Brasileiros consomem basicamente as espécies Passiflora edulis e Passiflora alata (foto). Imagem: Divulgação |
Quem se preocupa com a preservação do Cerrado vive em busca de novos motivos para salvar o que resta do segundo maior bioma do país. Pois, uma pesquisa coordenada pela Embrapa de Planaltina (DF) está avaliando e desenvolvendo as propriedades medicinais de quatro espécies nativas de maracujá. E os resultados são surpreendentes.
A família da “fruta da paixão” já era reconhecida por seu poder calmante. Há, inclusive, produtos comerciais à base de maracujá para conter a ansiedade. A novidade é que as plantas da savana têm potencial para prevenir ou controlar problemas como estresse, enxaqueca, tremores associados à velhice, diabetes e obesidade, além de melhorar a qualidade do sono e ajudar na recuperação pós-trauma.
Conforme a pesquisadora Ana Maria Costa, tudo começou há cerca de quinze anos, com a montagem de um banco de germoplasma com os 78 maracujás silvestres do Cerrado. O centro foi inaugurado em 2005, quando também iniciou a avaliação do potencial das espécies para uso alimentar e medicinal. Finalmente, ano passado foi aprovado um projeto com várias linhas de pesquisa e focado em quatro maracujás mais promissores. “Não conservamos aquilo que não damos valor. Por isso, para manter o Cerrado precisamos mostrar que ele tem valor se mantido em pé”, disse.
Daí os mais de cem especialistas de duas dezenas de universidades e centros de pesquisas dedicados a desvendar os segredos daquelas plantas, comestíveis mas ainda não exploradas comercialmente. A idéia é torná-las “alimentos funcionais”, ou seja, que tragam benefícios para saúde humana. Para isso, o trabalho ajudará a saber se o consumo diário e em quantidade adequada dos maracujás funcionará no dia-a-dia e não apenas em laboratório. “Para ser funcional, o alimento deve ser elaborado de forma correta e consumido na quantidade certa para surtir o efeito desejado”, explicou Ana Maria, da Embrapa Cerrados.
A validação da pesquisa em pessoas estará pronta em até dois anos e conta com equipes médicas de diferentes instituições brasileiras, como o Instituto do Coração, ligado à Universidade de São Paulo (USP). Os pesquisadores estão elaborando produtos a serem industrializados já com a quantidade necessária dos maracujás estudados. São sucos, bolos e uma linha de lácteos. Tudo com sabor e cheiro muito agradáveis. Mas, para isso, a produção das frutas não poderá depender apenas do extrativismo.
Do laboratório à produção
Garantir a produção com qualidade e em quantidade suficiente para atender o mercado é um desafio e tanto. É preciso identificar como ocorre a polinização das plantas e a “quebra da dormência” de suas sementes, desenvolver os elos entre produtores, transporte, processamento e consumo. O time de especialistas já está montando parcerias com indústrias interessadas em produção comercial.
Segundo Ana Maria, também é necessário refinar técnicas de cultivo e melhorar a genética para aumentar a tolerância a doenças, reduzir a pressão sobre a vegetação natural e lançar variedades economicamente viáveis das plantas. Assim, será possível ter plantios espécíficos e, quem sabe, até manejo sustentável dos maracujás. “Além disso, estamos realizando análises químicas para que as frutas mantenham suas características nutricionais após o processamento industrial”, contou.
Membro da equipe determinada a domesticar os maracujás nativos, o pesquisador da Embrapa Nilton Junqueira comentou que já existe tecnologia para cultivar as frutas, cujos compostos ativos variam em até 30% dependendo das condições ambientais, de solo, clima e altitude. “Estamos avaliando que regiões são mais apropriadas para seu cultivo”, disse. Os plantios experimentais devem ganhar campo no ano que vem. Depois de refinados e antes de chegarem ao mercado, serão necessários registros nos órgãos federais de Agricultura e Saúde.
Doutor em Fitopatologia pela Universidade Federal de Viçosa, Junqueira explica que a “domesticação” das espécies silvestres ajudará a melhorar a qualidade dos produtos e a reduzir a pressão sobre o Cerrado nativo. Ele recorda do trabalho feito com espécies como o maracujá-amarelo, o cacau e a seringueira, que proporcionou frutos maiores e com melhor qualidade. “O maracujá-amarelo era vendido em beiras de estradas nos anos 1970 com apenas trinta gramas por unidade. Sua domesticação fez com que os frutos cheguem hoje a 300 gramas. Isso protege a espécie na natureza”, ressaltou.
Espécies avaliadas
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A sabedoria de populações rurais ajudou os especialistas a identificar os frutos com maior poder medicinal. Mas conforme Ana Maria, o uso antes comum das espécies por essas comunidades está se perdendo. Nos trabalhos de campo, pessoas com mais de cinquenta anos foram quase que as únicas a identificar as espécies e apontar suas propriedades. “É mais fácil comprar no supermercado do que ter no quintal ou coletar na natureza. Por isso estão perdendo o hábito de consumir variedades silvestres. Daí nosso empenho em melhor conhecer o Cerrado e resgatar hábitos e tradições”, ressaltou.
O Brasil é país origem de maracujás, com mais de 150 espécies, ou “alimento na cuia”, do tupi mara kuya. Um total de 78 (52%) estão no Cerrado, principalmente em florestas de transição para a Mata Atlântica. Todas têm sabores, aromas e propriedades medicinais diferentes, mas o brasileiro urbano só consome dois tipos – o maracujá-de-suco (Passiflora edulis) e o maracujá-amarelo (Passiflora alata). Outras variedades são conhecidas apenas nos interiores de estados como Minas Gerais e Goiás. “Espécies nativas sempre tiveram pouca importância no Brasil por nossa colonização européia, quando tudo que era bom vinha de fora”, comentou Junqueira, da Embrapa.
As quatro plantas avaliadas na pesquisa coordenada pela Embrapa (quadro abaixo) crescem em matas de galerias e cerrados de maior porte. Mas você não lerá aqui seus nomes científicos ou verá alguma de suas imagens. O segredo científico evitará a coleta indiscriminada dos frutos até a montagem de um sistema de produção, ao contrário do que ocorre com o pequi, outro fruto tradicional do Cerrado.
Segundo Ana Maria, a demanda crescente por cremes, polpas e outros produtos do pequi reduziu a capacidade de renovação das árvores da espécie em várias regiões do bioma. “Não pode ocorrer com o maracujá o mesmo que houve com o pequi, que já apresenta taxa de renovação muito baixa devido à divulgação sem base produtiva. Seus frutos vêm todas da coleta, e não há uma plantação de pequi”, explicou.
Nilton Junqueira confirma o problema e reforça que hoje se incentiva mais o extrativismo do que pesquisas para desvendar propriedades de frutos silvestres. Segundo ele, o desmatamento preocupa tanto quanto a “erosão genética” de várias espécies, como o próprio pequi. “Coletam todos os melhores frutos, deixando os piores para perpetuar a espécie, que vai perdendo na qualidade dos frutos que oferece”, disse. “A saída é domesticar para preservar. Quando lançarmos no mercado um pequi com mais polpa, ele terá preferência frente ao coletado. Mas há sempre o risco de que sejam cortadas árvores nativas pela perda de interesse em seus frutos”, avaliou.
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