Reportagens

Culpa ancestral

A descoberta por um cientista australiano de uma coleção de fósseis do pleistoceno reacende o debate sobre a responsabilidade dos hominídios na extinção dos grandes mamíferos.

João Teixeira da Costa ·
15 de fevereiro de 2007 · 18 anos atrás

No final do período quaternário – entre 10 e 50 mil anos atrás, um piscar de olhos em termos geológicos – quase todos os grandes mamíferos do planeta foram extintos, com exceção daqueles da África. As razões dessas extinções são motivo de debate apaixonado entre paleontólogos, zoólogos e ecologistas, que se dividem em basicamente duas facções: aqueles que jogam a culpa na mudança climática, e aqueles que acham que os culpados foram os seres humanos.

A briga é boa e, como veremos, tem implicações importantes para o presente e futuro do planeta. E como toda boa discussão científica, tem uma grande virtude: avança quando surge informação nova.

A novidade desta vez vem da Austrália. Uma equipe de paleontólogos liderada pelo doutor Gavin Prideaux, do Western Australian Museum, publicou no fim de janeiro nos periódicos científicos Nature e Geology os resultados do seu trabalho nas cavernas da planície de Nullarbor, no sul da Austrália. As três cavernas, acessíveis apenas através de pequenos buracos no solo da planície semi-árida, foram descobertas alguns anos atrás, e seu conteúdo se revelou valiosíssimo. Os exploradores encontraram fósseis de diversas espécies até então desconhecidas da ciência, entre elas 23 cangurus e um esqueleto completo de Thylacoleo carnifex, o chamado leão marsupial – um bicho com hábitos alimentares semelhantes aos dos grandes felinos, mas aparentado dos cangurus e outros mamíferos que carregam seus filhotes em bolsas.

Mas o significado da descoberta vai mais além. Através da análise dos restos encontrados nas cavernas, Prideaux e colegas determinaram que o clima da região onde se encontram não mudou tanto assim nos últimos 500 mil anos. A planície era tão árida quanto é hoje. O que mudou foi a vegetação. Sumiram as árvores com folhas e frutos, sensíveis ao fogo, e ficaram os arbustos. A conclusão é que se o clima não mudou, a extinção não pode ser atribuída à mudança climática. A responsabilidade, por eliminação, é dos humanos, que chegaram lá 40 mil anos atrás. Pouco depois os grandes herbívoros e o Thylacoleo sumiram do mapa.

Ao menos uma parcela

A destruição não acaba aí. Pesquisadores australianos começam a suspeitar que o Homo floresiensis talvez esteja também na lista das vítimas do Homo sapiens. Identificado através de ossos descobertos em 2004 na ilha de Flores, na Indonésia, o floresiensis era um hominídeo de um metro de altura. Essa, pelo menos, parece ser a hipótese mais provável, mas ainda há controvérsias. Seja como for, de acordo com o Sidney Morning Herald, pesquisas recentes indicam que não foi a erupção de um vulcão, como se acreditava anteriormente, a responsável pela extinção dos nanicos há 13 mil anos. Eles teriam sido vítimas da chegada dos humanos modernos, que caçaram até a extinção os estegodontes, elefantes anões que lhes serviam de alimento.

O acúmulo de informações sugere, de maneira cada vez mais contundente, que os seres humanos ancestrais tiveram, no mínimo, uma parcela de responsabilidade importante nas extinções seletivas do fim do quaternário. O fenômeno que precisa ser explicado não é simplesmente uma extinção em massa, mas sim uma extinção em massa bastante seletiva, de bichos grandes e de reprodução lenta.

Uma revisão recente da literatura resume o estado da arte. Em certas partes do planeta já é possível fazer uma avaliação razoavelmente segura do que aconteceu. Onde hoje estão os Estados Unidos, por exemplo, os métodos de datação mostram que a mudança climática foi simultânea ao primeiro contato da megafauna local com populações humanas. Além disso, há provas indiscútiveis que duas espécies extintas eram caçadas pelo povo de Clovis, e as extinções se concentraram em um período de 1500 anos, ou menos, em torno do primeiro contato.

Na Eurásia a mudança climática parece ter sido responsável pelo ritmo do declínio da megafauna do pleistoceno. Os autores do paper sugerem que a expansão geográfica dos humanos modernos pode ter fragmentado as áreas onde os animais viviam, expulsando-os para refúgios no norte, pobres em alimento. Na Austrália, as extinções seguiram a chegada dos humanos. Na América do Sul ainda faltam dados sobre a cronologia das extinções, mas parece provável que os humanos caçavam a megafauna, e que as extinções do fim do Quaternário aconteceram depois da chegada dos humanos.

Exceção

A África é a feliz anomalia dessa história, e os autores sugerem uma série de hipóteses para explicá-la. Talvez a megafauna local tenha sido beneficiada pela sua coevolução com os seres humanos. Talvez o continente fosse tão abundante em outras fontes de alimento que não teria valido a pena caçar animais grandes. Seja como for, essa grande exceção precisa ser explicada.

Os autores notam as implicações ecológicas do acontecido. A colisão entre uma população humana em expansão e um clima em mudança rápida é explosiva, e seu resultado mais provável é a aceleração das taxas de extinção. O conhecimento das extinções nos ajuda a entender a ecologia das espécies que ficaram. Você já se perguntou o que aconteceu com as plantas cujas sementes eram dispersadas por animais que não existem mais?

Os autores do paper não falam nisso, mas o que vai acima provoca mais uma conclusão óbvia: o mito do homem primitivo em harmonia com a natureza é uma fantasia. As conseqüências disso para estratégias de conservação também é óbvia: vai se dar mal quem desenhá-las com base em um mito sem base empírica.

Leia também

Reportagens
18 de dezembro de 2024

Congresso aprova marco da eólica offshore com incentivo ao carvão  

Câmara ressuscitou “jabutis” da privatização da Eletrobras e assegurou a contratação, até 2050, de termelétricas movidas a gás e carvão. Governo estuda veto

Notícias
18 de dezembro de 2024

Paul Watson, ativista contra a caça de baleias, deixa prisão na Groenlândia

O canadense, fundador de ONGs como Greenpeace e Sea Shepherd, estava preso há 5 meses por acusações do Japão relacionadas a embate com navio baleeiro, em 2010

Reportagens
18 de dezembro de 2024

ESEC Murici, em AL, fica mais de 2 meses sem fiscal após afastamento de chefe da unidade

Analista foi afastado da fiscalização por ação que culminou na demolição de terreiro em parque na Bahia; ele alega não ter percebido uso religioso do local e não ter tido direito à defesa

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.