Em outubro de 2007, o Governo Britânico divulgou uma notícia que pode minar os esforços de combate ao tráfico de animais silvestres nos países que “abastecem” o comércio ilegal. Após avaliação e consultas técnicas, definiu-se que 33 animais silvestres, totalizando 120 diferentes espécies, não seriam perigosos o suficiente a ponto de necessitarem de licença para serem comprados como animais de estimação pelo público em geral. A decisão levou a uma mudança na lei de Animais Silvestres Perigosos (Dangerous Wild Animals – DWA Act, em inglês) e levantou questionamentos no próprio país.
Na prática, esta mudança significa que qualquer cidadão britânico pode ir a uma pet shop e comprar sagüis, micos, lemurs, pequenos felinos selvagens e até bichos-preguiça sem qualquer espécie de controle (veja a lista completa dos animais abaixo). O Departamento para Assuntos de Meio Ambiente, Alimentação e Rurais (DEFRA, em inglês), órgão governamental responsável pela aplicação da lei DWA, se defende das críticas afirmando que o critério seguido foi apenas o do quanto os animais são perigosos para o homem.
“O objetivo desta lei sempre foi o de proteger as pessoas dos animais selvagens, e não o de conservação dos mesmos”, declarou a assessoria de imprensa da DEFRA ao ser questionada sobre as implicações da mudança da lei DWA, em vigor desde 1976. Segundo o departamento, questões de bem-estar animal e conservação são assuntos tratados por outras leis vigentes no Reino Unido, como a de Bem-Estar Animal (Animal Welfare Act) e a CITES (Convention on International Trade in Endangered Species of Wild Fauna and Flora).
“A lei de Animais Silvestres Perigosos cobria algumas questões de bem-estar animal, embora não tenha este objetivo. Por isso esperamos a vigência da lei de Bem-Estar Animal para tirar esses animais da lista dos que necessitam de licença, assegurando que não ficariam desamparados”, explica Dave Wooton, consultor da Divisão de Conservação de Animais Silvestres da DEFRA.
“Muitos animais silvestres podem até não ser propriamente perigosos para o homem, mas todos são extremamente difíceis de serem criados. Estamos muito desapontados e preocupados com a remoção desse grande número de espécies da lista”, diz Tim Thomas, cientista sênior do Departamento de Vida Selvagem da ONG inglesa RSPCA (Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals), referência no país em trabalhos de defesa proteção animal.
Impacto no Brasil
A lei britânica de Animais Silvestres Perigosos não sobrepõe, por exemplo, a CITES, que regulamenta o comércio em nível internacional das espécies ameaçadas. Mas as críticas negativas em relação à resolução do Governo ocorrem em função do “afrouxamento” no controle da compra limitar o alcance de leis de combate ao tráfico de animais silvestres. Cerca de 30% dos candidatos a pets exóticos nas casas inglesas constam oficialmente como espécies ameaçadas de extinção na Red List, documento de referência editado pela IUCN (World Conservation Union).
“Desde a divulgação da mudança na lei já recebemos várias ligações de pessoas achando que a compra de primatas como pets agora é permitida, já que não há mais necessidade de licença, e querendo saber como se faz para comprar um animal. A mensagem passada é muito perigosa, pois acaba incentivando o mercado de animais silvestres”, explica Rachel Hevesi, diretora do Santuário Monkey Trust, em Cornwall. “A partir de contatos com santuários de primatas na América do Sul, já tivemos evidências do impacto do mercado de primatas no Reino Unido na população selvagem nos países de origem”, ela completa.
Embora a diretora do Monkey Trust não tenha dados específicos do impacto do comércio britânico na conservação da biodiversidade brasileira, é importante considerar o fato de que 36% dos animais listados agora como não perigosos são originados da América do Sul, tendo inclusive espécies endêmicas e/ou de grande ocorrência no Brasil.
A facilidade de ter um animal silvestre como pet também faz lembrar o fato de que a captura ilegal da natureza já é apontada como uma das principais causas da ameaça de extinção enfrentada por algumas espécies brasileiras, segundo dados da IUCN. É o caso, por exemplo, da ararajuba (ave) e do sagüi-de-duas-cores (primata), animais endêmicos da Amazônia classificados como ameaçados e comumente comercializados de forma ilegal. Vale ressaltar que o sagüi-de-duas-cores é uma das espécies que foram tiradas da lista de animais perigosos e agora pode se tornar pet sem qualquer espécie de controle no Reino Unido.
“Esta mudança na Inglaterra pode ter uma forte influência no crescimento da demanda de animais silvestres dos países tropicais, conseqüentemente aumentando o tráfico. Animais como bicho-preguiça e macaco-de-cheiro, por exemplo, não precisam mais de licença e isso pode gerar uma corrida para retirada de mais animais das florestas brasileiras, dificultando ainda mais o controle do tráfico”, alerta Vincent Kurt Lo, analista ambiental do Ibama SP.
“É preocupante a iniciativa do Reino Unido. Particularmente porque o país não pode garantir a origem legal dos animais. Muitos deles podem até chegar “legalizados” no destino final, mas a origem pode ter sido de captura ilegal. Muitos traficantes utilizam falsa documentação e outros tipos de fraudes que são difíceis de detectar”, explica Dener Giovanini, coordenador geral da Renctas (Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres), ONG que trabalha no combate ao mercado ilegal no Brasil desde 1999.
O tráfico de animais silvestres é o terceiro em movimentação de dinheiro no mundo, atrás somente do de drogas e armas. E o Brasil, país detentor de uma das maiores biodiversidades do planeta, infelizmente tem um papel de destaque neste mercado. Estima-se que somos responsáveis por cerca de 15% do mercado ilegal de animais silvestres no mundo, tendo 400 quadrilhas organizadas realizando a captura e tráfico – sendo que 40% possuiriam ligações com outras atividades ilegais.
Segundo um levantamento feito pelo Ministério do Meio Ambiente e pela Renctas, cerca de 38 milhões de animais são retirados de ecossistemas brasileiros a cada ano para alimentar a demanda do tráfico. O destino desses animais – ou de pelo menos parte deles, já que se sabe que apenas um entre 10 animais sobrevive ao transporte até o destino final – é abastecer o mercado externo (principalmente Europa e Estados Unidos) de colecionadores de pets exóticos e também o mercado interno, se tornando mercadoria à venda em feiras ou “criadouros registrados de fachada.”
Diante de tantas implicações e questionamentos, a única certeza em torno do mercado de animais silvestres é que todo o cuidado é pouco. Afinal de contas, a única certeza é a de que lugar de animal silvestre é, definitivamente, na natureza.
Animais que não precisam mais de licença para ser pets no Reino Unido:
1. Lemurs (Avahi laniger) |
* Jaqueline B. Ramos é jornalista ambiental free-lancer e edita o blog Ambiente-se.
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