Poucos minutos depois da hora combinada, o guia Manuel Jimenez Castillo desponta na esquina mais próxima naquela manhã sonolenta. A duas quadras, uma van aguarda para nos transportar até o início da trilha. De carona, um enorme e inquieto São Bernardo chamado Nano caminha e baba sobre mochilas, bastões e demais apetrechos típicos do montanhismo. Paciência.
Em menos de quarenta minutos deixamos os setecentos metros de altitude da cidade e saltamos do veículo, já nos 2.100 metros. Um desnível e tanto. Dali já se avista a estação de esqui de Pradollano, a mais meridional da Europa. Operando o ano inteiro, um teleférico leva do local até as bordas do pontiagudo Veleta (3.398 metros). Mas por enquanto driblamos qualquer conforto, apertamos os cadarços das botas e começamos a levantar poeira serra acima.
Adentramos o parque natural (algo como uma APA) sem dificuldade e mantendo todo o dinheiro no bolso. Deixamos pegadas em trilhas bem marcadas, atalhos para se desviar de uma estradinha asfaltada por onde cruzam ciclistas e um pequeno ônibus com mochileiros de menor disposição. Aqui e ali, ovelhas pastam na vegetação que vai rareando com mais altitude. A partir de 2.500 metros, desaparece o bosque mediterrâneo e sobrevive apenas um verde rasteiro. À distância, Granada se mostra coberta por uma camada de poluentes, produto da frota crescente e dos meses sem chuva. Coisa que qualquer paulista conhece de perto.
Contornando a base do Veleta, notamos que porções de neve resistem bravamente ao verão em pontos abrigados ou mais profundos em meio à cadeia montanhosa. São pequenas amostras das toneladas de gelo que recobrem a serra a cada inverno, triturando pedras com força inimaginável e esterilizando os cumes regionais. Ultrapassamos uma dessas manchas com facilidade. Alguma alma preocupada com o despenhadeiro ao lado havia escavado perfeitos degraus de uma escada.
O guia nativo oferece em seguida duas opções para avanço. Optamos pela que depende de um trecho segurando firme em uma corrente. Com quatro patas firmes no chão, Nano prefere um longo desvio. Caminho também percorrido por dezenas de outras pessoas, de todas as idades, inclusive por famílias inteiras.
O gosto da população pelas caminhadas é notório, fazendo com que a Federación Andaluza de Montañismo (Fedamon) tenha mais de sete mil associados e consiga reunir outras três mil pessoas em atividades como o Día Nacional del Senderista, este ano celebrado em maio.
Manuel Castillo reconhece que isso ajuda seu trabalho, mas reclama que no inverno muitos servidores do parque nacional que protege a Sierra Nevada passam informações não muito corretas sobre o estado da neve e das trilhas. Quem dera um serviço semelhante no Brasil (mesmo com esses pequenos deslizes), bem como as estações de rádio, helipontos e refúgios de montanha espalhados pela região. Que inveja!
Deixando os contrafortes do Veleta para trás, baixamos por um pequeno vale de onde se vê a floresta muitos quilômetros abaixo e, depois de uma breve contemplação no Mirador del Fraile, alcançamos uma elevação onde colocamos os olhos em uma belíssima laguna azulada. Logo à frente, a rampa inclinada que dá acesso ao ponto mais alto da Espanha continental e da Península Ibérica. Por capricho da natureza, a maior elevação do país das touradas fica nas lhas Canárias. O pico Teide tem 3.718 metros e também está cercado por um parque nacional.
Descendo pela cascalheira com a Laguna de la Caldera à direita, encontramos um pequeno, limpo e cascudo refúgio do tipo vivac, onde sacos de dormir, comida e outros equipamentos são indispensáveis. A placa na sua entrada indicava 3.080 metros. E bastava uma olhadela para perceber que os quatrocentos metros restantes até o topo do Mulhacén seriam longos e penosos. O ângulo de subida é muito alto, fazendo a trilha serpentear pelas pedreiras no colo da montanha. Momentos para medir a passada e buscar o apoio dos bastões.
Os metros finais para o cume parecem ainda mais pesados com a comemoração vibrante de quem chegou antes. Mas não há recompensa igual para quem descobriu que o mundo parece bem maior lá de cima.
Com olhos voltados para o sul, avistamos a cordilheira de Contraviesa e uma infinidade de nuvens (infelizmente) cobrindo o Mediterrâneo. Ouvimos de outros montanhistas que nos dias mais limpos se vislumbra até trechos do norte africano. É dali que o Saara envia sua baforada, que parece tacar fogo no ar em certos dias de verão à espanhola.
Vasculhamos o cimo do Mulhacén, sem encontrar nenhuma pista do túmulo do muçulmano que lhe emprestou o nome. Mas topamos com restos de um antigo abrigo e com uma capela erguida em homenagem aos britânicos Colin Riddiough (46), Paul Dick (56) and John Plews (30). Eles morreram congelados na montanha no inverno de 2006, pegos por uma tempestade.
Feitas as tradicionais fotos, começamos nossa descida rumo ao fim do primeiro dia de caminhada. A trilha segue calçada por pedras e notamos cabras montesas espiando as roupas coloridas do turismo globalizado. E não se podem perder cenas insólitas, como um carrinho de compras (veja aqui) aparentemente abandonado a mais de três mil metros de altitude.
Nosso destino é o Refúgio Poqueira, a exatos 982 metros de descida não exatamente por trilha, mas galgando espaços pelos pedregulhos do desfiladeiro. Joelhos fervendo e quase quatro horas depois, sacamos as botas com inequívoco prazer já na face sul da Sierra Nevada.
Com infraestrutura impecável e vidros duplos para suportar a poderosa friagem invernal, o refúgio está aberto o ano todo e é gerenciado pela Fedamon. Tem Internet, eletricidade, telefone, heliponto, informa sobre condições climáticas e tem chuveiros com água quentíssima. Um luxo para corpos cansados de várias nacionalidades.
Rumo à cidade branca
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Visualizar Alpurrajas (Espanha) em um mapa maior
Uma noite bem dormida faz milagres, mesmo nas camas coletivas típicas de abrigos de montanha. Com espírito renovado, nos lançamos ao próximo trecho, acompanhando cursos d´água até uma das Alpurrajas (mapa acima). Exibindo o branco da cal que espanta moscas e outros insetos, esse conjunto de cidadelas foi o último local dominado pelos mouros na Espanha, anos após a tomada do país pelo reinado católico, em 1492.
Perdendo altitude, cruzamos por várias acequias. São semelhantes aos canais construídos no Peru, mas foram abertos por mãos árabes na Idade Média para irrigar cultivos, abastecer casas e cidades com a água que brota das montanhas. Aliás, da Sierra Nevada também desce o Rio Genil, principal fonte de abastecimento de Granada, além de outros cursos vitais para a região. Nessas horas costuma vir à cabeça aquele trecho de Guantanamera: “el arroyo de la sierra me complace mas que el mar”.
Já de volta ao bosque mediterrâneo, percorremos trilhas úmidas e sombreadas que se equilibram nas margens do vale escavado pelo rio. Cruzamos a pequena central elétrica de Poqueira, construída em 1957 e ainda em pleno funcionamento. A partir daquele símbolo de civilização moderna, abandonamos os caminhos montanhosos para acelerar o passo sobre uma estrada poeirenta. Até topar com a luminosidade de Capileira. Puro contraste com o verde das matas.
Apinhada de pequenos restaurantes e mercados com tapeçarias e artesanato inspirados na tradição árabe, o povoado de pouco mais de 600 habitantes vive da agricultura e do turismo. Em meio a um delicioso e fortificante prato alpurrajeño, colocamos na ponta do lápis o saldo da caminhada: mais de quarenta quilômetros percorridos em dois dias e, para espanto de quem convive com a realidade tupiniquim, o único lixo encontrado foi uma pequena garrafa de água próxima a um refúgio.
Antes de nos despedirmos do guia Manuel Castillo e de seu fiel escudeiro Nano, soubemos que por Capileira passa um dos trechos da Sulayr, uma trilha gigantesca com cerca de trezentos quilômetros ao redor de toda a Sierra Nevada. É a maior senda da Espanha, em uso desde 2007. Veja aqui e imagine algo assim no Brasil.
E para afastar o cansaço no retorno à Granada, nada melhor do que alternar sauna, massagem, águas quentes e frias de um inigualável banho árabe. É como nascer de novo.
Atalhos:
Junta de Andalucía / Medio Ambiente
Turismo em Granada
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