Reportagens

Conflitos vêm à tona com usina de Serra Quebrada

Eletronorte e Camargo Corrêa tem sinal verde do Ibama para começar os estudos de impacto ambiental para hidrelétrica no rio Tocantins. Os índios Apinajés temem inundação de suas terras.

Leilane Marinho ·
27 de junho de 2011 · 13 anos atrás
Dona Joanita já acordou várias noites após sonhar que a TI estava sendo inundada. foto: Leilane Marinho
Dona Joanita já acordou várias noites após sonhar que a TI estava sendo inundada. foto: Leilane Marinho
TI Apinajés (TO) – Perguntar sobre a Usina Hidrelétrica Serra Quebrada, prevista pelo Plano Decenal de Expansão de Energia – PDE (2007/2016) para entrar em operação na divisa do Tocantins com o Maranhão em 2013 é quase uma ofensa para o povo indígena Apinajé.

Há mais de dez anos, desde quando iniciou o planejamento da barragem, os índios que habitam a região tocantinense conhecida como “Bico do Papagaio”, se opõem à liberação do projeto do consórcio Eletronorte/ Camargo Corrêa, que recebeu em fevereiro deste ano, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Termo de Referencia (TR) para elaboração do EIA/Rima (Estudo e Relatório de Impacto Ambiental).

Segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), os grupos fabricantes de alumínio Alcoa Alumínio e a Billiton Metais — a primeira dos Estados Unidos e a segunda inglesa — são os interessados na energia gerada pela usina, que terá potência instalada de 1.328 MW. Conforme o mesmo plano, a avaliação processual do empreendimento está atrasada.

Cravada no corredor do desenvolvimento Norte-Sul, a Terra Indígena Apinajé, 141.904 hectares (Baixar o mapa aqui) com projeto de ser ampliada, vem desde a década de 50 sofrendo duras intervenções de obras governamentais. Foi cortada por ferrovias (Carajás e Norte-Sul), rodovias (BR 153, Transamazônica e TOs 126 e 134), linhas de tensão (Linhão de Tucuruí), sofreu os impactos de hidrelétricas (Estreito e Lajeado), e se prepara pra chegada da Hidrovia Tocantins/Araguaia, prestes a sair do papel.

Mas nenhum desses empreendimentos gerou tanta preocupação nos Apinajés como a UHE Serra Quebrada, que “comerá” cerca de 14% da TI, exatamente nas margens do Rio Tocantins, onde existem babaçuais e de onde os índios retiram a maior parte do sustento das 1.700 pessoas que vivem hoje nas 24 aldeias.

Sem o estudo, não vai

Cassiano Apinajé:
Cassiano Apinajé:
O aproveitamento hidrelétrico de Serra Quebrada está projetado para ser implantado no rio Tocantins, entre os municípios de Governador Edson Lobão (MA) e Itaguatins (TO). Dados do Ibama mostram que será formado um reservatório de aproximadamente 386 km2, inundado terras dos municípios de Governador Edson Lobão, Ribamar Fiquene, Montes Altos, Campestre do Maranhão, Porto Franco e Estreito no estado do Maranhão e Itaguatins, Maurilândia do Tocantins, Tocantinópolis e Aguiarnópolis, no estado do Tocantins. A previsão é que cerca de 14 mil pessoas sejam deslocadas, mas o número pode ser ainda maior.

Segundo o Ibama, o projeto aguarda análise dos estudos para emissão da Licença Prévia (LP), mas o que depender dos índios, técnicos ligados à obra não terão permissão para fazer pesquisas dentro da área. Para eles, o assunto só tem uma reposta, a mesma que vem sendo dada nos últimos anos: “não queremos, e ponto final”, disse categoricamente Cassiano Apinajé, 43 anos, da aldeia São José.

Ele assistiu a liberação da UHE de Estreito e hoje reclama a falta de peixes para alimentar as comunidades. “Agora é só sofrer o impacto, não tem como desmanchar. Por isso ninguém entra aqui. O pessoal chega como os antigos colonizadores, invadindo e desconsiderando a gente. Ninguém aceita a barragem e vamos resistir nem que para isso haja mortes”, indigna-se Cassiano.

UHE de Serra Quebrada
UHE de Serra Quebrada
E a resistência não é só contra Serra Quebrada, atrás dela vêm outras hidrelétricas que também serão instalados na bacia do rio Tocantins, como as usinas de Marabá, Tupiratins e Tocantins, que também afetarão a TI Krikati, no Maranhão. “Estamos aqui e essa água vai atingir a gente”, completa Joanita Apinajé, 70 anos, que já teve vários pesadelos com a inundação da TI.

Joaquim Preto Apinajé, 70 anos, atual cacique da aldeia Mariazinha, lembra que a mobilização da comunidade contra o projeto teve início em setembro de 2001, com a divulgação da Carta do Povo Apinajé: “A terra para nós é mãe e pai, a terra é quem cria nós e não o governo, pois é dela que tiramos a nossa caça, nossa pesca, os remédios, coletamos os frutos, principalmente o babaçu, que é muito importante para nossa sobrevivência”, dizia a Carta. Ele conta que se a Eletronorte “teimar” em começar construir a barragem, vai haver briga. “Não aceitamos a obra, nossas melhores terras estão sendo ameaçadas”, alerta o ancião.

Alerta

Siqueira pede aceleração de processo

No final do mês de maio, o governador do Tocantins, José Wilson Siqueira Campos (PSDB), esteve em Brasília solicitando ao diretor –geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Anael), a realização de leilões para a construção UHE de Serra Quebrada e Tupiratins. Ele também pediu a retomada das obras da UHE Santa Isabel e que os estudos para a construção da UHE Pau D’Arco, no Rio Araguaia, sejam concluídos.

Segundo o governador, estas barragens diminuirão o assoreamento do Araguaia, fazendo naturalmente o controle das enchentes provocadas por chuvas, garantindo assim o curso normal, com preservação das margens e das águas do rio. No encontro também foi solicitado ao diretor geral da Aneel a retomada dos estudos para construção das PCHs – Pequenas Centrais Elétricas e Médias Centrais Elétricas no estado.

Em 2003, quando começou a ser falar oficialmente da Serra Quebrada o Ibama, em relatório de vistoria, já havia alertado a Eletronorte sobre os trâmites legais para a viabilidade do empreendimento. Na nota técnica nº 010/2003, o órgão aconselhou: “o aproveitamento hidrelétrico de Serra Quebrada possui restrições ambientais, com interferências em áreas indígenas, necessitando, portanto, de regulamentação do artigo 231 da Constituição Federal, que dispõe sobre os direitos indígenas, para sua viabilização e posterior integração em futuros programas de licitação”. O artigo determina que “as comunidades indígenas têm direito ao usufruto exclusivo às terras que tradicionalmente ocupam (…)”.

Desde então, mesmo sem nenhum estudo na TI, o processo parece correr a passos largos no órgão, e apesar de irredutíveis, os índios receiam não serem mais uma vez escutados.

Em relatório de vistoria do Ibama de 2008, técnicos e representantes da Consultoria Ambiental Themag, responsável pela elaboração do Consórcio Empreender Eletronorte/Camargo Corrêa, acertaram que a elaboração do EIA/Rima deverá condicionar as contribuições da Funai à elaboração dos estudos na TI Apinajé, por meio da emissão de um TR específico.

Longe dos processos, os índios acreditam que os estudos estão avançando sem barreiras, ou ainda, já estejam parcialmente concluídos. “Infelizmente nós não temos voz nesta luta. Entramos em decadência, embora a gente resista, essas obras vêm com uma força terrível, atropela a vida da gente, não respeitam os nossos direitos”, lamenta Cassiano.

Pressionados

Antônio Apinajé mostra a plantação de arroz orgânico para seu filho. “A gente sabe que o desenvolvimento do país não é só construção de barragem”. Foto: Leilane Marinho
A articulação direta da Eletronorte com os índios se intensificou em 2009. Segundo Fernando Schiavini, antropólogo indigenista da Fundação Nacional do Índio (Funai), no ano seguinte a estatal tentou “cooptar” os índios para permitir os estudos. “Levaram uma comissão com dez apinajés de avião para Brasília, hospedados nos melhores hotéis da cidade só para tentar convencê-los”, lembra Schiavini.

 “Durante quatro horas eles bateram pesado, usaram todo tipo de argumento, de que o Brasil precisava de energia e desenvolvimento. Cada liderança falava e a gente não aceitava”, diz Antônio Apinajé, da aldeia São José, onde cultiva junto com a família, mandioca, milho, arroz, feijão e banana, tudo orgânico e com sementes “crioulas”. Atualmente ele está experimentando um novo formato de produção de hortaliças, a horta em mandala.

Antônio lembra as propostas “descabidas” da empresa estatal. “Eles queriam levar nós na usina de Tucuruí, onde eles dizem ter um programa muito bom da Eletronorte, que é muito bonito e bom pros Paracanãs. Falamos que a gente não queria e que esse assunto da Serra Quebrada estava encerrado para nós”.

Este ano, os assédios continuaram, e em um documento formal enviado a Funai e a Eletronorte, os índios reafirmaram não permitir nenhuma visita à TI. “Nós não quer mais falar, é bom deixar isso pra lá. A gente sabe que o desenvolvimento do país não é só construção de barragem, tem o desenvolvimento cultural, ambiental, que o governo tem que olhar”, finaliza Antônio, já alterado.

Área impactada

Os apinajés vem desde a década de 50  sofrendo duras intervenções de obras governamentais: foi cortada por  ferrovias, rodovias, linhas de tensão e sofreu os impactos das  hidrelétricas de Estreito e Lajeado. Foto: Leilane Marinho
Os apinajés vem desde a década de 50 sofrendo duras intervenções de obras governamentais: foi cortada por ferrovias, rodovias, linhas de tensão e sofreu os impactos das hidrelétricas de Estreito e Lajeado. Foto: Leilane Marinho
Nos relatórios de vistoria emitidos pelo Ibama, em 2008, a Coordenação de Energia Hidrelétrica e Transposição observou que os fragmentos remanescentes de vegetação nativa ainda conservados se encontravam na TI Apinajé. O aumento de desmatamento para pastagem, plantação de soja e eucalipto vem descaracterizando a região, e também é reclamação constante dos índios, que dizem estar sendo “asfixiados” pelo crescimento do agronegócio.

Os mesmos documentos também afirmam que o local onde será instalada Serra Quebrada é de importância biológica relevante. Num raio de 10km da área que será alagada, encontra-se a Unidade de Conservação Reserva Extrativista Mata Grande. A região também é classificada pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Cavernas (Cecav) como de alta potencialidade de ocorrência de cavernas.

Em 2001, o Centro dos Direitos das Populações da Região de Carajás – Fórum Carajá, disse que Serra Quebrada destruiria áreas importantes para a reprodução de tartarugas, entre outras espécies, como a pantera suçuarana (puma concolor) e jaguatirica ocelot (leopardus pardalis), cujo habitat será atingindo.

“Cada vez que se destrói uma área natural, que é resultado de anos e anos, nunca mais ela se recupera, pois o conjunto gênico de espécies é único”, explica a Dr. Elineide Eugênio Marques, do Núcleo de Estudos Ambientais (Neamb), da Universidade Federal do Tocantins, em Porto Nacional.

Raio X – Usina Hidréletrica de Serra Quebrada
Bacias Hidrográficas Araguaia – Tocantins
Rios Tocantins
Potência 1.328 MW
Área de inundação 386 Km²
Pessoas afetadas (oficial) 14.000
Custo US$ 3,0 bilhões
Empreendedores BHP Billinton Metais S/A / Construções e Comércio Camargo Côrrea S/A / Centrais Elétricas do Norte do Brasil S/A (Eletronorte) / Alcoa Alumínio S/A
Municípios atingidos Governador Edson Lobão (MA), Ribamar Fiquene (MA), Montes Altos (MA), Campestre do Maranhão (MA), Porto Franco (MA), Estreito (MA), Itaguatins (TO), Maurilândia do Tocantins (TO), Aguiarnópolis (TO) e Tocantinópolis (TO)
Empresas Centrais Elétricas do Norte do Brasil S/A (Eletronorte) é uma estatal federal controlada pela holding Centrais Elétricas Brasileiras S/A (Eletrobrás)
Populações indígenas afetadas Apinajé (Terra Indígena Apinajé) – interferência direta do reservatório
Áreas protegidas afetadas Reserva Extrativista Mata Grande (zona do entorno, num raio de 10 km da unidade)
Áreas prioritárias para proteção da biodiversidade afetadas •    Am 143 – Corredor em Açailândia (prioridade Muito Alta).
•    Ce 236 – Ananás (prioridade Muito Alta).
•    Ce 238 – Palmeirante (prioridade Muito Alta).
•    Ce 239 – Montes Altos-Querubina (prioridade Alta).
•    Am 133 – Bico do Papagaio (prioridade extremamente Alta). (FONTE: Fundacion PROTEGER, International Rivers e ECOA)

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