Quem pede licença sabe que está prestes a invadir um espaço que não detêm ou a fazer algo que não é esperado, mas como não quer ter problema, pede autorização para agir. A licença ambiental não foge a essa regra de respeito mútuo. No caso, entre um empreendedor e a sociedade. E para garantir a consideração ao direito coletivo na hora de mudar uma paisagem em nome de um suposto progresso, leis criadas em 1980 e 1981 para definir a Política Nacional de Meio Ambiente transformaram o licenciamento ambiental numa exigência legal – cumprida mal e porcamente pelos seus principais atores.
Antes de começar uma atividade econômica, o empreendedor deve mostrar ao órgão licenciador competente o tamanho do estrago que será causado ao meio ambiente. Para tanto, basta apresentar calhamaços de papéis conhecidos como Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e Relatório de Impacto Ambiental (Rima), que teoricamente detalham o que será construído – e destruído – em determinada área. Com isso, ele conseguirá primeiro a licença prévia, depois a de instalação e, por fim, a de operação. Mas o processo é corroído pelo desejo do empreendedor de finalizar sua obra rápido, pela intenção da consultoria responsável pelo EIA-Rima de não desagradá-lo e pelo interesse dos profissionais que avaliam a área impactada em não fazer nada que possa excluí-los desse mercado no futuro.
Para filtrar os efeitos desses caprichos humanos existem os orgão ambientais licenciadores, mas que hoje têm uma capacidade técnica inferior à demanda. O Ibama, instituto licenciador federal, conta com 127 profissionais para destrinchar uma média de 230 processos por ano. “O órgão precisa estar mais aparelhado de recursos humanos e tecnológicos”, diz Silvia Maria Calou, diretora executiva da Associação Brasileira de Concessionárias de Energia Elétrica (ABCE). É verdade, mas o Ibama, acusado até pela presidência da República de ser um entrave ao desenvolvimento do país, talvez seja a ponta mais inocente de todo o processo de licenciamento ambiental, que também pode ser concedido por orgãos estaduais e municipais, dependendo do empreendimento.
Hoje, o Ibama tem prazo máximo de um ano para analisar empreendimentos que necessitam de EIA-Rima e mais quatro meses caso os relatórios tenham de ser alterados. Valter Muchagata, diretor substituto de Licenciamento Ambiental do Ibama, acredita que um dos grandes entraves do licenciamento ainda é a má qualidade dos estudos de impacto ambiental. Segundo ele, o índice de reprovação dos trabalhos é baixo, mas os pedidos de alterações e complementações são muito comuns. Metade dos projetos que chegam ao órgão retorna para as empreendedoras para serem melhorados. “Não é sempre que chegam estudos completos. Ainda assim, estão melhores do que no passado. As empresas têm incorporado a importância ambiental e social na fase de planejamento”, diz.
Na Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo (SMA), os técnicos que avaliam os estudos parecem menos tolerantes. Cerca de 20% dos projetos são integralmente rejeitados logo na origem. A cada cem, 95 são devolvidos às consultorias ambientais para serem aperfeiçoados. Pedro Stech, diretor de Avaliação de Impacto Ambiental da SMA, lembra que quando o estudo não caracteriza o empreendimento de forma adequada ou deixa de abordar algum aspecto ambiental importante, volta imediatamente. “O empresariado brasileiro ainda não pensa na questão ambiental no nascedouro do projeto. Para um processo fluir bem, isso é imprescindível”, afirma.
A abrangência da obra e o impacto que vai provocar são alguns dos critérios que indicam se a avaliação será feita pelos governos municipal, estadual ou federal. Se atingir mais de um estado, por exemplo, o trâmite fica sob responsabilidade da União. Apesar de a legislação brasileira ser razoavelmente clara, a competência do licenciamento ainda é bastante questionada. Em outubro, as obras do gasoduto Coari Manaus foram suspensas no Amazonas porque a Justiça interpetou que o licencaimento deveria ser concedido pelo Ibama e não pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), por exemplo.
Experiência própria
Independemente de quem avalie o projeto por parte do governo, o papel mais importante neste processo talvez seja o dos técnicos que são contratados para dizer como ficará o meio ambiente depois que o empreendimento for concluído. Tudo depende desta informação – ou deveria depender. Em1997, o biólogo Marcos Bornschein foi contratado para realizar o relatório de avifauna que subsidiaria o EIA da hidrelétrica de Jataizinho (PR), uma das sete usinas programadas para serem construídas na bacia do Rio Tibagi. Bornschein descobriu que nesse caudaloso curso d’água habitava nada mais nada menos que o pato-mergulhão, espécie ameaçada de extinção.
A informação ganhou destaque no estudo que entregou para a Juris Ambientis, empresa responsável pelo EIA. A consultoria não gostou. “Entregamos o relatório para a Juris, que protocolou no IAP [Instituto Ambiental do Paraná – órgão licenciador do estado] um texto falso. Eles [os responsáveis pelo estudo na consultoria] retiraram parte dos impactos negativos. Fizeram a mesma coisa com a parte de peixes e vegetação”, diz Bornschein. Ao invés de editarem o texto, como seria normal, alteraram seu conteúdo científico. “Para nos proteger, registramos o relatório em cartório. Quando falsificaram, denunciamos ao Ministério Público e à mídia em geral”, conta Bornschein.
Segundo ele, depois da acusação, o estudo desapareceu do órgão ambiental.Tempos depois, a consultoria apresentou ao IAP outro EIA, com o mesmo conteúdo do anterior, mas assinado por outros pesquisadores. “Aí faço uma crítica à nossa classe de biólogos. Os técnicos não podem se sujeitar a colocar seus nomes no estudo que outros se recusaram a assinar. Meu Deus, está no juramento que fazemos quando nos formamos.” Bornschein, depois da denúncia, foi incluído numa espécie de “lista negra” dos técnicos envolvidos no escândalo de Jataizinho e nunca mais recebeu ofertas para trabalhar num Eia-RIMA. “Há nove anos não sou chamado para nada”, diz, sem nenhum indício de arrependimento na voz. Hoje é sócio da ONG Liga Ambiental e tem em seu currículo dois únicos trabalhos com EIA: ambos fraudulentos. Procurados pela reportagem de O Eco, as assessorias de imprensa da Copel e do IAP informaram que não falam sobre o assunto, pois os envolvidos nos casos não fazem parte das atuais administrações.
Outra caso foi o da usina hidrelétrica de Barra Grande, construída no entorno do Rio Pelotas, na divisa de Santa Catarina com o Rio Grande do Sul. Durante a instalação da obra, o empreendedor – o consórcio Barra Grande Energética S/A (Baesa) – solicitou ao Ibama um pedido de supressão das florestas a serem inundadas, sem explicitar que se tratavam de campos naturais e florestas primárias de araucária, as mais ameaçadas do país. A omissão foi descoberta e debatida na Justiça, mas a usina recebeu licença para operar em julho do ano passado e seu reservatório inundou 92 quilômetros quadrados da mata de alto valor ecológico. “Houve uma fraude séria no estudo de impacto ambiental. O Ibama aceitou os relatórios e, tempos depois, contestou as informações. Mas eles sabiam desde o início quais as conseqüências da obra”, diz a advogada Maíra Luísa Milani de Lima, que defendeu sua tese de mestrado sobre o caso Barra Grande.
Para evitar casos como Barra Grande, o governo federal determinou ano passado, pela Portaria nº 328/ 2005 do Ministério de Minas e Energia (MME), que, antes de ir à leilão, empreendimentos de geração de energia devem ter licença prévia que ateste sua viabilidade ambiental. Antes disso, batia-se o martelo autorizando a construção da usina, para depois procurar saber o estrago ambiental.
Conduta reprovável
Sem padronização de custos e metodologias de amostragem, quem conhece o mercado de EIA-Rimas garante: é capitalismo selvagem. “Acontece bastante de perder trabalhos para outros colegas que cobram menos. Muitas consultorias levam o preço em conta, não a qualidade. Os produtos ficam problemáticos e, quando chegam nos órgãos licenciadores, não suprem a necessidade. Aí tem de ser refeito”, diz o ornitólogo Fábio Olmos, consultor ambiental e eventual colunista de O Eco. A ausência de regras claras sobre a realização de levantamentos permite que, muitas vezes, um especialista em peixes realize um inventário de aves. Bornschein acrescenta que os biólogos aceitam projetos que não são viáveis, somente por dinheiro, ou pelo fato de que, se não pegassem, outros o fariam.
“Se todos os profissionais se negassem a fazer um levantamento para o qual não estão preparados e não dispõem de tempo e recursos, já seria um grande passo para reformular esse jogo”, diz Bornschein. Não acompanhar os estudos até o momento em que são avaliados pelos órgãos licenciadores é outra falha dos profissionais responsáveis pelos diagnósticos das áreas. “Em 100% dos casos que investiguei, os profissionais não acompanharam o processo. As alterações são muito corriqueiras por parte dos órgãos e das consultorias. Tenho ex-colegas que fizeram EIA para uma barragem e, com o mesmo estudo, os empreendedores ergueram uma linha de transmissão. É falta de responsabilidade, profissionalismo e preguiça de acompanhar o estudo. No geral, não querem se incomodar. Recebem o pagamento e esquecem o processo”, diz o biólogo.
Mariluce Rezende Messias, professora do Departamento de Biologia da Universidade Federal de Rondônia, é um exemplo. Mas ela não acha que está errada. Depois que terminou seu trabalho para o relatório sobre o impacto das usinas planejadas para o rio Madeira sobre a mastofauna da área, ela lavou as mãos. “Ficamos responsáveis pelo diagnóstico ambiental. Passamos as informações para Furnas, que repassou para a consultoria responsável. O que fizeram com nossos dados é de responsabilidade deles”, diz.
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