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Meia verdade

Mesmo com ameaças concretas sobre Amazônia, Cerrado e Pantanal, entenda porque a monocultura de cana-de-açúcar tem sido vendida como solução verde para setor de combustíveis.

Andreia Fanzeres ·
9 de março de 2007 · 17 anos atrás

Ao optar por uma matriz renovável baseada na cana-de-açúcar, o Brasil vai pagar o já conhecido preço de entrar num novo ciclo econômico dependente de monocultura. E, desse assunto, o país conhece os altos e baixos desde os tempos da colonização. Mas a história recente lembra mais do período em que a cana foi protagonista da produção de combustível na era Pró-alcool, embora, como todas as outras culturas, tenha declinado. Essa é a história que o Brasil pode recordar, pois até agora tem sido omisso ao não contar o que aconteceu com os ambientes naturais do país em nome dela, a cana.

Poucas são as referências já publicadas. Uma delas está no livro “Os limites originais do bioma Mata Atlântica na região nordeste do Brasil”, escrito pelos conservacionistas veteranos Adelmar Coimbra Filho e Ibsen de Gusmão Câmara, que temem pelo que estar por vir. “Tomara que não façam o que fizeram naquela época e não derrubem florestas nativas para colocar cana”, alerta o primatologista Adelmar. Sua tese é simples e objetiva: o Nordeste, embora seja uma região propícia à desertificação, está sem água porque suas florestas originais foram retiradas para dar lugar especialmente ao cultivo de cana-de-açúcar. “O Nordeste é seco porque desmataram”, resume.

Presente e futuro

Hoje a cana ocupa cerca de seis milhões de hectares de terras e se esparramará por sete milhões até o fim do ano. Há atualmente 325 usinas instaladas no país e, até 2010, devem ser construídas mais 89, sendo que 16 já entram em operação na safra de 2007. Pelos cálculos do diretor técnico da União da Indústria da Cana-de-Açúcar (Unica), Antônio de Pádua Rodrigues, até a safra de 2012/2013 os plantios de cana vão cobrir uma área de mais quatro milhões de hectares. Para ele, terra disponível o Brasil tem de sobra, e sem que a monocultura afete o Cerrado ou o Pantanal. “Não se considera nessas áreas [novos] desmatamentos, áreas de preservação ambiental e nem invasão de áreas já com culturas”, diz.

Edgar Beuclair, pesquisador da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP), tenta definir didaticamente o que são consideradas terras disponíveis para o plantio da cana. “São áreas sem Pantanal, sem Amazônia, sem lagos, sem rios, serras, unidades de conservação e terras indígenas”. Ou 320 milhões de hectares, segundo ele. Num universo de cerca de 850 milhões de hectares do território brasileiro, Beuclair diz que todas as atividades produtivas no campo somam “apenas” 90 milhões de hectares. E que, portanto, seria possível triplicar a extensão de cana-de-açúcar com folga.

Mas um outro pesquisador da Esalq, Flavio Gandara, não tem tanta certeza disso. “A cana vai avançar por todos os lados, inclusive áreas naturais”, diz ele. Por conta de uma visibilidade maior e a proibição de desmatamento para conversão de áreas agrícolas no bioma, o pesquisador acredita que a Mata Atlântica não deva sofrer mais do que já sofreu com a cana. O alvo agora são mesmo as áreas não alagadas do Pantanal e Cerrado.

Controle desejado

Responsável por 60% da produção brasileira de álcool, São Paulo tem uma situação de controle ambiental mais rigorosa do que em outros estados. Por conta do grande impacto das queimadas que antecedem à colheita da cana e empregam milhares de bóias-frias, dezenas de cidades sofrem todos os anos com forte poluição do ar, o que forçou o governo paulista a elaborar uma lei em que são estabelecidos prazos para que a colheita por queima seja substituída gradualmente por colheita mecânica. De acordo com Beuclair, a cada cinco anos é preciso haver uma redução da área queimada. Este ano, 30% dos canaviais paulistas não podem ser queimados. Em 2011 o percentual chegará a metade. Em 2016 serão 80% da área colhida com máquinas, até que se atinja a 100% em 2020.

A dúvida é saber se outros estados prestes a ficarem verdinhos de cana estão dispostos a seguir o exemplo paulista. “Os acordos com os Estados Unidos são um ótimo negócio, o difícil vai ser segurar a pressão econômica”, diz. A soja que o diga.

Nessa história, o Pantanal torna-se uma região indiretamente afetada não porque haja gente interessada em cultivar cana em área alagada, mas por causa do seu entorno, de terras firmes. “A presença de agricultura em larga escala é muito perigosa pelo fato de os recursos hídricos serem extremamente importantes”, lembra Gandara. O alerta vem em boa hora, já que o governo de Mato Grosso está prestes a emplacar uma lei que estabelece novos limites para o Pantanal, desconsiderando do bioma as áreas que não são inundadas, mas que são muito importantes por abrigarem nascentes de rios pantaneiros e, entre outras razões, protegerem os leitos de assoreamento.

Monitoramento da cana

O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mantém desde 2003 o projeto “Canasat, que mostra em mapas atualizados anualmente como a cultura da cana se expande na região centro-sul do país – responsável por 85% da produção brasileira. Segundo Bernardo Rudorff, que dirige o projeto, as imagens indicam que praticamente metade da expansão cobre áreas de usos agrícolas e a outra metade se dá sobre pastagens.

E isso pode não ser nem um pouco positivo para a Amazônia, que não tem nada a ver com cana. De acordo com o “relatório “Depoluindo Incertezas: impactos Locais da Expansão das Monoculturas Energéticas no Brasil e Replicabilidade de Modelos Sustentáveis de Produção e Uso de Biocombustíveis”, divulgado na última semana pela Ong Amigos da Terra, as promessas do governo de que a expansão das monoculturas não será desordenada já não tem acontecido no presente. Em visitas às áreas de fronteira dos biocombustíveis, como em Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Goiás e Maranhão, os autores do estudo notaram que, ao ocupar áreas de pastagens, a cana desloca os rebanhos bovinos para cada vez mais dentro da região amazônica. “São Paulo diz que seu gado está confinado, não tem migrado, mas não foi o que observamos”, conta Lúcia Ortiz, da Ong Amigos da Terra e coordenadora da pesquisa. “Áreas anteriormente sem conflitos de interesses, por estarem cotadas para virar terras indígenas ou para fins de reforma agrária, agora estão sendo arrendadas para monocultura de açúcar”, relata.

Vantagens relativas

Beuclair, pesquisador da Esalq, costuma desafiar quem queira discutir qual, entre as atividades econômicas no campo, emprega mais de mil pessoas e cause menos impacto ambiental. “Só a cana”, ele diz. E explica que o primeiro motivo é a cobertura do solo, o que o protege contra erosão. “A cana é também a cultura que mais usa controle biológico no planeta, com reduzida necessidade de agrotóxicos”, lembra. “Além disso, não combate doença através de antibióticos, mas de melhoramento genético”. Beuclair diz ainda que atividade faz a maior reciclagem de nutrientes do planeta ao produzir álcool por filtragem da cana moída, por aproveitar o bagaço para produzir energia e por utilizar o vinhoto, resíduo do processo, como adubo orgânico. “O vinhoto não é jogado nos rios. A última vez que isso aconteceu foi em 1981”, garante.

Beuclair não tem dúvidas de que os produtores de cana emergentes não vão querer “queimar dinheiro” disperdiçando o vinhoto no ambiente. “Quem aproveitar esse adubo natural vai ter mais produção com menos da metade do custo. Quem não faz isso quebra porque a cana é um bom negócio justamente por essas razões e esta é a tecnologia mais avançada do mundo”, opina.

A cana também pode ser benéfica para os que querem aproveitá-la para ganhar créditos de carbono, pois tem a maior taxa de seqüestro do gás entre as demais culturas, mesmo de florestas plantadas, de acordo com Beuclair. “Com um corte de cana queimada por ano, obtemos cinco toneladas de carbono por hectare que vão diretamente para o solo. Se a cana for crua, chega-se ao seqüestro de 20 toneldas”, afirma, pragmático. “Se você quer um sumidouro de carbono, não é com floresta que você vai conseguir. É com cana”.

“Se você não colocar cana, vai chegar a soja, o milho ou o gado. E ela é muito mais amigável com o meio ambiente do que todas as outras culturas juntas”, afirma. Para o pesquisador, é melhor plantar nessas áreas do que deixar capim, mesmo que ele seja natural. Ao ser questionado o porquê, ele responde com outra pergunta. “Por que você quer proteger o Cerrado?”, um questionamento, no mínimo, desconsertante. E surpreende: “A biodiversidade do Cerrado é bastante limitada. Não tem sentido algum manter um ecossistema que não nos fornece nada por pura poesia, dogmatismo”, revelou. Beuclair, que parece ter incorporado o discurso dos produtores rurais menos preocupados com a manutenção dos serviços ambientais, acha que deixar essas áreas como estão é o mesmo que condenar o povo brasileiro à pobreza. “Se for assim, é preferível que se restrinja a atividade econômica como um todo, não deixando mais construírem cidades e transformando o Brasil numa imensa reserva”, diz. “Não aceito miséria em troca do meio ambiente”. Que medo.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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