Reportagens

Usina acaba com pesca no Tocantins

Obra do PAC, usina hidrelétrica de Estreito é acusada de causar o abandono da atividade por 80% dos pescadores em região onde se formou reservatório.

Leilane Marinho ·
25 de abril de 2011 · 14 anos atrás

A usina hidrelétrica de Estreito (UHE), fincada na região do Tocantins conhecida como Bico do Papagaio e no sul maranhense, é alvo de denúncias constantes de comunidades que vivem às margens do rio Tocantins. A principal acusação é de que o reservatório, que começou a ser cheio em dezembro de 2010, está causando a morte de toneladas de peixes, a maioria essenciais na dieta local

A reportagem de ((o))eco esteve no local e, guiada por ribeirinhos, presenciou grande quantidade de espécies mortas nos afluentes do Tocantins (veja vídeo) . De acordo com a colônia de pescadores de Estreito, quase 35 toneladas de peixes mortos foram encontrados na beira da usina, no final do mês de março.

 

“Estou com a minha canoa no seco. Pesquei a minha vida inteira e criei meus 15 filhos com a pesca”, lamenta Raimundo Tavares da Silva, 70 anos, 43 dedicados à atividade. O pescador conta que tanto abaixo quanto acima da barragem, não há mais peixe. “Acabou a nossa condição de pescar. Com essas mortes, as pessoas nem estão comprando os peixes que restaram”, completa.

Só em Estreito, são 345 pescadores com registro de pesca. Desde que a UHE foi instalada, 80%  dos pescadores desistiram da profissão. Segundo Luiz Moura, presidente da Associação de Pescadores, o Consórcio Estreito Energia (Ceste), formado pelas empresas GDF Suez/ Tractebel Energia (40,07%), Vale (30%), Alcoa (25,49%) e Camargo Corrêa (4,44%), se nega a discutir com a comunidade e está escondendo a mortandade dos peixes. “Eles dizem que é mentira, mas temos pessoas infiltradas que conseguiram imagens de tratores enterrando os peixes e funcionários do Ceste tentando esconder o crime”, denuncia Moura, que reclama o grande prejuízo: “ São jaús de até 35 quilos, que vendemos a mais de 150 reais”.

Melhor do que estavam?

Uma Indústria de Pesca no valor de R$ 10 milhões está prevista para ser construída nas margens do rio Tocantins, no local onde hoje é o lago da UHE. A proposta é que seja estabelecida uma produção em tanque-rede de espécies exóticas, como a tilápia, mas os pescadores não estão tão contentes com o empreendimento, que está sob a tutela do Ceste. “ Não temos previsão e ficam empurrando com a barriga. Nós filmamos todos os nossos pontos de pesca, a produção que tínhamos anteriormente, as vazantes, as coisas mais bonitas que tinha, mostrando como era a nossa vida antes. O Lula dizia que nós íamos ficar melhor do que estávamos, cadê?, reclama Luiz Moura.

“Converter o pescador em produtor nem sempre dá certo. O empresário leva outro estilo de vida, e o empreendimento exige conhecimento técnico. Sem contar que a bacia do Tocantins não possui espécies exóticas”, completa Fernando Mayer Pelicice, especialista em Ecologia e Conservação de Peixes da Universidade Federal do Tocantins (UFT).

Quando começaram os testes da primeira de oitos turbinas da UHE, a água ficou barrenta e os pescadores que se arriscavam a chegar mais próximo da barragem tiveram que ficar atentos aos horários que a turbina girava. “Tinha que ter pelo menos uma sineta avisando, é perigoso demais”, reclamou Domingos Ferreira, 50 anos, sem se acostumar com a enorme estrutura.

Foi depois desta operação que os peixes começaram a boiar nas proximidades da casa de máquinas. “Essas mortes é um fenômeno recorrente, mas não nestas proporções”, diz o especialista em Ecologia e Conservação de Peixes da Universidade Federal do Tocantins (UFT), Fernando Mayer Pelicice. “Acabamos de sair do período da piracema e é provável que esses peixes estivessem acumulados nas paredes da barragem e que tenham passado pela turbina. Como o jaú esta no topo da cadeia alimentar, certamente a pesca sofrerá uma forte mudança”, completa.

Para o pesquisador, as incertezas em episódios como esse se devem ao fato de não haver no Brasil nenhum estudo científico que acompanhe com continuidade o impacto de uma hidrelétrica na ictiofauna. “Muitas informações são maquiadas e escondidas e só chegam ao conhecimento público através de denúncia. Nenhum consórcio quer um biólogo que acompanhe esses acontecimentos”, conclui Pelicice.

O Ceste informou ter paralisado os testes no dia 28 de março. No mesmo dia avisou o Ibama, convocando um grupo de especialistas em ictiofauna e consultores em engenharia para estudar a situação e tomar as providências cabíveis.

A informação repassada pela assessoria de imprensa através de nota no dia 1º de abril foi a última comunicação do consórcio sobre o fato. Passados mais de 20 dias da mortandade de peixes, tanto o Ibama quando o Ceste ainda não apresentou nenhum relatório que explique o “fenômeno”, como foi chamado pelos analistas.

Mesmo tendo deslocado uma equipe técnica para averiguar as causas das mortes, o diretor de licenciamento Flávio Silveira aguarda o relatório final que está sendo preparado pelo Ceste para  então se posicionar sobre o caso. Dentro do Ibama, o assunto só será divulgado com este relatório.

Pelas tabelas

Desde a Licença Prévia e à elaboração do Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), controvérsias é que não faltam na liberação da UHE de Estreito. “Na época que foi feito o EIA/RIMA, percebemos vários problemas. Quem fez os estudos de impacto ambiental foi a CENEC engenharia, que é um anexo da Camargo Correia, uma das sócias da obra”, explica Cirineu Rocha, integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

A primeira questão que entrou em discussão foi o fato de o plano não abranger as etnias indígenas Krahô, Apinajé, Krikati e Gavião. Em vez de pedir outro estudo de impacto ambiental, o Ibama concedeu o licenciamento prévio, colocando o estudo sobre as comunidades indígenas como uma condicionante. “Como você pode dar uma licença sem antes ter um estudo do impacto da obra?” questiona o procurador da República no Tocantins, Álvaro Manzano.

O Ministério Público Federal chegou a ganhar algumas ações, e a paralisar a obra apontando irregularidades no Plano Básico Ambiental (PBA). Mas assim que chegavam em Brasília eram suspensas. Numa ação civil movida em 18 de novembro do ano passado, foram apontadas outras tantas pendências, especialmente relacionadas ao não cumprimento das condicionantes da Licença de Instalação (LI). Um dia antes, o Ibama emitiu relatórios com o parecer técnico do pedido do Licenciamento de Operação (LO), concedido pela Coordenação de Energia Hidrelétrica – COHID. Nos documentos, analistas ambientais relatam pendências no plano que faria o monitoramento e o controle da qualidade da água durante o enchimento do reservatório. Conclusão: o programa de Desmatamento e Limpeza da Área de Inundação não estava apto a receber a licença.

Dentre os motivos, a falta de identificação nas áreas propensas à formação de paliteiros, a não comprovação da finalização dos processos de demolição, desinfecção e desinfestação, falta de detalhamento no plano de resgate da fauna terrestre, e pendências no esclarecimento das medidas a serem tomadas para os sistemas de tratamento de água e de esgotamento sanitário municipais que serão afetados pelo enchimento do reservatório.  “Tanto que o CESTE não respeita o IBAMA, eles começaram o enchimento antes mesmo de receber a autorização. Chegamos lá, e o local já estava cheio de placas de aviso, e as pessoas relatando que a água estava subindo”, declara Manzano.

Numa fiscalização realizada pelo MPF em janeiro, o procurador relatou mais uma vez que o Ceste não estava cumprindo as condicionantes do Ibama. Famílias foram deslocadas para locais insalubres, sem estradas de acesso e estrutura de moradia. As crianças não tinham condições de irem às escolas, a água era salobra, e o consórcio negava-se a negociar com os reassentados. “O Ceste só sentou para discutir algo com o MPF antes de conseguir as licenças”, reclama o procurador.

O peso da decisão política

De acordo com o site do Ceste, o processo de enchimento do reservatório de mais de 400 hectares iniciou no dia 1º de dezembro. No dia 24 de novembro o Ibama havia concedido a Licença de Operação. “O que pesou nessa decisão não foi o aspecto técnico e sim o aspecto político. Nós temos um grupo de empresas privadas, com capital estrangeiro, uma obra de interesse público, utilizando um recurso público, que é a água, financiada quase que 80% com recursos do PAC”, indigna-se Cirineu.

Dentro do órgão federal de fiscalização ambiental, há uma enorme diferença entre o que é relatado pelos analistas ambientais e o que é repassado pela presidência. “Muitos técnicos rejeitam a assinar as licenças, mas a pressão da presidência é grande”, conta uma analista que não quis se identificar.

Mesmo que nos relatórios, os pareceres sejam contrários à liberação, as decisões acontecem a “toque de caixa”. Conforme a analista, é normal páginas serem supridas, isso quando não vão direto para a gaveta. “O que percebemos é que existe uma definição clara do governo brasileiro em defender interesses privados como esse”, conta Cirineu.

O resultado das decisões não seguirem a lógica das conclusões técnicas está sendo colhido pela população atingida. Em Babaçulândia (TO), as fossas estão transbordando e estradas e pontes estão sendo destruídas pela água. “Muitos assentamentos estão em condições muito precárias, e o Ceste não dá nenhum retorno para essas famílias. O Ibama não está cumprindo com o seu papel, pois já deveria ter caçado esta licença”, diz o prefeito Alcides Filho (PR), que no início do mês, levou ao MPF, um relatório  contendo imagens de animais que morreram afogados pela inundação da área. Das 24 canoas fixadas pelo Ibama para a equipe de salvaguarda da fauna local, menos de 14 fizeram  a operação.

Em Barra do Ouro, também no Tocantins, estudos realizados pelo consórcio deram como certo que a população do município não seria atingida. Em fevereiro, novas medições pareceram mostrar que os cálculos anteriores referentes às áreas que seriam alagadas estavam equivocados. “Até fevereiro essas pessoas não seriam afetadas. Trinta dias antes do enchimento, começaram  a medir as casas daquelas pessoas sem falar o real motivo. Em 12 dias falaram que elas teriam que sair dali, sem nenhuma explicação, tiraram as famílias na marra”, conta a analista ambiental que esteve no local.

Sem retorno

Esta reportagem tentou sem sucesso durante duas semanas através de telefonemas e e-mails entrar em contato com a diretoria do Ceste e obter informações sobre a mortandade dos peixes e outras denúncias de não cumprimento das condicionantes do Plano Básico Ambiental (PBA). Na última ligação, a assessoria disse que as fortes chuvas que ocorriam na região haviam deixado o escritório sem estrutura de comunicação, e que só poderia dar um retorno após contato com a diretoria do consórcio. Até o fechamento desta reportagem, o Ceste não prestou nenhum esclarecimento.

Impactados

Pelas contas do MAB, cinco mil famílias foram afetadas pela UHE em 12 municípios – dois no Maranhão (Estreito e Carolina), e dez no Tocantins (Aguiarnópolis, Babaçulândia, Barra do Ouro, Darcinópolis, Goiatins, Filadélfia, Itapiratins, Palmeirante, Palmeiras do Tocantins e Tupiratins.

O Monumento Natural das Árvores Fossilizadas do Tocantins, localizado em Filadélfia (TO), considerado uma unidade de conservação do Estado do Tocantins e um “Monumento Natural”, também foi afetado.

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