Reportagens

Preparem os anzóis

Secretaria de Pesca do governo Lula vai ganhar mais poder. Objetivo é dobrar a produção em uma década. Ibama quer manter gestão ambiental e endurecer licenciamento da atividade.

Felipe Lobo ·
4 de julho de 2008 · 16 anos atrás

Responsável pela movimentação de 3,2 bilhões de reais por ano para a economia nacional, a atividade pesqueira pode dobrar sua produção dentro de uma década. Preocupada com o aumento da demanda da União Européia e Japão por proteína animal nos próximos anos, a Secretaria Estadual de Aqüicultura e Pesca (SEAP), diretamente ligada à Presidência da República, estuda mecanismos para multiplicar a exportação e o consumo interno de pescados. Uma das propostas para alcançar o objetivo é unificar toda a gestão da exploração de recursos pesqueiros dentro da pasta comandada pelo ministro Altemir Gregolin.

Não à toa, nesta última quinta-feira, o presidente Lula anunciou, de acordo com reportagem do Estado de S. Paulo que a SEAP se transformará de fato em um Ministério, algo que dará muito mais autonomia na gestão financeira e administrativa do setor pesqueiro.

A incapacidade na distribuição de funções sobre a atividade pesqueira dentro da União data de longo tempo. Em 1998, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento era responsável pelo Departamento de Pesca e Aqüicultura (cujas incumbências hoje pertencem à SEAP). Desde então existe uma estranha divisão. A SEAP ganhou responsabilidade direta sobre os animais subexplotados, enquanto as espécies sobreexplotadas (retiradas do mar acima de seu nível de sustentabilidade) ficaram a cargo dos órgãos ambientais.

Os anos mostraram que as responsabilidades do Ministério do Meio Ambiente (MMA), já que a pesca predatória vai muito bem, são enormes. Segundo a Avaliação do Potencial Sustentável de Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva do programa Ravizee, do MMA, 80% das espécies nacionais comercializadas já foram exploradas em níveis superiores aos recomendáveis ou estão sob ameaça. O caranguejo, cuja pesca de profundidade foi retomada em 1999, é um exemplo de animal em risco de extinção.

“Além disso, recursos descobertos pelo Revizee ainda subexplotados, como o peixe-sapo, se tornaram sobreexplotados em apenas cinco anos, antes mesmo que o programa chegasse ao fim. Isso mostra que é difícil impedir o avanço do potencial econômico, ele chega antes de medidas de preservação”, avalia Letícia Reis de Carvalho, técnica de Gerenciamento Costeiro e Marinho do MMA. O Brasil não é o único a ostentar séria crise debaixo do mar. De acordo com informações da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), 52% dos bens pesqueiros mundiais já estão com exploração máxima.

Com o objetivo de movimentar de 5 bilhões a 6 bilhões de reais/ ano com a produção pesqueira já nos próximos 5 anos, o governo estuda maneiras de tornar a meta sustentável. É o que afirma José Claudenor, sub-secretário de Planejamento da SEAP. “Já sabemos, por exemplo, que não há potencial de crescimento na costa brasileira e nas águas continentais. Ali, é preciso renovar os estoques”. Para atingir a meta, a SEAP espera recuperar a pesca artesanal, responsável por 60% do pescado brasileiro, melhorar as embarcações para incrementar a pesca oceânica

“A fauna marinha é um produto natural, mas que se transforma em recurso pesqueiro quando o homem explora. Por isso, precisamos pensar na gestão da atividade como um todo, uma visão holística. A idéia é que a SEAP tenha como pilares o ambiente, a produção, o consumidor e o pescador. Tudo está ligado no mesmo projeto”, diz Claudenor. Ele explica que o plano de gestão integrada, que deve culminar no novo ministério, será entregue para análise a um grupo de trabalho com membros da comunidade técnico-científica, sociedade civil e governo. Depois, passaria pelo crivo do MMA.

A pasta gerida por Carlos Minc, apesar de não assumir abertamente o pavor de um acréscimo tão expressivo no comércio de seres marinhos, defende que a atividade deve ser olhada com atenção. “O aumento da produção pelo extrativismo é possível de maneira bastante limitada. São poucos os recursos pesqueiros que ainda se mostram aptos para captura, como o bonito-listrado, o atum-branco e a anchovita. Para os demais recursos, é preciso que o processo ocorra dentro da capacidade de suporte da espécie e desde que os estoques sejam recuperados”, afirma Roberto Galucci, gerente de Recursos Pesqueiros do Ministério do Meio Ambiente.

Recusa do Ibama

A intenção da SEAP de abocanhar toda a gestão de pesca no país não é bem vista pelo alto escalão do Ibama. Segundo Antônio Carlos Hummel, diretor de Uso Sustentável de Biodiversidade e Florestas, a secretaria deve concentrar seus esforços para o fomento da atividade – como já faz, por exemplo, ao subsidiar a compra de óleo diesel para embarcações. “De acordo com um princípio mundial, a fiscalização deve estar a cargo do órgão que pratica o licenciamento ambiental. Com esta proposta, a SEAP está na contramão da história”, afirma.

O principal problema observado por Hummel, no entanto, diz respeito justamente à ausência quase total do processo de autorização sobre impacto ecológico para a atividade pesqueira no Brasil. Até hoje, apenas a pesca artesanal e comercial do complexo estuário-lagunar da Bacia Hidrográfica da Lagoa Mirim e do estuário da Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul, passou por um processo de licenciamento dentro do Ibama. No restante do território nacional, o que se vê é um completo descaso no controle prévio de crimes ambientais contra a fauna marinha.

Mas, ao contrário do que se pode imaginar, a legislação brasileira exige estudos de possíveis pressões ao ecossistema natural para cada empreendimento que use recursos pesqueiros. A Lei 6.938, de 1981, da Política Nacional de Meio Ambiente, é bastante clara ao dizer que as atividades com potencial risco ao meio ambiente devem passar pelo crivo dos órgãos competentes. A pesca é a única que não cumpre o que determina a Constituição Federal. “O resultado é que a gestão deste ofício no Brasil não tem transparência para a sociedade. A pesca precisa ser tratada da mesma forma que a floresta, por exemplo. Há ali uma fauna silvestre também”, explica Hummel.

Na tentativa de regularizar o processo, a diretoria comandada por Hummel enviou, em janeiro deste ano, um despacho técnico para o então presidente do Ibama, Bazileu Alvez Margarido. O texto defendia a necessidade de colocar a Lei 6.938 em prática também para a pesca e criticava a postura da SEAP. “Assim, sob qualquer prisma (…) conclui-se que a licença ambiental, emitida pelo Ibama ou o órgão ambiental competente, é uma condicionante das permissões e autorizações para a pesca artesanal e comercial no Brasil”, diz um trecho do documento.

No final, o despacho propôs a criação de um Grupo de Trabalho de caráter consultivo no âmbito do Ministério do Meio Ambiente a fim de redigir uma Instrução Normativa que defina o uso dos recursos aquáticos. No dia 21 de maio, o Diário Oficial da União instituiu o GT sob a assinatura de João Paulo Capobianco, então ministro interino do Meio Ambiente. Após algumas reuniões, um servidor do Ibama recebeu a tarefa de analisar como é feito o processo de licenciamento ambiental para pesca em outros países. Com o resultado em mãos, o GT volta a se encontrar. A expectativa é que o trabalho seja concluído em até dois meses.

Leia também a reportagem “O mar não está para peixe”.

  • Felipe Lobo

    Sócio da Na Boca do Lobo, especialista em comunicação, sustentabilidade e mudanças climáticas, e criador da exposição O Dia Seguinte

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