Sinistros e perigosos? Só pela fama construída por uma mistura de desinformação e crendices populares reforçadas pelo terror do cinema. Na visão científica, os morcegos estão entre os animais mais úteis ao Homem. Únicos mamíferos voadores, têm um papel indispensável na dispersão de sementes, no controle da quantidade de insetos e na regeneração de florestas. Mas só com mais pesquisas e conhecimento público se jogará luz sobre seus valiosos hábitos noturnos.
Na América Latina, por exemplo, morcegos e aves formam uma dupla imbatível na manutenção do verde. Entre 50% e 90% das árvores da região dependem de aves, mamíferos, répteis, peixes e anfíbios para dispersarem suas sementes. Em algumas localidades, cerca de 80% do trabalho é feito por aves e morcegos – elas durante o dia, eles à noite. O saboroso maracujá e o pequi, fruto típico do Cerrado, são algumas espécies cuja polinização está ligada ao trabalho dos quirópteros.
Por capricho da natureza, esses animais preferem plantas pioneiras, enquanto os emplumados procuram mais a vegetação de florestas maduras. “Morcegos são os principais responsáveis pela regeneração das matas e as aves por sua manutenção”, diz o biólogo Marco Mello, pesquisador associado do Departamento de Botânica da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar (SP) e criador do site Casa dos Morcegos.
Apaixonado por esses animais que trocaram as mãos por asas ao longo da evolução, Mello explica que há grupos de morcegos ligados à reprodução de grupos de plantas e, nesse meio, espécies especializadas, vinculadas a um único vegetal. “Estudos mostram que a estrutura básica dos serviços ambientais de polinização e de dispersão de sementes é mantida por espécies generalistas, mas há algumas relações mais estreitas”, diz o doutor em Ecologia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.
Detalhes sobre esse comportamento serão publicados ainda este ano por Mello, graças ao projeto Morcegos e Frutos, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp. No entanto, a importância ecológica e econômica dos quirópteros ainda é sombreada pelas escassas produção e divulgação científicas nacionais. No Brasil, principalmente desde a década de 1980, algumas pesquisas têm avançado em avaliar o papel dos morcegos na manutenção de florestas através da dispersão e da polinização, mas raríssimas tratam do controle de insetos ou colocam preço nesses serviços ambientais, importantes inclusive para a agricultura.
Nuvens no radar
Já nos Estados Unidos, estudos realizados na região do Texas demonstraram que a espécie Tadarida brasiliensis (imagem ao lado) é um peso-pesado no controle de insetos nas lavouras de algodão e outras culturas. Mesmo com oito centímetros, é um dos maiores comedores de insetos daquele país. Por lá, forma as maiores colônias de mamíferos do globo, com até 20 milhões de indivíduos. Por aqui, vivem em grupos de dois mil morcegos em média, principalmente no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Apesar do nome científico associá-la ao Brasil, tem parentes espalhados pelo Continente Americano.
Uma pesquisa de universidades estadunidenses e mexicanas, com uso de balões e radares de aviação, mostrou que todas as noites até cem milhões de Tadarida deixam suas cavernas e outros abrigos no centro-sul do Texas para se alimentar com toneladas de insetos. Fêmeas grávidas comem até 2/3 de seu peso por noite. O cardápio dos animais inclui um tipo de lagarta que ataca os algodoais na região dos condados (semelhantes às brasileiras comarcas) de Uvalde, Medina, Dimmit e Atascosa.
Os cálculos científicos mostraram que o banquete gratuito dos morcegos pode economizar dinheiro, evitando aplicações de agrotóxicos no início dos plantios. Para uma área de quatro mil hectares, deixariam de ser gastos até US$ 100 mil em venenos. Também se driblariam problemas sócio-ambientais, como gastos em saúde pública, perda de peixes e aves e contaminação de águas subterrâneas, estimados em US$ 6 mil pelos pesquisadores.
“O Tadarida brasiliensis reduz os danos às plantações, elimina ao menos uma aplicação de pesticidas e possibilita um atraso na primeira aplicação de agrotóxicos. Cada um desses impactos tem benefícios econômicos e ambientais”, conclui o estudo.
Nacional e global
No Brasil, há pouco mais de 160 espécies de morcegos registradas. Dessas, apenas três se alimentam de sangue, de aves e de outros mamíferos, inclusive de vacas e de cavalos. A maioria prefere frutas e insetos, havendo também os que comem aves, peixes, ratos e até outros morcegos menores. Cerca de uma centena delas são encontradas na Amazônia. “Nenhuma das espécies hematófagas forma grandes colônias”, diz Susi Missel Pacheco, presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo de Quirópteros.
Entre os morcegos verde-amarelos (confira o slide-show acima), se destacam o grandão e carnívoro Vampyrum spectrum, encontrado na Amazônia, Cerrado e Pantanal. Com até um metro de envergadura, é o maior morcego das Américas. Enquanto isso, o pequenino insetívoro Myotis nigricans tem apenas quatro gramas. Há até um morcego-pescador, o Noctilio leporinus, que vive sempre perto da água. Sem falar naqueles com a cara bem estranha, como o Lonchorrhina aurita, tudo para melhorar sua ecolocalização, um radar natural que ajuda os morcegos a caçar na escuridão.
No mundo, há cerca de 1,2 mil espécies, todas esbanjando cores, formas e tamanhos variados. Existem desde pequenas bolotas de algodão, como o Ectophylla alba até gigantes como a raposa-voadora, com até 1,5 metro de envergadura. E não se pode esquecer do linguarudo Anoura fistulata, que pode estender sua língua a uma vez e meia o tamanho de seu corpo.
Publicação alada
Conhecer melhor as características e os hábitos desses animais também será fundamental para o desenvolvimento de estratégias de conservação e de valoração econômica de seus serviços ambientais. Agora, parte da carência nacional de informações consolidadas sobre os quirópteros começa a ser sanada com o livro Morcegos no Brasil (Editora Armazém Digital).
A obra será lançada no início de maio, em Porto Alegre (RS). Reúne 67 trabalhos inéditos, teses de mestrado e de doutorado, de argentinos, alemães e ingleses, mas principalmente de brasileiros. Além que 500 páginas de pura informação, haverá filmagens em DVD e farto material para educação ambiental. “Ainda conhecemos muito pouco sobre o comportamento dos morcegos, por isso é difícil evitar alguns problemas, como o perigo da transmissão da raiva”, diz Susi Pacheco.
Conforme a pesquisadora, órgãos de saúde pública e biólogos estão se unindo para investigar os hábitos dos morcegos em áreas urbanas, onde costumam habitar forros de telhados e outras construções humanas, quando, mesmo mal vistos, ajudam a controlar insetos que atazanam nosso dia-a-dia. Nos Estados Unidos, já se usam casas de morcegos especialmente construídas. Por aqui, a experiência ainda engatinha. “O mais difícil é convencer as pessoas a deixá-los em seus telhados”, comenta.
Não bastasse o chega pra lá urbano, muitos morcegos já estão ameaçados de extinção. Das 45 espécies estadunidenses, nove estão na lista vermelha. Por lá, os principais motivos de alerta são a destruição de cavernas para coleta de guano (excremento), obras de infra-estrutura, poluição, queimadas, vandalismo e turismo descontrolado. Nada que o Brasil não ofereça em boa quantidade. Na lista nacional de fauna ameaçada figuram cinco morcegos.
Mas por aqui, já que não se comem morcegos como na Tailândia ou Vietnã, a maior ameaça é atribuída ao desmatamento. “Algumas espécies precisam de áreas bem grandes com florestas ricas em biodiversidade para se alimentar e reproduzir”, diz Marco Mello, da UFSCar.
Cuidados básicos
Os morcegos podem transmitir raiva, como qualquer outro mamífero. Por isso, nunca se deve tentar pegar esses animais sem acompanhamento de um biólogo ou sem proteção. O perigo de infecção entre os hematófagos é maior, por isso criadores de bois, cavalos e outros animais devem manter seus rebanhos vacinados e abrigados. Nas cavernas abafadas onde se acumula grande quantidade de guano, há o perigo de se contrair doenças respiratórias. “Não se deve entrar em cavernas com muito guano no chão. O mesmo vale para o excremento de andorinhas e outras aves, pois fungos crescem em qualquer acúmulo de fezes em locais escuros e abafados”, explica Mello.
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