Feliciano Miguel Abdala é um ícone da conservação voluntária no Brasil. Por decisão pessoal, sem qualquer informação ambiental prévia, decidiu reservar 900 hectares de Mata Atlântica, que hospedam a mais bem estudada população de Muriquis do Norte. Parece trivial, mas a decisão foi tomada em 1944, no interior de Minas Gerais, por um tropeiro que, endinheirado com o resultado de suas andanças, resolveu comprar terra em Caratinga, para plantar café. Comprou mais de uma propriedade e, nelas, plantou café e ganhou muito dinheiro, que emprestava generosamente a pessoas da cidade. Essas transações anotou meticulosamente em dezenas de grandes cadernos, que também usava para sua contabilidade agrícola, às vezes adicionando pequenas notas sobre a pessoa e o objetivo do empréstimo, tudo escrito numa letra miúda e bem desenhada. Uma das propriedades, entretanto se tornou uma paixão, talvez uma obsessão: a Fazenda Montes Claros. Lá ele, personalidade arredia, se escondia da vida da cidade e encontrou talvez seus mais fiéis e amigos companheiros de vida, os mono-carvoeiros, os muriquis do norte. Decidiu protegê-los e a suas matas. Decisão histórica, de cuja envergadura ele talvez nunca tenha tido a verdadeira dimensão.
Os muriquis da Montes Claros viriam a se tornar o objeto de mais de 20 anos de estudos comandados por Karen Strier, do departamento de Antropologia da Universidade de Wisconsin, em Madison. Quando Feliciano recebeu Karen em sua fazenda pela primeira vez, em junho de 1983, uma jovem estudante de doutorado de Harvard, não tinha noção da importância científica que esse encontro teria. Nem Karen podia prever que essa se tornaria a aventura acadêmica de toda sua vida profissional, que a levaria à Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. Ela mesma, quando reconta sua história se espanta com os rumos que ela tomou: o que era apenas um projeto de tese de doutorado, virou projeto de vida.
Agora, porém, é possível dizer que Feliciano tinha, antes desse encontro decisivo, muito boa noção do valor dos macacos que ajudou a preservar, se preciso à bala, e da importância da primatologia para o acervo de conhecimentos da humanidade.
Pode-se saber, porque o primatologista Adelmar Coimbra recebeu dele uma carta, em abril de 1979, na verdade escrita em março, onde ele, entusiasmado com matéria publicado no Jornal do Brasil, sobre o centro de primatologia do Rio de Janeiro, dizia que Adelmar é “estudioso do assunto, o qual é de grande importância para a humanidade”. Por causa do lançamento do livro de Karen, “Faces na Floresta”, em português, Adelmar enviou cópia dessa carta a Míriam Leitão, que promoveu a tradução do livro sobre os muriquis de sua cidade natal, que gentilmente as cedeu para que O Eco as tornasse públicas. São um fragmento de uma história importante que ainda está sendo escrita.
Na carta, Feliciano diz: “quando cheguei em 1944 encontrei uma manada de macacos ‘Mono Carvoeiro’ mais ou menos com 8 monos. Proibi a caça terminantemente nesta Fazenda. Hoje já tem 4 tribos com cerca de 60 mais ou menos”. Não foi fácil preservá-los: “durante este longo período que aqui estou, mantive uma verdadeira guerra com os caçadores, predatórios, muitas e muitas vezes corri até risco de vida em defesa destes animais”. A carta foi enviada ao diretor do JB, em envelope separado, porque Feliciano não tinha o endereço da “digna pessoa”, embora reconheça que enviá-la ao destinatário seria “ uma amolação para V. Ex., mas tenho desejo que o mesmo receba a carta”.
Nela, Feliciano conta: “lendo o Jornal do Brasil, o meu jornal preferido há vários anos, deparei com a notícia seguinte: ‘Rio tem primeiro Centro de Primatologia do País’, onde aparece V. Ex. como cientista, estudioso do assunto…” E se apresenta, fazendo justiça à própria história: “sendo eu conservacionista autêntico, entusiasmei de tal maneira, que tomei a liberdade de lhe dar por meio desta o meus sinceros parabéns”. Faz, então, pelo que sei o único registro escrito de próprio punho a ser tornado público até agora de como se tornou proprietário da Montes Claros e decidiu preservá-la: “comprei uma propriedade agrícola em 1944, com 1000 – um mil hectares – em matas, cuja reserva eu consegui deixar intacta, sem destruir nada – trabalhando nas partes desmatadas – hoje é considerada a maior reserva de Mata Atlântica em mão de uma pessoa física”.
Convidou Adelmar para visitar a propriedade, o qual aceitou o convite prontamente, embora tivesse que registrar, em sua resposta, as limitações do trabalho no setor público. Mas não deixou de dizer a Feliciano que “seu espírito altruísta”, ao defender “patrimônio natural valiosíssimo, mas praticamente desconhecido, somente poderá ser melhor julgado daqui mais alguns anos”, mas que jamais poderia ser esquecido. Não foi. Adelmar tinha razão ao dizer que o tempo permitiria julgar melhor seu feito. Os conhecimentos produzidos pelas pesquisas lá realizadas e pelas que estão em realização, em sua reserva, fazem hoje contabilidade impressionante da riqueza que ele protegeu. E, infelizmente, Adelmar está quase emplacando uma outra previsão, esta, sombria: o verdadeiro valor do que Feliciano havia conservado só seria verdadeiramente estimado, “quando os outrora extraordinários ecossistemas da Região Atlântica encontrarem-se totalmente destruídos”.
A reserva, mantida intacta com o risco da própria vida, durou mais que aqueles longos 35 anos. Era a mesma, com mais muriquis, 56 anos depois, em 2000, quando morreu. Seus familiares a transformaram, então, em RPPN, e hoje a luta não é só para preservar a mata, mas para estendê-la e criar corredores, porque os muriquis, protegidos, aumentaram em número, mais ainda do que Feliciano registrou em 79, e estão chegando ao limite do sustentável nos 900 hectares cercados de pasto por todo lado. As “partes desmatadas” estão sendo recuperadas pela ONG que administra a RPPN, a Preserve Muriqui, presidida pelo neto de Feliciano, Ramiro Passos. Mas não será suficiente, se o objetivo for evitar seu declínio demográfico e extinção.
Karen me contou que eles se apropriam rapidamente das partes novas, tão logo elas começam a dar as folhas, flores e frutos que eles, uma espécie vegetariana e especialista, comem. As últimas notícias são de que os predadores, que haviam desaparecido há muito, começam a voltar. Uma onça parda já foi avistada na reserva, segundo contou Ramiro Passos recentemente. Essa explosão de vida silvestre nos pequenos fragmentos da Mata Atlântica, dá testemunho, simultaneamente, de sua resiliência e da escassez de habitat, que aumentam tremendamente sua fragilidade e ameaçam todas as espécies de extinção.
A carta de Feliciano é um registro histórico de pioneirismo e uma prova de que é possível conciliar a atividade empresarial e conservação. Se foi possível nos anos 40 do século passado, com muito menos tecnologia e conhecimento do valor da biodiversidade, o que dizer de hoje? Feliciano era considerado o homem mais rico de Caratinga e um excêntrico, meio louco, que era capaz de atirar em quem caçava uns macacos que tinha na sua mata. Ele era apenas diferente: tinha mais visão e uma intuição brilhante, que o levou, voluntariamente, a realizar uma das mais extraordinárias obras particulares de preservação do Brasil. Veja abaixo a íntegra da correspondência.
“Jornal do Brasil
Respeitável Sr. Diretor
Por favor faça chegar a carta junto, em mãos do Sr. Dr. Adelmar Coimbra Filho.
O motivo deste pedido é porque não tenho o endereço da digna pessoa acima.
Reconheço que é uma amolação para V. Ex., mas tenho desejo que o mesmo receba a carta.
De cujo favor desde já muito vos agradeço.
Atenciosamente
Feliciano Miguel Abdala
27/03/1979”.
“Exmo. Snr. Dr. Adelmar Coimbra Filho
Respeitável Senhor,
Lendo o Jornal do Brasil, o meu jornal preferido há vários anos, deparei com a notícia seguinte: ‘Rio tem primeiro Centro de Primatologia do País’, onde aparece V. Ex. como cientista, estudioso do assunto, o qual é de grande importância para a humanidade.
Sendo eu conservacionista autêntico, entusiasmei de tal maneira que tomei a liberdade de lhe dar por meio desta os meus sinceros parabéns, fazendo votos que V. Ex. tenha apoio dos Governos e demais Povos, a fim de que a sua valiosa contribuição tenha pleno êxito.
Comprei uma propriedade agrícola em 1944, com 1000 – um mil – hectares em matas, cuja reserva eu consegui deixar intacta, sem destruir nada – trabalhando nas partes desmatadas – hoje é considerada a maior reserva de Mata Atlântica em mão de uma pessoa física. Somente a maior mata é a do Parque Florestal do Rio Doce. Quando aqui cheguei em 1944 encontrei uma manada de macacos ‘Mono Carvoeiro’ mais ou menos com 8 monos. Proibi a caça terminantemente nesta Fazenda. Hoje já tem 4 tribos com cerca de 60 mais ou menos, não é só os monos, tem uma variedade de macacos Pretos, Barbados, Pacas, Cotias e muitos outros, tem uma variedade de pássaros muito grande, por esta razão quando li o seu artigo me empolguei.
Durante esse longo período que aqui estou, mantive uma verdadeira guerra com os caçadores, predatórios, muitas e muitas vezes corri até risco de vida em defesa destes animais, até que através da Copam consegui um guarda florestal fixo aqui, depois deste apoio que tive do I.B.D.F. tornou-se para mim uma verdadeira tranqüilidade.
Terei muita alegria em receber sua visita aqui nesta humilde casa, onde encontrará um grande admirador seu.
Muitas felicidades
Senhor Dr. Adelmar
Atenciosamente
Feliciano Miguel Abdala
Praça Cesário Alvim 161
C.P.E. 35.300 – Caratinga – Minas Gerais
27/03/1979”.
“Ilustríssimo Senhor
Feliciano Miguel Abdala
Pará Cesário Alvim, 161
35.300
Caratinga – Minas Gerais
Rio, 19 de abril de 1979.
Acabo de receber, embora um tanto tardiamente, sua importante carta de 27.III.1979, a qual, antes de me chegar às mãos, passou por diferentes entidades.
Fico-lhe imensamente grato pelas suas generosas palavras de estímulo e incentivo, especialmente porque partidas de pessoa com grande inteligência e nobreza de sentimentos pouco comuns atualmente.
Creia-me Sr. Feliciano, que seu espírito altruísta jamais poderá ser olvidado. Sua visão e coragem comprovadas, inclusive com risco da própria vida, em defender patrimônio natural valiosíssimo, mas praticamente desconhecido, somente poderá ser melhor julgado daqui mais alguns anos, quando os outrora extraordinários ecossistemas da Região Atlântica encontrarem-se totalmente destruídos.
Quanto ao convite que me fez para ir vê-lo em Caratinga, informo-lhe que tenho grande satisfação em conhecê-lo pessoalmente, bem como visitar sua propriedade, onde teria a oportunidade de observar a população de mono (Brachyteles arachnoides) que mantêm protegida, em mata de sua propriedade. Contudo, para poder conseguir a devida autorização para ausentar-me do estado, preciso que o senhor me envie convite mais específico, para poder solicitar uma licença de 2 a 6 dias, tempo que creio suficiente pra a visita. Seja como for, aguardo informações sobre a melhor época para ir, a um lugar onde mais facilmente poderia encontrar-me com o senhor, além de outros dados que julgar importantes.
Sem mais, aproveito a ocasião para afirmar meus protestos de elevada consideração e estima.
Adelmar F. Coimbra Filho”.
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