O Parque Estadual da Serra do Mar, maior porção contínua preservada de Mata Atlântica do Brasil, corre o risco de perder a sua única faixa de praia para uma comunidade quilombola, que deseja explorar turismo e pesca na região. O que está em jogo é uma área de 5 mil hectares, a maior parte dela composta por terras públicas, pedidas no ofício de reconhecimento como remanescentes de quilombos pela comunidade do Sertão da Fazenda, no Núcleo Picinguaba, em Ubatuba, São Paulo.
O parque é dividido em oito núcleos, mas o de Picinguaba é considerado o mais importante em termos ecológicos porque a faixa de praia funciona como berçário de espécies e a área liga o Parque Estadual da Serra do Mar ao Parque Nacional da Serra da Bocaina e a Área de Proteção Ambiental (APA) do Cairuçu, no Rio de Janeiro. Juntos, eles somam aproximadamente 425 mil hectares e formam um rico corredor ecológico por onde circulam bugios, tucanos e onças-pintadas.
A área solicitada por pessoas que se dizem herdeiras de quilombolas vai da praia até o sertão – a região montanhosa – e compreende as edificações do núcleo formadas pela sede administrativa, alojamentos, centro de visitantes, estacionamento e uma lanchonete desativada, localizada à beira mar. “Vamos usar a lanchonete e o estacionamento para trabalhar”, diz Laura de Jesus Braga, presidente da Associação dos Remanescentes da Comunidade do Quilombo da Fazenda, que defende tais atividades como sustentáveis. Nascida em Campinho, quilombo no município de Paraty, Laura está há 45 anos no local e diz ter os mesmos direitos de quem nasceu lá. “Vim daqui do lado e sou descendente de escravos”. Hoje ela trabalha como cozinheira na sede no núcleo.
Além do uso para o comércio, com o reconhecimento do quilombo, os atuais moradores da região acreditam que poderão voltar a pescar – o que, segundo Eliane Simões, diretora do núcleo, não vai ocorrer. Como um dos objetivos do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), lei que rege o parque, é contribuir para a manutenção da biodiversidade nos territórios terrestre e marinho, a pesca continuará proibida.
Para ela, a comunidade tem a ilusão de que com o reconhecimento poderão fazer o que desejarem, sem ter de pedir autorização. E, segundo depoimento da líder comunitária Laura, é exatamente isso que acontece. “A lei quilombola está acima da lei do parque. Com o reconhecimento vamos poder fazer o que quiser, sem ficar esperando aprovação deles [do Instituto Florestal]. Se não fosse assim eu nem continuaria nessa luta. Se for pra continuar como estava eu paro agora”, afirma.
Para entender
A Constituição Federal de 1988, no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, afirma o reconhecimento da propriedade definitiva da terra aos remanescentes de quilombos, cuja regulamentação aconteceu em 2003. O processo de reconhecimento começa com uma solicitação feita pela comunidade ao Instituto de Terra do estado, no caso o de São Paulo (Itesp). Vinculado à Secretaria de Estado da Justiça e da Defesa da Cidadania, o órgão analisa a proposta e contrata um antropólogo. Este realiza estudos de campo, monta uma árvore genealógica e cruza informações. Conversa com a comunidade, faz medições da área indicada pelos moradores e coloca tudo num laudo antropológico.
Para Paulo Bessa, advogado e colunista de O Eco, existe uma grande falha neste processo. A composição do laudo por uma única pessoa o torna muito frágil, sem base suficiente para a certeza de que aquela área seja de fato quilombola. “O laudo tem um poder fantástico para algo que terá uma repercussão enorme”, explica. O ideal, segundo ele, seria uma comissão de no mínimo três avaliações independentes que dessem base suficiente à constatação da área como quilombo. “É muito poder em cima de um documento. Não é compatível com o estado democrático”, alega. Outro aspecto merecedor de avaliação minuciosa é a real descendência de quilombolas, que por definição são escravos fugidos que formaram um quilombo em uma área específica.
Segundo Carlos Henrique Gomes, assessor especial para questões quilombolas do Itesp, um dos primeiros passos é verificar se o relatório condiz com o território pedido. “O que é reivindicado não é necessariamente histórico”, afirma. Uma vez que a área é reconhecida pelo laudo, são colocados em discussão fatores primordiais. A localização, por estar dentro de um patrimônio natural, a infra-estrutura do núcleo pertencente ao estado, a praia como único ponto que chega ao nível do mar e os impactos ambientais. As questões são debatidas junto à comunidade, para que a decisão final atenda aos interesses de todos. De acordo com Bessa, a Constituição Federal está acima do SNUC. Ou seja: a lei que protege os quilombolas é mais forte do que a referente às unidades de conservação.
Impactos
Além do Sertão da Fazenda, o Núcleo Picinguaba tem mais três comunidades. Camburi, Vila Picinguaba e Ubatumirim, das quais a primeira foi reconhecida como quilombo em 2005. A área delimitada à comunidade tem 972 hectares e muitas famílias venderam suas terras a terceiros, mesmo que ilegalmente. “Quilombo é passado de pai pra filho. Agora que a terra é nossa ninguém tira a gente daqui”, diz Seu Genésio, líder comunitário do Camburi. Com o reconhecimento passaram a explorar mais o turismo e hoje recebem grupos do mundo todo. Logo na entrada da comunidade, uma casa de um proprietário de fora é alugada para visitantes. A diferença entre Sertão da Fazenda e Camburi é latente: copos de plástico, papéis e até recipiente de água sanitária são vistos entre as pedras que beiram rios e cachoeiras. Apesar de ter direito à propriedade da terra, a comunidade ainda não recebeu a titulação, que depende da desapropriação de particulares.
Dentre as categorias de unidades de conservação o SNUC estabelece dois grupos. O primeiro de Proteção Integral e o segundo de Uso Sustentável. Parques estaduais, como o da Serra do Mar, estão inclusos na primeira categoria, cujo objetivo é preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto de recursos naturais. Até hoje, no entanto, a dita proteção integral está longe de ser alcançada.
Aves e mamíferos de médio e grande porte, conforme pesquisa de campo do biólogo Rodrigo de Almeida Nobre, são abatidos para subsistência. Mestrando pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (ESALQ-USP), Nobre trabalhou durante pouco mais de um ano nos núcleos Santa Virgínia, Cunha e Picinguaba, no litoral norte do estado. “O que mais me impressionou foi a ausência de antas e queixadas em Picinguaba, em comparação aos outros dois núcleos”, diz. Cotias, jacus e esquilos são vistos com mais freqüência. O pesquisador alerta ainda que o grande número de cotias, devido à falta de competição, pode ser um sinal de desequilíbrio na cadeia alimentar. Consumidoras de frutos e sementes têm vantagem com relação a animais menores, o que ocasiona a diminuição de oferta suficiente de comida e o sumiço das espécies mais frágeis.
A lei do mais forte também parece ser aplicada pelo homem, que tem preferência por pacas e macucos – ave já rara. Neste ano a Polícia Ambiental ainda não prendeu ninguém, mas a temporada de caça começou . Depois da época da Páscoa, quando começa a esfriar, os animais estão mais bem alimentados – mais gordos – e descem a serra, por causa da queda da temperatura. Segundo o tenente Alexandre de Oliveira Guimarães, do 2º Pelotão de Polícia Ambiental do Litoral Norte, a maior parte dos infratores é de moradores da própria região. “Felizmente, vemos que o número de caçadores diminui a cada ano porque os jovens não têm o costume da caça e têm mais consciência ambiental”, explica. No final de abril começa a temporada de mamífero e em agosto e setembro é a vez das aves.
Segundo a secretaria do Meio Ambiente, o parque tem como principais finalidades o abrigo da biodiversidade e a base para pesquisas. No Picinguaba, de acordo com Eliane, estão em andamento 280 projetos de universidades do estado de São Paulo. Com o reconhecimento da terra como quilombo, a diretora acredita que as pesquisas também ficarão ameaçadas. “Seria uma incoerência de política de governo”, afirma. E, sem dúvida, um retrocesso numa história que já começou errada.
Regularização fundiária
Criado em 1977 e ampliado dois anos depois com a inclusão do Sertão da Fazenda, o Parque Estadual da Serra do Mar passa por 23 municípios do sul de São Paulo até a divisa com o Rio de Janeiro. Em 1984 as sedes começaram a ser implantadas e recursos do governo passaram a ser usados para indenizar donos de áreas desapropriadas. No Núcleo Picinguaba, na praia da Fazenda, casas foram destruídas. Duas, ainda em pé, foram posteriormente destinadas a moradores contratados como funcionários pelo parque.
Desde o início dos anos 80, na região do sertão existem 30 casas de famílias tradicionais. A plantação de mandioca, atividade em prática há muitos anos, foi autorizada e a permanência das famílias aceita, partindo da premissa de que eles preservariam o local. Atualmente, as comunidades estão incluídas como áreas prioritárias no plano de manejo do parque, finalizado em 2006 pelo Instituto Florestal junto ao Instituto Ekos Brasil.
Na década de 80, a remoção das comunidades foi descartada para não gerar problemas sociais. Ganhou prioridade a desapropriação de casas de veraneio e ocupações irregulares, consideradas ainda hoje um dos principais problemas de Ubatuba. Quem passa pela rodovia Rio-Santos (BR-101) pode observar a especulação imobiliária na zona de amortecimento do parque. Uma das casas pertence ao deputado Clodovil Hernandes, que tem parte de sua construção dentro dos limites do parque, no alto da serra com vista para o mar. Outra personalidade é o senador Eduardo Suplicy, cuja residência localiza-se na Vila de Picinguaba, no sentido do sertão. A regularização fundiário do parque nunca foi concluída e a pequena parte que é considerada oficialmente terra pública agora pode ser dada a uma comunidade quilombola.
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