“Antigamente, a gente contava o resultado da pesca do camarão em quilos: pesquei 20, 30 quilos. Hoje, a contagem se limita às dúzias”, lamenta Helias Barros Correa, presidente da Associação dos Maricultores da Babitonga. Aos 57 anos, ele está preocupado com a crescente degradação da baía onde vive, em Santa Catarina. E a captura cada vez mais difícil dos mariscos é um sinal claro de que os problemas são graves.
O nativo tem esperança que a criação da Reserva de Fauna da Baía da Babitonga, proposta pelo Ibama para até o fim deste ano, controle a pesca e dê início a um processo de recuperação do ambiente. Mas nem todos pensam como ele. “Teve gente que fez propaganda enganosa, dizendo que nós não iríamos poder pescar na baía. Isso não é verdade”.
Helias é o primeiro maricultor da baía, e quando levou a proposta da maricultura para a comunidade, de imediato, as pessoas não acreditavam que podia dar certo. “Fui chamado de doido, de vadio. Ora, plantar marisco na corda!”, lembra. As pessoas tinham medo do novo. Otimista, Helias acredita que, do mesmo modo, a comunidade vai reconhecer a importância da reserva de fauna para os pescadores e sua preservação.
A Baía da Babitonga é um complexo hídrico que abrange uma área de 1.400 quilômetros quadrados, representando a principal área estuarina catarinense. As lâminas d’água totalizam 167 quilômetros quadrados no entorno de 83 ilhas. É na Baía da Babitonga que estão 75% dos manguezais do estado de Santa Catarina.
Proteção necessária
A iniciativa tem o objetivo de promover uma integração harmoniosa entre as atividades produtivas e a conservação da natureza. Se for criada, a reserva de fauna será a primeira unidade de conservação federal desta categoria no país, que estabelece proteção especial a grupos de animais nativos residentes e migratórios e permite manejo sustentável de recursos pesqueiros, proibindo ainda caça amadorística ou profissional. Isso atende à atividade de mais de duas mil famílias de pescadores artesanais, o turismo, e principalmente dá maiores condições para implantação de iniciativas de conservação.
Atividades comerciais existentes na baía, como pesca, nado e passeios turísticos terão que respeitar a capacidade de suporte da região – o que não ocorre hoje. Tudo promete ser feito em discussão com o conselho gestor da unidade de conservação, assim que for criado. Espera-se que as pesquisas também aumentem daqui para frente, e dêem suporte a decisões futuras sobre a gestão da Babitonga.
Diversos estudos técnico-científicos realizados especificamente na Baía da Babitonga embasaram a proposta do Ibama. Colaboraram a Universidade da Região de Joinville (Univille), o Centro de Pesquisa e Gestão de Recursos Pesqueiros do Litoral Sudeste e Sul (CEPSUL/Ibama) e o Instituto Vidamar (responsável pelo projeto Meros do Brasil).
Para a bióloga da Universidade de Joiville (Univille), Marta Cremer, um dos principais problemas da baía hoje refere-se a questões de saneamento. E não vai ser a criação da unidade de conservação que irá resolvê-los, a princípio. Afinal, a área de abrangência da reserva envolve apenas as lâminas d’água e os manguezais. Os municípios no entorno, responsáveis pelo despejo de esgoto doméstico e industrial, ficam fora da área protegida.
“A unidade poderá ser utilizada pelos municípios e pelo estado como uma importante justificativa para conseguir recursos financeiros para as obras de tratamento de esgoto”, assegura Eduardo Godoy Aires de Souza, técnico da coordenação do bioma marinho costeiro da recentmente extinta Diretoria de Ecossistemas do Ibama. (Como se sabe, o cuidado com as unidades de conservação passou a ser responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).
Durante as consultas públicas, que se encerraram no mês de março, diversos setores da sociedade não concordaram com a proposta. As reuniões foram tensas. Contudo, Godoy avalia positivamente os encontros: “Muitas pessoas se posicionavam contra a reserva de fauna, por falta de informação. Depois das reuniões, muitos mudaram de idéia. Recebemos algumas propostas de ampliação dos limites da reserva e que serão analisadas pela equipe jurídica do Ibama, como também a sugestão de que o conselho gestor da unidade seja deliberativo e não consultivo”, diz.
Em nota distribuída à imprensa catarinense, a Associação Empresarial de Joinville (ACIJ) adotou posição contrária ao Ibama com os seguintes argumentos: “Os manguezais já constituem reservas intocáveis; a emissão de efluentes já está disciplinada e a mata de entorno encontra-se abrangida pela proteção legal conferida à Mata Atlântica”. O Ibama concorda com essa posição, mas acredita que a região só vai ser protegida de fato com a criação da reserva, já que parte dos manguezais estão aterrados pela pressão urbana de Joinville.
Com a reserva, espera-se garantir a proteção de espécies nacionalmente ameaçadas de extinção, entre as quais a toninha (Pontoporia blainvillei), que encontra na região de Babitonga um dos seus principais refúgios na costa brasileira. Este é o único lugar onde existe uma população residente desta espécie. Há ainda o boto cinza (Sotalia guianensis), o mero (Epinephelus itajara), e o robalo (Centropomus spp.), além de 6.200 hectares de manguezais, habitat exclusivo do caranguejo-uçá (Ucides cordatus) e um dos ecossistemas mais produtivos e ameaçados no mundo.
*Eunice Venturi é jornalista e especialista em educação ambiental. Atua em Joinville, Santa Catarina.
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