A regularização fundiária em unidades de conservação no Amazonas se tornou uma questão tão complexa que virou tema de um seminário de dois dias, realizado no auditório do Ministério Público Estadual em Manaus, durante os dias 16 e 17 de abril. Participaram a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SDS), o Instituto de Terras do Amazonas (Iteam), o Ibama e comunidades do interior.
O Amazonas tem 34 unidades de conservação, mas apenas três têm Planos de Gestão concluídos (Maués, Cujubim e Mamirauá). Outras oito estão com o plano em andamento. Em 2002, era apenas uma, Mamirauá. E em praticamente todas elas, existem pessoas vivendo legalmente ou não. O que fazer com essa população? No caso de Unidades de Uso Sustentável, a política tem sido regularizar a presença delas e incentivar atividades que sejam menos danosa ao meio ambiente, como manejo dos recursos.
Mas existem pessoas vivendo também em Unidades de Proteção Integral, onde a moradia é proibida. Há instrumentos legais para retirá-las, o que nem sempre é avaliado como a melhor solução. A remoção da população da Estação Ecológica de Anavilhanas inflou a periferia de Novo Airão, região próxima à área protegida, e os ex-ribeirinhos são suspeitos de realizarem atividades ilegais na floresta do Baixo Rio Negro, como caça de animais silvestres.
Já o Parque Nacional do Jaú se tornou exemplo de como a indefinição sobre a permanência de pessoas dentro de unidades de conservação causa conseqüências ao meio ambiente. O Parque foi criado na década de 80 pelo governo federal em uma gleba que pertencia ao estado. A área era habitada e até hoje boa parte da população ainda reside no local. Enquanto se estuda transformar a área ocupada ao longo do rio Unini em uma reserva extrativista, peixes ornamentais são capturados dentro de uma unidade de conservação de proteção integral- onde nenhum tipo de exploração é permitido.
Direito real de uso
“É praticamente impossível você entrar em uma região em toda a Amazônia onde não exista gente”, diz Rita Mesquita, secretária executiva de Projetos Especiais da SDS. “E nós temos todo tipo de conflito, como entre comunidades e indivíduos, entre governos estadual e federal.”, avalia. Trata-se de um problema social que interfere diretamente na preservação da natureza. Para ela, é preciso explicitar quais atividades são permitidas e os limites destas atividades dentro de unidades de conservação, questões normalmente tratadas nos planos de manejo de cada unidade.
Mas no momento, as Concessões de Direito Real de Uso (CDRU), que permitem o uso de áreas públicas sem que o morador ou a comunidade se tornem proprietários, estão sendo consideradas no Amazonas como peça-chave na regularização dessas terras. Estas concessões “legalizam” as atividades previstas em planos de manejo, impondo mais limites ao uso dos recursos naturais.
A dúvida é se esses documentos devem ser individuais ou coletivos. Segundo Rita, o melhor é definir em função da atividade. Atividades que usem recursos que não podem ser individualizados, como manejo de lagos, devem receber uma CDRU coletiva. No caso de criação de pequenos animais ou roças de subsistência, o melhor é um documento individual.
Para o presidente do Iteam, Aniceto Barroso Neto, as leis do Amazonas não atendem às exigências da regularização fundiária no estado. Ele defende a criação de grupos de trabalho para definir propostas para regularizar não só as terras em unidades de conservação, mas em outras áreas. “Ficou evidente que a falta de uma co-gestão entre os órgãos é um dos principais gargalos do processo de regularização fundiária”, afirmou.
Consenso
Nos dois dias de debate, só se chegou a um consenso: é necessário resolver a posse da terra em unidades de uso sustentável no momento em que elas são criadas. Um exemplo citado foi a Área Subsidiária da Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, onde as ações de preservação e manejo foram adiadas por falta de dinheiro e gente para trabalhar. Lá, a presença de posseiros está desanimando os pescadores envolvidos com o manejo do pirarucu, atividade que gera renda e ajuda a proteger o maior peixe de escamas da Amazônia.
A história começou em 1999, quando os pescadores iniciaram o manejo do pirarucu na Área Subsidiária da Reserva, no Complexo do Lago Preto, uma região com 37 lagos onde os peixes se reproduzem. Durante três anos, suspenderam a captura do pirarucu no complexo. “Em 2002, fizemos o primeiro manejo. Foi uma beleza. Explodiu de peixe”, conta Luiz Gonzaga, um dos pescadores envolvidos na atividade.
Mas um grupo de seis pessoas passou a se dizer dono de uma área vizinha aos lagos, unida ao Complexo por dois pequenos paranás, Itaúba e Tigre, um caminho natural de passagem dos pirarucus durante a cheia dos rios. Segundo Luiz Gonzaga, este grupo além de não seguir as regras de manejo ainda caça e retira madeira da região – uma várzea, ou seja, em área de Preservação Permanente. Estes posseiros apresentaram Cartas de Anuência do Instituto de Terras do Amazonas (Iteam) que permitem as atividades.
Essas cartas valem por dois anos. Tempo suficiente, de acordo com os pescadores, para que os posseiros criem uma comunidade e, então, completem a fraude. “A gente tem trabalhado dentro da legalidade, mas se o estado não retirá-los e provar que quatrocentas e tantas famílias valem mais do que meia dúzia de posseiros, as famílias vão achar que o manejo não vale a pena”, protesta Luiz Gonzaga.
O Iteam confirma que pelo menos cinco pessoas do grupo de posseiros não moram na região. São moradores de Manaus ou Tefé, cujas Cartas de Anuência devem ser canceladas. Para Barroso, estas cartas foram conseguidas devido a informações falsas prestadas pelos posseiros. O assunto foi tratado em uma reunião entre pescadores e o presidente do Instituto de Terras do Amazonas, que prometeu avaliar a situação.
* Vandré Fonseca é jornalista formado em São Paulo, há oito anos vivendo na Amazônia. Atualmente, é repórter da TV Amazonas.
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