Reportagens

Onças em trânsito

Com descoberta de população de felinos na Caatinga, pesquisadores e governo começam a desenhar os limites de um corredor ecológico que ligará parques do Piauí à Bahia.

Fabiane Madeira ·
3 de janeiro de 2008 · 17 anos atrás

A onça-pintada, a jaguatirica e outros felinos da fauna brasileira exercem grande fascínio nos seres humanos. Apesar desse encantamento, elas integram a lista de espécies vulneráveis de extinção no país. Diversas iniciativas vêm sendo desenvolvidas para tentar garantir o aumento da população destes animais. Com a confirmação da presença da onça-pintada na Caatinga, uma nova possibilidade de preservação foi aberta: a criação do Corredor Ecológico das Onças na Caatinga.

Um corredor ecológico tem por objetivo ligar áreas já protegidas, mas não é considerado uma unidade de proteção integral, como os parque nacionais. Segundo a definição do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), os corredores são “porções de ecossistemas naturais ou seminaturais, ligando unidades de conservação, que possibilitam entre elas o fluxo de genes e o movimento da biota, facilitando a dispersão de espécies e a recolonização de áreas degradadas, bem como a manutenção de populações que demandam para sua sobrevivência áreas com extensão maior do que aquela das unidades individuais.”

Ou seja, os corredores garantem a mobilidade de indivíduos, possibilitando trocas genéticas entre diferentes populações. Esse novo cenário se traduz especialmente na possibilidade de crescimento da população de onças e na saúde genética da espécie. Os corredores ainda são recentes no Brasil e aproximadamente dez já foram criados, como os do Cerrado e o Bananal-Araguaia. A exemplo de outras iniciativas ambientais, os pesquisadores reclamam que a implementação do corredor é difícil. “Os corredores que existem não saíram do papel. Existem há anos, mas não têm serventia prática” analisa o coordenador da Rede de Atendimentos à Ocorrência com Carnívoros Silvestres e Casos de Predação e do Banco de Dados Georreferenciado do Centro Nacional de Pesquisa para a Conservação de Predadores Naturais (CENAP/Ibama), Rogério Cunha de Paula.

Com a criação de um corredor específico para as onças na região da Caatinga, os pesquisadores buscam interligar o Parque Nacional da Serra da Capivara (PI), o Parque Nacional da Serra das Confusões (PI), o Parque Nacional do Boqueirão da Onça (BA) e o Parque Nacional da Chapada Diamantina (BA). O desenho original prevê a proteção de cerca de 2 milhões de hectares dentro dos três estados. (ver mapa).

Onça na Caatinga

Para formular o desenho da área das onças, pesquisadores iniciam agora em 2008 um censo demográfico. Segundo Cunha de Paula, ainda não há estimativas de quantos animais existem na região. O que se sabe até agora é que, em dois anos de pesquisa, foram tiradas apenas três fotografias de onças-pintadas na região, sendo que, em duas delas, acredita-se tratar-se do mesmo animal.

O interior da Bahia é a uma das regiões mais inexploradas já que a presença dos felinos foi recentemente confirmada e o senso comum era de que dificilmente uma espécie requintada como a onça-pintada estaria presente em um bioma como a Caatinga. “Havia relatos informais, que não eram levados em consideração, por ser uma espécie de alto requerimento. O tabu era de que aquela era uma área pobre. A Caatinga não é pobre, é riquíssima”, acrescentou o pesquisador.

Já no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, a estimativa é de que a população chegue a 50 indivíduos. A projeção é o resultado de um estudo do Fundo para a Conservação da Onça-Pintada recentemente divulgado e que indicou uma densidade de 3,85 indivíduos por 100 km2.

O georreferenciamento irá permitir também a identificação das áreas de deslocamento da espécie. Detalhes como as fontes de água utilizadas e a abrangência dos deslocamentos irão indicar a movimentação dos animais. Também serão coletadas informações genéticas para verificar se as diferentes populações encontradas nos parques têm algum tipo de comunicação. O Fundo Nacional de Meio Ambiente já aprovou verba para custear as pesquisas, mas o valor destinado ainda não foi divulgado.

“Essas informações vão dar subsídio para escolher as áreas. Isso fortalece as ações para as negociações em geral”, destaca o professor do Cenap/Ibama, Ronaldo Morato. Segundo Morato, que também integra a ONG Pró-Carnívoros, zonas não utilizadas pelos animais ou de baixa qualidade ambiental poderão ser retiradas do desenho inicial. Segundo João Carlos Oliveira, técnico do Departamento de Áreas Protegidas do MMA, o corredor contará com ações planejadas, especialmente em relação à ocupação territorial por parte dos moradores. Para ele, os impactos para a população serão pequenos, já que o objetivo maior é garantir locais para a migração das populações.

Disputa e caça

O fato de não ser uma unidade de proteção integral, beneficia a população da caatinga, que sofre com a seca, a miséria e a falta de comida. Para contornar esse problema, serão criadas diferentes estratégias de utilização do solo. “Vamos procurar por atividades de menor impacto, aliado a uma estratégia de geração de emprego e renda compatíveis com a preservação de recursos naturais. A onça é um símbolo, é o topo de rede de organismos que tem importância estratégica”, explica o diretor de biodiversidade da Superintendência de Biodiversidade, Florestas e Unidades de Conservação da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (SEMARH), Milson Batista.

O envolvimento da população também é importante para evitar a caça da onça-pintada. A onça é um dos maiores caçadores da natureza e, por vezes, acaba comendo o gado criado pelos pequenos agricultores da região. Na disputa pelo alimento escasso, os agricultores abatem as onças – que acabam por reforçar o cardápio das famílias.

Ao mesmo tempo em que se busca preservar a espécie, o Corredor poderá ajudar também a acompanhar os efeitos do aquecimento global na região, através da criação de indicadores. A caatinga é um dos biomas mais suscetíveis a mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global e o regramento das atividades humanas na região, possibilitará ações como a ampliação da cobertura vegetal do solo, por exemplo, minimizando os efeitos do processo de desertificação.

Dez entidades e instituições irão fazer parte do grupo de trabalho que irá definir o desenho final do corredor. Apesar de ter sido oficializado em abril passado, o GT está sendo reformulado para atender às modificações ocorridas no Ibama – que foi dividido em dois. O Ibama continua responsável pela execução de políticas nacionais de meio ambiente, inclusive mantendo os trabalhos de licenciamento ambiental e fiscalização. Já o Instituto Chico Mendes, fica responsável pela gestão e proteção de unidades de conservação (UCs) e apoio a pesquisas relacionadas à biodiversidade, entre outras atribuições.

Em função dessa alteração, o GT passará a ser vinculado ao Instituto Chico Mendes. O MMA prepara a nova portaria, que está no departamento jurídico do Ministério e ainda não tem data para ser publicada. O Grupo deverá ser formado por representantes do Instituto Chico Mendes, sociedade civil organizada, comunidade científica e governos estaduais. Tomara que as discussões consigam realmente abrir alas para a o trânsito livre das onças.

* Fabiane Madeira é repórter free-lancer em Salvador (BA)

Leia também

Notícias
20 de dezembro de 2024

COP da Desertificação avança em financiamento, mas não consegue mecanismo contra secas

Reunião não teve acordo por arcabouço global e vinculante de medidas contra secas; participação de indígenas e financiamento bilionário a 80 países vulneráveis a secas foram aprovados

Reportagens
20 de dezembro de 2024

Refinaria da Petrobras funciona há 40 dias sem licença para operação comercial

Inea diz que usina de processamento de gás natural (UPGN) no antigo Comperj ainda se encontra na fase de pré-operação, diferentemente do que anunciou a empresa

Reportagens
20 de dezembro de 2024

Trilha que percorre os antigos caminhos dos Incas une história, conservação e arqueologia

Com 30 mil km que ligam seis países, a grande Rota dos Incas, ou Qapac Ñan, rememora um passado que ainda está presente na paisagem e cultura local

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.