Eles já foram caçados por causa do couro resistente e da ossatura robusta e, há mais de 30 anos, estão entre os mamíferos criticamente ameaçados de extinção. Os peixes-boi marinhos são animais que gostam de águas rasas e quentes, de preferência no Nordeste. Atualmente vivem em uma faixa litorânea descontínua, que começa em Alagoas e vai até o Amapá – pelo menos é o que diz o último estudo, realizado em 1997.
Um novo levantamento quer atualizar essa realidade. Durante quatro dias – de 25 a 28 de janeiro – pesquisadores do Projeto Peixe-Boi iniciaram um mapeamento da distribuição desses mamíferos através de sobrevoos em ziguezague, de baixa altitude, bem lentos. A primeira etapa da pesquisa abarcou o litoral dos estados de Alagoas, Pernambuco e Paraíba. Um segundo momento, programado para março, planeja sobrevoos no Rio Grande do Norte e no Ceará. Antes da fase dois, o coordenador do projeto, João Carlos Borges, e a doutoranda Danise Alves precisam tratar o grande volume de informações que obtiveram nos cinco sobrevoos realizados. Além deles, faz parte da equipe Iran Normande, coordenador da Remane – Rede de Encalhes de Mamíferos Aquáticos do Nordeste do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
O mapeamento por avistagem consite em traçar um plano de voo em ziguezague na região onde o animal costuma habitar. O avião fica a 500 pés de altitude e voa a 120km/h – o mínimo permitido pela autoridades aeronáuticas. Dois observadores se posicionam em cada um dos lados do monomotor. Uma câmera na barriga da aeronave grava o que os olhos veem. (Veja infográfico abaixo)
Os pesquisadores decidiram encerrar o trabalho de observação no Ceará em razão da logística, explica Danise, que tem no levantamento os dados para sua tese de doutorado sob orientação da professora Maria Elisabeth de Araújo. A partir do litoral piauiense, as condições de observação são bastante diferentes. O mapeamento do Piauí até o Amapá será, possivelmente, tema para uma pesquisa futura.
Dia a dia da viagem
Antes do início dos trabalhos em campo, foi realizada uma viagem de teste para se verificar as condições gerais, qual deveria ser a área abrangida, coletar dados para o plano de voo, observar a qualidade da transparência da água vista do alto e outros aspectos. Chegou-se a conclusão de que os voos deveriam entrar apenas 1,5 milha náutica no oceano (não 2 milhas náuticas, como inicialmente pensado), porque os peixes-boi gostam de pouca profundidade. Também foi definido que as idas e voltas do Cessna deveriam fazer um ângulo de 45 graus (e não de 60 graus) – esta última mudança representou uma área 192% maior a ser abrangida pelo trabalho.
No primeiro dia, em Alagoas, a partir da Foz do Rio São Francisco e até Maceió, os pesquisadores enxergaram apenas um animal. Notaram que a atividade pesqueira, com barcos motorizados puxando redes de arrasto, é intensa na região. “O peixe-boi não tem predadores”, conta João Carlos. “Seu inimigo natural é a atividade humana”, complementa Danise.
No segundo dia, eles realizaram dois sobrevoos. Entre Maceió e a Praia dos Carneiros, já no litoral pernambucano, quatro peixes-boi foram registrados. Vale detalhar que, no litoral sul de Alagoas, no município de Porto de Pedras, fica um dos pontos de reintrodução da espécie na natureza, pelo Projeto Peixe-Boi. Na segunda viagem com o Cessna nesse dia, os pesquisadores partiram da Praia dos Carneiros e foram até o município de Jaboatão dos Guararapes, um dos maiores da região metropolitana do Recife. Nenhum animal foi visualizado.
No terceiro dia, iniciaram o sobrevoo no limite entre os estado do Rio Grande do Norte e da Paraíba, no Rio Guaju. Nove indivíduos foram avistados, apesar da baixa transparência das águas, muitas vezes turvas em razão dos estuários de rios volumosos que carregam grande quantidade de sedimentos ao se encontrarem com o mar. A região é considerada estratégica para o manejo dos animais, porque possui área de arrecifes com algas que estão entre as preferidas para o pasto do peixe-boi. No entanto, a área também é disputada por empreendimentos de carcinicultura. “Avistamos até fazendas de camarões que retiram água diretamente da praia”, lembra Danise Alves.
No quarto e último dia foram avistados seis indivíduos e, com eles, a melhor notícia do trabalho em campo. Os animais estavam em uma área antes considerada como faixa descontínua, sem a presença dos animais. “O povoamento nas áreas onde esses mamíferos deixaram de habitar é um dos grandes objetivos do nosso trabalho”, comemorou Borges.
Estimativa de peixes-boi marinhos
Ele compara o que pode estar ocorrendo com os peixes-boi com o verificado com outro mamífero marinho, as baleias. “Quando a pesca foi proibida, as baleias eram avistadas apenas próximas a Abrolhos (Parque Nacional Marinho, na Bahia). Agora, sem a pressão predatória, é possível encontrar baleias no litoral norte da Bahia, em Sergipe, em Alagoas e até em Pernambuco elas já foram vistas”.
A contagem de peixes-boi por avistagem aérea é nova no Brasil. Ela já foi usada com sucesso na Flórida, nos Estados Unidos, onde a proibição para a caça desses animais data de 1893. Por aqui, João Carlos e Danise enfrentaram um dos verões mais chuvosos que se têm notícias – o que prejudica a visibilidade ao tornar as águas turvas. Eles também acreditavam que seria possível procurar peixes-boi a alguns quilômetros dentro do continente, nos rios (os animais gostam de beber água doce), mas descartaram o percurso quando constataram que os rios estavam barrentos.
A última contagem dos peixes-bois marinhos no Brasil foi feita utilizando o método de entrevistas de pescadores. Outras formas de se chegar ao número de indivíduos é o uso de um ponto fixo, para observação, ou um sonar em uma embarcação, que faria um trabalho, no mar, parecido com o realizado no ar pelo monomotor. Uma das características do uso do sonar está no fato de que, ao se aumentar a potência do aparelho para abranger uma área maior, perde-se em nitidez do que realmente se está observando.
O trabalho tem como objetivo final ajudar com informações novas o trabalho de manejo desse mamífero dócil que pode chegar a pesar 800 quilos e a mitigar o impacto que a atividade humana exerce contra eles. “É incrível como é comum ver embarcações com motores grandes sendo pilotadas sem nenhum critério, sem fiscalização”, protesta João Carlos. Os atropelamentos por lanchas de passeio é a principal causa de morte desse animal que já habitou nosso litoral a partir do Espírito Santo e até o extremo norte.
*Celso Calheiros é jornalista em Recife.
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