia aproximada da real diversidade das espécies de traíras”, conta o pesquisador, que conseguiu a colaboração de museus de zoologia e história natural do Brasil e do exterior.
O curador do Museu Nacional de História Natural de Paris enviou informações e fotografias dos exemplares originais utilizados pelos pesquisadores que descreveram as espécies, chamado de “material-tipo”. O Museu Americano de História Natural, em Nova Iorque, e a Academia de Ciências Naturais da Filadélfia, nos EUA, financiaram a visita do pesquisador para que conhecesse suas coleções de peixes da América do Sul. Outros museus, na Califórnia e em Chicago, enviaram material por empréstimo pelo correio. Além disso, foram estudadas diversas coleções nacionais, que possuem uma boa amostragem das bacias hidrográficas do Brasil, em especial a do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Um total de 200 exemplares medindo entre 30 milímetros e sessenta centímetros foi estudado. A pesquisa confirmou a suspeita de que os dois nomes listados nos catálogos se referiam à mesma espécie, Hoplias aimara (segundo o Princípio de Prioridade do Código Internacional de Nomenclatura Zoológica, prevalece o primeiro nome). Além de auxiliar na identificação da espécie na natureza, o trabalho resultou numa caracterização mais precisa do peixe e permitiu fazer uma estimativa sobre sua distribuição geográfica, influenciando listagens locais da fauna. Os resultados estão na dissertação de mestrado de Mattox e em artigo publicado na última edição da revista Copeia, referência internacional em ictiologia, escrito em co-autoria com sua orientadora, Mônica de Toledo-Piza, e Osvaldo T. Oyakawa.
“Os exemplares estudados foram coletados ao longo de décadas por muitos pesquisadores e naturalistas nas mais diversas regiões da América do Sul e foram sendo incorporados às coleções. Esse acúmulo de exemplares provenientes de diferentes localidades nas coleções tornou possível uma revisão taxonômica”, explica Mattox. Ele acrescenta que as coleções também são incrementadas com coletas feitas em projetos de consultoria ambiental e resgate de fauna. “Essas coletas podem render muitos frutos no conhecimento destas espécies”, salienta o pesquisador, que cria traíras em aquários em casa.
Segundo ele, a grande diversidade da fauna de peixes sul-americana, principalmente na região Amazônica, torna difícil a sua sistematização e catalogação. “Questões similares ligadas à sinonímia de nomes são comuns em estudos de taxonomia, e cabe ao taxonomista organizar o que já se sabe historicamente, incorporando os novos avanços do conhecimento para determinar a validade das espécies. Esta tarefa está na base de qualquer tipo de estudo sobre diversidade”, afirma.
Mancha negra e menos um osso no céu da boca
As traíras são predadoras e, quando adultas, alimentam-se principalmente de outros peixes. Os jovens são mais generalistas, comendo, além de pequenos peixes, larvas de insetos e outros invertebrados. Espécies de grande porte, como a Hoplias aimara, podem comer pequenos lagartos e mamíferos que caem na água.
“São caçadores de espreita que ficam camuflados próximo ao fundo esperando a presa passar”, descreve Mattox, que cria em aquários na sua casa uma outra espécie de traíra, a Hoplias malabaricus (foto) . Ele frisa que, apesar de predadoras, elas também servem de alimento para muitos animais como peixes de grande porte, aves piscívoras e mamíferos aquáticos como botos e ariranhas.
“De maneira geral, as traíras são peixes muito vorazes, mas na natureza elas convivem com outros peixes e seres vivos, interagindo, predando e sendo predadas. Numa região relativamente conservada, as traíras convivem com uma série de outras espécies de peixes”, explica o zoólogo.
A Hoplias aimara possui uma mancha negra sobre a membrana na borda posterior do opérculo, a estrutura óssea que recobre as brânquias. Nenhuma outra espécie de traíra possui tal mancha. Além desta característica externa de fácil visualização, há outras características morfológicas internas, como a ausência de um osso na boca. Todas as traíras possuem no palato, o céu da boca, dois ossos que portam dentes pequenos, tecnicamente chamados de ectopterigóide e ectopterigóide acessório. Hoplias aimara é a única que não possui o ectopterigóide acessório.
A espécie ocorre nas bacias dos rios Tocantins, Xingu, Tapajós, Jarí e Trombetas, nas bacias costeiras das Guianas, do Suriname e no estado brasileiro do Amapá.
Conhecimento nativo
Mattox ressalta que o contato com a população local nas expedições de coleta é fundamental. “Ribeirinhos, pescadores tradicionais e povos indígenas têm um conhecimento rico sobre os peixes de uma região, sabem seus hábitos de vida, onde, como e quando capturá-los etc. Muitas vezes eles sabem identificar espécies diferentes enquanto nós, taxonomistas na cidade grande, estamos apenas começando a entendê-las”, diz, e dá como exemplo os trairões do Rio Xingu, onde os pescadores locais identificam duas espécies e só recentemente o conhecimento científico sobre a existência de uma delas veio à tona. Ele lembra ainda que, em afluentes do Alto Rio Negro, os índios ajudaram muito na identificação de uma série de espécies novas de peixes.
Estima-se que o Brasil possua 4 mil espécies de peixes das cerca de 28 mil existentes no planeta. Muitos taxonomistas especialistas em peixes vêm descrevendo novas espécies ou redefinindo e catalogando as espécies com nomes duvidosos.
“Descrever e catalogar cada uma das espécies de seres vivos do planeta é uma tarefa árdua e demorada, mas de importância fundamental para se conhecer a biodiversidade. É preciso saber o que temos para podermos pensar em ações de conservação e proteção à natureza”, enfatiza Mattox.
* Marina Lemle é jornalista especializada em ciência e tecnologia. Trabalha na ONG Viva Rio e colabora para o site SciDev.Net.
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