Reportagens

O poder da palavra

Após reunir o que há de mais recente em pesquisas sobre mudanças climáticas, cientistas lapidam a síntese do primeiro de três grandes relatórios que traçam os rumos do planeta.

Andreia Fanzeres ·
1 de fevereiro de 2007 · 17 anos atrás

O badalado relatório sobre mudanças climáticas lançado nesta sexta-feira, 2 de fevereiro, é apenas o primeiro de três volumes que, até maio de 2007, serão divulgados pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês). Trata-se de uma consolidação de publicações científicas do que de mais novo se sabe a respeito do estado atual da atmosfera. Além das informações essencialmente físico-químicas, os pesquisadores traçam cenários sobre o que pode acontecer com o clima no futuro, mas, nesta fase, sem abordar seus impactos ao meio ambiente, às populações ou à economia. Por isso, qualquer notícia atribuída ao relatório que sair nos próximos dias alardeando elevação do nível do mar, desertificação de certas áreas e derretimento de outras, por exemplo, são por enquanto mera especulação.

Tais questões, assim como as consequências das mudanças climáticas e opções de adaptação serão tema de um segundo relatório, divulgado em abril. E, no mês seguinte, sai o terceiro e último volume, que se presta a analisar alternativas para limitar emissões de gases de efeito estufa e outras medidas mitigatórias.

É a quarta vez que um relatório de três volumes desse tipo é produzido pelo IPCC, órgão criado em 1988 pela Organização Meteorológica Mundial e pelo Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas, que já lançou avaliações em 1990, 1995 e 2001. De seis anos para cá, cerca de 2.500 especialistas de 130 países foram convidados a contribuir com estudos previamente feitos e aceitos pela comunidade científica internacional. Outros 800 escolhidos a dedo também colaboraram e 450 cientistas assinaram os cerca de 10 a 15 capítulos de cada relatório. A idéia é unir as melhores cabeças pensantes do mundo em torno do tema mudanças climáticas num esforço para que as conclusões sejam compreendidas por todas as populações, especialmente as pessoas leigas. Mas até lá, é preciso muita organização.

Metodologia

De acordo com o climatologista Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e membro do IPCC, um grupo técnico de coordenação do Painel elabora a estrutura dos três grupos de cientistas – cada qual responsável por um volume do relatório – com sugestões de outros pesquisadores. Eles não só elaboram as linhas mestras do relatório a ser produzido, como iniciam a convocação daqueles que serão membros do IPCC para a tarefa, às vezes convidados por eles próprios, ou indicados por governos. “Sempre há uma rotatividade entre os pesquisadores que fazem parte do Painel devido à produção científica de cada um, idade, e interesse de fazer parte do IPCC”, diz Roberto Schaeffer, engenheiro da Coppe/UFRJ e um dos autores do terceiro volume do relatório deste ano. Ele estima que, além dele, haja mais nove brasileiros entre os cientistas do IPCC hoje. A ONU também se preocupa com um equilíbrio de nacionalidades, para manter uma representatividade geográfica das nações mas, Schaeffer garante, os escolhidos são sempre os melhores.

Ao longo de três a quatro anos, são promovidas diversas reuniões. A primeira define os assuntos a serem abordados no relatório e, depois disso, começa a redação dos textos. “Os autores se juntam para avaliar os conteúdos e avançar, até que eles chegam, em certo momento, a um primeiro esboço do relatório”, explica Nobre.

Essa espécie de esboço é enviada para outros pesquisadores, que redigem suas recomendações, críticas e opiniões. E, por escrito, os autores têm que responder a todos os apontamentos. O IPPC acrescenta mais dois “pesquisadores-editores” para cada capítulo, que auxiliam na organização das respostas. Os autores podem ou não aceitar as sugestões dos pesquisadores consultados, mas se caso for negativo, têm que embasar muito bem suas justificativas. Só aí a primeira versão fica pronta.

Ainda segundo Nobre, as revisões continuam quando o relatório segue para os comentários de representantes dos governos de cada país. Novamente, os autores se reunem, discutem e respondem às solicitações até que seja concluída a segunda versão. “Todas essas informações vão para a página do IPCC na internet, é tudo público”, lembra. As reuniões deste ciclo do IPCC aconteceram na Alemanha, no Peru, na China, na Nova Zelândia, e agora, na França, onde o primeiro volume foi lançado.

Questão de linguagem

Cada relatório vem acompanhado de um sumário técnico e outro para análise de tomadores de decisão. Ambos são resumos, que, por serem mais coesos, precisam seguir um rigor maior no uso das palavras para que não deturpem o sentido das conclusões técnicas. É aí que as discussões ficam inflamadas e tornam-se fortemente políticas. E em se tratando de mudanças climáticas, um “pode ser que” e um “é muito provável que” fazem muita diferença no entendimento do público e do setor produtivo, o que obviamente interessa aos países. Até o final desta semana, em Paris, governos e os autores principais debatiam justamente essa linguagem final. Como deve haver consenso, as discussões seguem noite adentro, na briga palavra por palavra, até que alguém vença por exaustão.

“São discussões muito parecidas com negociações de clima entre países, muito políticas, mas travadas pelos cientistas sob fiscalização do IPCC”, diz Schaeffer. Segundo ele, os países têm certo poder de veto e se utilizam de artimanhas para exercer pressão. É só criar objeções a todo momento, travando as discussões, como aliás, tem feito a China neste ano. Segundo a revista Scientific American, representantes chineses ficaram mais de uma hora questionando uma única frase do resumo. Muito provavelmente porque este ano eles é que estão na vitrine das críticas por incrementarem uma economia baseada no carvão, aumentando a passos largos sua parcela de culpa pela emissão de gases no planeta. Embora os Estados Unidos não tenham se dobrado às principais evidências do aquecimento do planeta, sua participação nas recentes discussões tem sido considerada discreta.

Na opinião de Nobre, do Inpe, apesar dos pesares, os debates de agora parecem estar mais amenos do que no passado. “Há alguns anos, os cientistas sabiam que o aquecimento podia ser atribuível à atividade humana, mas existia um grau maior de incerteza”, lembra Nobre. Hoje, no entanto, o pesquisador acredita que os relatórios estejam sendo finalizados de maneira mais tranquila. “As evidências atuais são muito avassaladoras: o clima muda e nós somos os responsáveis”, encerra.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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