Reportagens

Brilho suspeito

Joalheiros não precisam prestar contas quanto à origem de pedras e metais preciosos. Pouco importa se elas são produto de trabalho degradante ou de devastação ambiental.

Andreia Fanzeres ·
6 de dezembro de 2006 · 18 anos atrás

Quando se decide presentear alguém com uma jóia, o consumidor geralmente demora. Analisa a beleza, a qualidade e de que maneira vai conseguir pagar por ela. Tudo por um momento inesquecível. Mas na hora da compra ninguém quer saber se aquele ouro, a prata, ou as pedras preciosas saíram de lavras que têm trabalhadores sob risco, poluem rios ou devastam o solo. Se soubessem, talvez preferissem escolher uma bijuteria para dar de presente. Talvez não tivesse o mesmo brilho. Mas certamente, doeria menos na consciência.

Técnicos do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), responsáveis pela concessão de lavras para garimpo e sua fiscalização, reconhecem o enorme risco da jóia que está sendo comprada por um consumidor ser um produto de contrabando e crime ambiental. A Polícia Federal também. As grandes joalherias garantem que obtém as pedras ou os metais preciosos de fontes legalizadas e corretas. Mas não dizem quais.

“Uma loja de renome como a nossa tem uma tradição a ser defendida e protegida. Não colocaríamos 60 anos de história comprando gemas de origem duvidosa”, diz o porta-voz da H.Stern, Christian Hallot. Mas ele mesmo reconhece que é extremamente difícil rastrear a procedência dos metais e das pedras e explica as movimentações possíveis de uma peça no mercado. “Suponha que o produtor seja um garimpeiro, que venda para uma mineradora, que exporte o material, que ele seja transformado em um colar, e depois seja vendido em outro país”, diz.

De fato, se não há controle sobre cada etapa dessas transações, quando a peça chega ao consumidor final é difícil saber. Mesmo assim, Hallot não admite questionamentos sobre a origem das pedras lapidadas na H.Stern e assegura que suas matérias-primas vêm de garimpos certificados, que sofrem fiscalização e auditorias. Mas, em outro momento da conversa, admitiu: “Nunca ninguém vai ter certeza absoluta”.

É um quebra-cabeças. E com mais um detalhe: a idade das gemas. Elas podem ter sido mineradas há um ano, há 100 anos ou podem ter sido fundidas. “Geralmente o joalheiro compra de diversas fontes, às vezes de intermediários. No caso do ouro é difícil saber, porque esse metal existe em quase todos os estados brasileiros”, lembra o geólogo Samir Nahass, assessor para assuntos internacionais da secretaria de geologia, mineração e transformação do Ministério de Minas e Energia (MME).

Fiscalização deficiente

Além de não haver obrigações legais de certificação de origem, o controle sobre os garimpos no Brasil é falho. Para Roger Romão, diretor substituto de fiscalização do DNPM, o ideal seria fazer, no mínimo, uma vistoria por ano em cada lavra garimpeira. Mas com os cerca de 250 fiscais do departamento, e com o orçamento enxuto, é impossível cuidar dos 60 mil títulos concedidos para exploração mineral espalhados pelo país. Isso sem contar com os clandestinos. O detalhe é que o efetivo de fiscalização só é desse tamanho porque dobrou depois de um concurso público realizado em março deste ano.

De acordo com Romão, é difícil não só fiscalizar, mas também reprimir os garimpos ilegais. Funciona assim: “Os garimpeiros geralmente invadem uma área, pedem licença para fazer pesquisa de viabilidade para exploração. Mas permitem que outras pessoas entrem e o DNPM nem fica sabendo. Quando chegamos lá, em vez de três pessoas encontramos cinco mil e aí não conseguimos tirá-los mais. Cria-se um problema social, com uma comunidade já implantada, eles tentam regularização da área, e aí tudo é mais complicado”, relata.

Com tantas restrições, a fiscalização do DNPM tenta investir num serviço de inteligência para filtrar e direcionar as operações. Romão informa que a perspectiva é de que no ano que vem entrem mais 150 fiscais e que sejam intensificadas as ações em conjunto com os fiscais de outros órgãos, como o Ibama. “Mas ainda é pouco para um país do tamanho do Brasil”, admite.

Só para diamantes

Apesar de toda dificuldade de rastrear as gemas, desde 1º de setembro o Brasil foi incluído entre os países que só podem comercializar diamantes se houver certificação de peso, preço e origem. É o que exige a certificação do processo Kimberley. Trata-se de uma iniciativa para tentar evitar que diamantes extraídos ilegalmente na África financiem guerrilhas e outros tipos de conflito. E só saiu por causa de fortes pressões internacionais.

Nahass, do DNPM, esclarece que o Kimberley é exigido para importação e exportação de diamantes brutos. Sendo que para obter o documento é preciso estar registrado no Cadastro Nacional do Comércio de Diamantes Brutos (CNCD) e comprovar que o lote da pedra a ser exportada foi adquirido de alguém com direito minerário, com autorização de lavra e também inscrito no CNCD. De acordo com a nova legislação, essa comprovação deve ser feita através da apresentação da cadeia sucessória de notas fiscais de venda.

Se houve mobilização para pelo menos fechar o cerco contra exploração e comercialização clandestina de diamantes, o mesmo poderia ser pensado para as demais pedras e metais extraídos no Brasil. Segundo o delegado José Maria Fonseca, da Polícia Federal em Belo Horizonte, 95% das gemas brasileiras são contrabandeadas. E é muito difícil controlar principalmente a saída desses materiais do país porque os aeroportos não são equipados para rastrear as pedras, sem contar que a própria investigação é dificultada por se tratar de contrabandistas especializados na área. “Seria muito bom que a certificação Kimberley fosse estendida para outras pedras porque o governo poderia ter um controle e sobretaxar isso”, sugere o delegado.

Pressão da sociedade

Hoje, por enquanto, se alguém quiser saber se a jóia que está comprando veio ou não de algum garimpo ilegal não será atendido. “É um direito das pessoas questionar, mas para valores que sejam condizentes”, diz Hallot, o porta-voz da H.Stern. “Os custos para todo esse rastreamento são muito grandes. Para pedras menores, esse esforço não se justifica”. Ou seja, a legalidade e o meio ambiente dependem do cliente que questiona e do lucro.

A simples pergunta sobre a procedência das jóias pegou de surpresa vendedoras de outras grandes joalherias, como Vivara, Amsterdam Sauer e Monte Carlo, em diferentes cidades brasileiras. Algumas pareciam até ofendidas com a dúvida e reconheceram que, embora tivessem muitos anos de experiência na função, nunca tinham recebido nenhum consumidor com essa pergunta. “O que nós garantimos é a qualidade da jóia, com certificação e tudo, mas não sei te responder quanto à origem dela”, diz uma vendedora da Vivara, do Rio de Janeiro.

Os joalheiros dizem que confiam nos garimpos e nos lapidários de onde compram as peças. E isso basta. Afinal de contas, ninguém questiona. Mas é bom lembrar que um dia o consumidor sequer ligava para a origem da madeira que comprava para mobiliário. E, embora o comércio ilegal ainda seja um grande problema, pelo menos já existe uma consciência quanto a preferência de madeiras com certificação no mercado. Anonimamente, eu como consumidora não fui atendida nas joalherias. Mas como diz Romão, da fiscalização do DNPM, quando isso se tornar uma demanda da sociedade, o ministério vai ter que atender.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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