E todos vão fingindo viver decentemente*
Imerso no escândalo de corrupção mais bem filmado da história brasileira, o Distrito Federal também amarga anos de conturbada urbanização, semeando desordem na ocupação da terra e impactos negativos na qualidade do ar, da água e de vida da população. Fontes ouvidas por O Eco comentam as origens do problema e projetam um futuro caótico se esse processo não for contido.
Geógrafo com pós-doutorado na Universidade do Texas (Estados Unidos), Aldo Paviani (75) chegou em Brasília um ano após o fechamento do Congresso pelo AI-5, em 1969, ato que marcaria o início do período mais duro da Ditadura Militar. Desde aqueles dias, acompanha a evolução urbana do Distrito Federal. E não tem gostado do que vê. Ele conta que a ocupação do território é baseada em planos delineados durante o regime e temperados com fortes doses de especulação imobiliária, desrespeito aos limites ambientais da região e dilapidação do Cerrado. “Aqui a primeira coisa que fazem é passar trator, arrancar tudo sem nenhum respeito. Não fica um pé de pau”, ressaltou.
“A vegetação não foi tombada, só a cidade (como patrimônio cultural da humanidade, em 1987). Além disso, o Plano Piloto se tornou o centro de tudo, empurrado a população de menor poder aquisitivo para núcleos com baixa oferta de empregos. Isso provoca grande vaivém diário desde as cidades satélites. As autoridades não movem uma palha para descentralizar esse processo. Pelo contrário, criam mais núcleos afastados, elevando o uso do carro, já que o transporte público é completamente ineficiente”, disse Paviani, autor de livros como Controvérsias Ambientais e Moradia e Exclusão.
O Distrito Federal tem hoje mais de 1,1 milhão de veículos – 75% de automóveis. A frota dobrou desde o ano 2000 e cresce em média 0,8% ao mês, ou quase nove mil carros. O Departamento de Trânsito distrital não sabe quantos veículos se deslocam entre cidades-satélite e Plano Piloto. Engarrafamentos diários são registrados em inúmeros pontos nos horários de pico. No início da manhã e fim da tarde, a via “Estrutural” tem funcionado apenas em um sentido para dar conta do enorme número de veículos.
Um carro parado em um engarrafamento com o motor ligado libera quase dois quilos de Dióxido de Carbono (CO2) por hora. Por essas e outras que a poluição atmosférica na capital federal já preocupa especialistas que acompanham o assunto (veja aqui). “Tamanha movimentação afeta a vida das pessoas, é uma agressão”, ressalta Paviani.
Estressado
Um dos estressados era Jorge Diehl, funcionário do Banco do Brasil que aportou na capital em 1998, buscando o mito da cidade planejada. Viveu no Plano Piloto com a família até 2005, quando conseguiu comprar um apartamento em Águas Claras. Ficou por lá um ano e meio, depois fugiu do trânsito insuportável e alugou o imóvel, a vinte quilômetros da região central, onde passou a morar. “Para alcançar o Plano Piloto e dentro de Águas Claras o trânsito é caótico. Íamos para lá só para dormir, depois de quase duas horas de engarrafamentos. A cidade se tornou uma selva de pedra”, disse.
Segundo Paviani, situações como essa se repetem em outras cidades-satélite, como Guará e Taguatinga, porque as intenções urbanísticas iniciais morreram sob um manto de improviso e falta de planejamento, cedendo espaço à invasão de terras para formação de condomínios irregulares e à especulação imobiliária que afastou a possibilidade de compra de apartamentos em regiões centrais pela maioria da população.
O primeiro condomínio irregular no Distrito Federal surgiu em 1975. A ocupação desregrada de terras e o crescimento demográfico calcado em migrações se intensificaram a partir de 1988, na primeira das quatro eleições de Joaquim Roriz para o governo distrital. Hoje, são 513, conforme dados da Terracap, empresa oficial de terras.
“Minha estimativa é de que existam quase 650, pois a conta do governo inclui apenas os mais estruturados, com casas e organização condominal. Meu censo também pesa locais onde ruas foram abertas e lotes vendidos, e um grupo difícil de computar, dos condomínios “de gaveta”, que não abriram ruas, mas cercaram áreas públicas e têm lotes sendo vendidos”, ressaltou o professor Frederico Flósculo, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília.
Uma grande festa
O mercado imobiliário “candango” é o segundo do país, atrás de São Paulo. O último salão de imóveis em Brasília vendeu cerca de 181 milhões de reais em três dias, podendo chegar a 227 milhões pós-salão para 733 unidades e total de 407 milhões até dezembro. Entre os cerca de dez mil imóveis ofertados, os valores variavam de 55 mil a 4 milhões de reais. Há quitinetes no Plano Piloto ofertadas por meio milhão de reais. Um “leque extramamente democrático das ofertas”, comentaram representantes do setor.
Na capital federal e entorno, é possível encontrar condomínios e prédios nomeados como Montparnasse, Ilhabela, Real Paris, Ilhas Maurício, Península e até Super Quadra Atlântica, onde será instalada uma piscina de água salgada ladeada por torres espelhadas, na região já batizada como “Barra da Tijuca do Planalto”. “Brasília está cada vez mais parecida com Dubai, nos Emirados Árabes, totalmente deslocada do ambiente onde está, no Cerrado”, disse Paulo Fiúza, do movimento Cerrado Vivo.
Dados da Terracap mostram que, em dez anos, os valores dos imóveis subiram 1.120% no bairro Sudoeste e 800% em Águas Claras, nesse último principalmente a partir de 2000, quando ali instalaram o metrô. Um investimento e tanto. Já no bairro Noroeste está o metro quadrado mais caro do país, onde apartamentos top são vendidos por até dois milhões de reais, enquanto que nos lagos Sul e Norte, residências de alta classe passam facilmente dos três milhões de reais. Custa caro viver na capital do Brasil.
Atuando há mais de trinta anos no mercado, a Paulo Octávio Investimentos Imobiliários pertence ao ex-corretor, senador e vice-governador do DF Paulo Octávio. A empresa já construiu e entregou mais de 40 mil unidades residenciais e comerciais na região.
À frente da Fundação Sustentabilidade e Desenvolvimento – FSD, Mônica Veríssimo questiona esse modelo excludente. “Oitenta porcento da demanda habitacional no Distrito Federal é para classe baixa, empurrada para cada vez mais longe da região central”, reclama. Conforme ela, a autonomia das “regiões administrativas”, onde estão as cidades-satélites, abriu as portas ao descontrole sobre a densidade de habitantes e fluxo de carros. “A grande especulação imobiliária pode acabar com o Distrito Federal, pois não há demanda real para moradias com esse valor”, disse.
De acordo com Flósculo, da UnB, um histórico de corrupção e autoritarismo gerou na capital federal um boom imobiliário no pior estilo chinês. “Aqui temos especulação em forma quase pura, com grupos locais e do Sudeste investindo em Brasília para ter lastro para novos investimentos. Esse caso único de território e população corrompidos não é normal ou aceitável, merecia uma CPI”, disse. “É uma pena ver cidade entregue à prostituição imobiliária, quando de início havia planos para abrigar milhões de pessoas de forma democrática e com qualidade de vida”, ressaltou. “Se essa festa continuar, os efeitos serão nefastos para o meio ambiente e vida da população e, no futuro, os mesmos grupos que hoje lucram vão lucrar de novo com a recuperação dos estragos”.
Conceitos e limites
Conforme Frederico Flósculo, o modelo de “cidades-parque” copiado no cinquentão Distrito Federal funciona em países como Inglaterra e Estados Unidos porque lá não foi permitida tamanha concentração urbana. Washington, capital norte-americana com 220 anos, tem menos de seiscentos mil moradores. “Seu entorno é estruturado em pequenas cidades onde há empregos, bom nível de renda e qualidade de vida. Aqui não. Aqui onde mora o rei se concentram os privilégios”, comentou.
Segundo o arquiteto e urbanista, o pai de todos os planos de ordenamento da região foi elaborado pelos militares e observou os limites de suprimento de água para estimar uma população distrital máxima de 2,5 milhões de habitantes. Patamar ultrapassado em 2008, e há mais de um milhão de moradores em seu entorno imediato. Flósculo comenta que o projeto urbanístico em curso atua com “estratificação de classes sociais”. “Aqui não há uma base econômica produtiva, apenas um bolha imobiliário abastecido por uma classe de servidores públicos com renda paga por contribuintes de todo o país. A população distrital é maior que a de Porto Alegre ou Curitiba, mas não temos povo. Temos monopólios especulativos crescendo em várias áreas à sombra do poder público”, avaliou.
Dados divulgados esta semana sobre o Produto Interno Bruto dos municípios em 2007 mostram que Brasília responde por 3,8% da renda gerada no país, figurando em terceiro lugar no ranking com 99,9 bilhões de reais, atrás de Rio de Janeiro e São Paulo. E dessa fatia, 53,8% são gerados diretamente pela administração pública, que inclui salários de servidores, gastos com educação, saúde e segurança pública.
O projeto original de Águas Claras, por exemplo, apontava prédios com menos de dez andares. Hoje, arranham quase 30 pisos. Há 160 edifícios em construção e outros 150 a serem erguidos na cidade . Só em sua porção “vertical” vivem 70 mil pessoas, a maioria funcionários públicos não abastados o suficiente para encarar os preços do Plano Piloto. “Hoje, se todas as pessoas saírem de casa com seus carros ao mesmo tempo, não cabem nas ruas”, comentou Aldo Paviani. E as projeções oficiais são para 150 mil moradores na porção central e até 250 mil no entorno. O metro quadrado construído custa ali cerca de cinco mil reais, enquanto que no Plano Piloto giram em torno de dez mil reais. “O metrô não comporta a demanda e alargar ruas e construir viadutos apenas privilegia o uso do automóvel”, ressaltou o geógrafo.
Mônica Veríssimo diz que o maior pecado da ocupação do território no Distrito Federal é não inserir a variável ambiental sem seu planejamento. Segundo ela, água também serve para manter a integridade de rios e córregos que abastecem populações e animais. Um levantamento da entidade feito em 1998 mostrou que a maioria dos mananciais no Distrito Federal já estava comprometida por poluição e uso excessivo. “De lá para cá a situação só piorou, porque a quantidade de esgotos lançados é maior que a de tratamento. Os rios têm que ter vida, não podem ser um Tietê. O crescimento urbano deveria pesar se há capacidade para desenvolvimento, que hoje está descolado dos limites ambientais”, ressaltou. O governo distrital já planeja usar água do Lago Paranoá para abastecimento público, fonte já aproveitada para geração de energia.
A presidente da FSD também reclama da extinção dos “planos diretores locais” de urbanização pelo atual governo, que ampliou em 20% as áreas urbanas no Distrito Federal em relação às normas de 1997 para permitir novos loteamentos. “Abriram as porteiras para grupos econômicos construirem o que quisessem e onde quisessem, à revelia das condições ambientais e sem consultar a população”, disse. Segundo ela, a manobra pode perpetuar a ação de empreiteiras por três décadas ou mais.
As ligações perigosas entre governo, empreiteiras e empresários estão na mira do Ministério Público no DF, que ajuizou ação judicial contra o atual Plano Diretor de Ordenamento Territorial do Distrito Federal. Para a promotoria, o plano viola a Lei Orgânica do DF, pela qual “as terras públicas, consideradas de interesse para a proteção ambiental, não poderão ser transferidas a particulares, a qualquer título”. “Seu embasamento ambiental é nulo, criminoso. A história foi desmascarada, mas agora precisamos reverter esse processo antes que tudo se torne 100% urbano”, ressaltou Veríssimo.
Caminhos a seguir
Para a presidente da FSD, as soluções passam por parar imediatamente a aplicação do plano de ordenamento terrotorial e repensar o Distrito Federal de forma democrática e temperada com os limites ambientais. “Primeiro, pára tudo, inclusive porque o plano de ordenamento se mostrou vendido aos interesses das empreiteiras”, disse. Leia aqui um parecer da FSD sobre o plano diretor.
Em seguida, recomenda, será preciso reavaliar o tamanho da mancha urbana projetada no plano, desproporcional às necessidades reais da capital, concentrar desenvolvimento aproveitando espaços nos núcleos urbanos consolidados, mas “sem criar novas São Paulo”, e ampliar a oferta de transporte público. “Bastam dois quintos das áreas previstas para desenvolvimento no plano atual, não a enorme mancha urbana aprovada por este governo”, ressaltou.
“A capital também precisa descentralizar a oferta de empregos, para reduzir o fluxo diária de veículos. A frota de ônibus, metrô e os horários de circulação não condizem com o tamanho e necessidades da população”, lembrou Aldo Paviani.
Frederico Flósculo pontua que a capital brasileira tem três opções para seu futuro: adentrar o caos e se tornar algo semelhante à Cidade do México, com mais de oito milhões de habitantes, estratificação social aprofundada, elevados índices de violência e impactos profundos no meio ambiente e qualidade de vida da população; introjetar o modelo de Washington e horizontalizar o desenvolvimento econômico e crescimento urbano em uma região com cerca de 100 municípios goianos, mineiros e baianos; ou ainda retomar os preceitos originais pensados para uma cidade integrada à natureza, poupadora de recursos naturais e associada a uma população empoderada, organizada em prefeituras comunitárias que definem o uso dos espaços públicos.
Segundo ele, tornar os rumos da urbanização mais positivos também depende da eliminação da corrupção entranhada no Distrito Federal. Mas tudo depende da pizza à brasileira que costuma ser oferecida entre o Natal e o Carnaval. “Nas mãos dos predadores políticos e da especulação imobiliária, será impossível reverter esse processo. Hoje o Distrito Federal é um mar de lama a mil metros de altitude”, disse.
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