Reportagens

Amsterdã: planejar é a regra, fluidez é a sensação

Amsterdã mostra como vários modos de transporte podem conviver bem e como o planejamento urbano, desde o século 17, pode funcionar.

Natália Garcia ·
11 de outubro de 2011 · 13 anos atrás
Essa é uma avenida de alta circulação, um dos poucos locais no centro de Amsterdam onde há congestionamento (de carros e de bicicletas) pesado nas horas de pico. Foto: Natália Garcia
Essa é uma avenida de alta circulação, um dos poucos locais no centro de Amsterdam onde há congestionamento (de carros e de bicicletas) pesado nas horas de pico. Foto: Natália Garcia
Em um passeio de barco com historiadores de Amsterdã descobri que ela foi fundada no século 11 por pescadores. Era uma vila mercante que foi ocupando aos poucos aquela região pantanosa, de maneira informal. A história ia sendo contada à medida que visitávamos áreas mais antigas e mais recentes da cidade, todas acessíveis pela água. Conduzir um barco em Amsterdã se parece com dirigir um carro em uma cidade grande: inúmeras opções de caminhos e horários de rush a serem evitados. A importância da água para a cidade é evidente. E essa fluidez que experimentei nos canais se confirmou no asfalto. Qualquer que seja o modo escolhido é certo que você vai se locomover sem correr demais e em harmonia com os outros. Pode ser de bonde – o tram -, bicicleta, carro ou a pé.

O modal que escolhi, fora da água, foi a bicicleta – logo na segunda semana de estada por lá aluguei uma magrela bem barata que foi minha companheira durante 21 dias. Na parada anterior, Copenhague, a sensação era a de que os pedestres tinham prioridade no fluxo do trânsito; em Amsterdã as bicicletas reinam até mesmo sobre os pedestres. As ciclovias não são linhas retas acompanhando as avenidas, mas curvas que parecem dançar em meio à calçada, atravessam a rua, passam pela linha do tram e cortam caminho por uma via de pedestres. Há muitas vias exclusivas para ciclistas. Até existe sinalização para ciclistas (na forma de semáforos, em grandes avenidas), mas o que conta mesmo é o que os próprios ciclistas sinalizam. Todos mostram com o corpo quando vão virar à direita, à esquerda ou parar. E, se estiver a pé, melhor prestar atenção, porque dificilmente o ciclista vai parar para te dar passagem.

Planejar para Crescer

Vista de um dos canais circulares de Amsterdam, que desemboca no rio Amsted. Foto: Natália Garcia
Vista de um dos canais circulares de Amsterdam, que desemboca no rio Amsted. Foto: Natália Garcia
Amsterdã é o oposto da grande maioria das cidades brasileiras. A capital holandesa só existe porque é planejada. A cidade foi construída em volta do rio Amsted, que corta a Holanda de leste a oeste. O local tinha uma característica peculiar: um solo encharcado e arenoso que precisou ser drenado para que a terra fosse ocupada. Com a remoção da água, o solo ficou compactado e a altura da cidade foi baixando em relação ao rio: Amsterdã está abaixo tanto do Amsted quanto do mar. Daí a necessidade antiga de planejamento, que já existe desde meados do século 17.

A Holanda era um país com uma localização geográfica privilegiada para transportar produtos pelo mar, o que era precioso na Idade Média. Dona da Companhia Neerlandesa das Índias Orientais, que controlava o tráfego marítimo para buscar produtos no oriente e revender pela Europa, a Holanda foi um país que se especializou na arte dos bons negócios. E, diferente de outros países europeus, não possuía líderes religiosos fortes (leia-se hierarquia católica). Essa falta de autoridade religiosa e a cultura do comércio fizeram com que a Holanda fosse também um país tolerante: foi o primeiro a permitir legalmente a religião judaica no mundo, por exemplo. Tudo em nome dos negócios.

Pintura de 1538 feita pelo artista Cornelis Anthonisz representando os canais de Amsterdam.
Pintura de 1538 feita pelo artista Cornelis Anthonisz representando os canais de Amsterdam.

Essa foi a época de ouro da Holanda, meados do século 17, quando era o país mais rico do mundo. E foi nessa fase que a famosa rede de canais circulares foi construída em Amsterdã. As funções eram duas: criar espaço para que a água circulasse por redes seguras até o rio Amsted, evitando alagamentos, e criar um belo legado arquitetônico. Conseguiram. Os canais de Amsterdã compõem uma das paisagens mais bonitas pelas quais já pedalei.

Um trecho dos canais clássicos em perfeito estado de conservação. Foto: Natália Garcia
Um trecho dos canais clássicos em perfeito estado de conservação. Foto: Natália Garcia

História em uma cidade que parece nova

Circular pela cidade é reconhecer todas essas características históricas citadas acima. Amsterdã é linda e tolerante. É uma cidade feita para durar. Toda a estrutura desse pedaço medieval da cidade é feita com materiais extremamente resistentes. São construções de mais de 300 anos que parecem novas.

Nesse cruzamento os carros dividem a via com os traims e ciclovias. Note que há sempre pequenas ilhas entre uma camada e outra para os pedestres. Foto: Natália Garcia
Nesse cruzamento os carros dividem a via com os traims e ciclovias. Note que há sempre pequenas ilhas entre uma camada e outra para os pedestres. Foto: Natália Garcia
E a tolerância está presente em diversas escalas da cidade, incluindo aí a liberação da venda e consumo de drogas leves, a legalização da prostituição e até na mobilidade. Eu, que venho de São Paulo, estou acostumada a uma cidade dura com pedestres e ciclistas. Em Amsterdã, é diferente, cada um tem seu lugar no espaço público. O corte lateral de um lado ao outro de uma rua ou avenida possui diversas “camadas”, como calçada, ciclovia, faixa de ônibus, trilho de tram (bonde elétrico que serve a cidade), trilho de trem e faixa para carros. Quem está à pé tem sempre uma pequena ilha entre cada uma dessas camadas para ficar seguro ao atravessar a rua. Outro dado importante: a cidade se locomove devagar, todos chegam ao seu destino sem susto e sem pressa.

Outra realidade

Essa é uma avenida arterial do centro da cidade que fica ao lado do rio Amsted e liga importantes bairros da cidade. Foto: Natália Garcia
Essa é uma avenida arterial do centro da cidade que fica ao lado do rio Amsted e liga importantes bairros da cidade. Foto: Natália Garcia
Uma cidade assim tão rica e menor – são 770 mil pessoas em uma cidade de 3,5 km² – do que as metrópoles brasileiras, e com uma formação cultural tão distinta, parece não ter nada a ensinar a cidades brasileiras. De fato, eles estão na frente e talvez a comparação seja injusta. Mas nada impede que várias ideias desses holandeses possam nos ser úteis.

A primeira é o plano de mobilidade Amsterdã 2025, elaborado em conjunto pelas secretarias de transportes, habitação e meio ambiente da cidade. Ele é decorrente do fato de que Amsterdã, embora mantendo a beleza dos seus prédios históricos, não é mais aquela cidade do século XVII. Ela cresceu e se expandiu por 7 distritos, e apenas dois deles ficam na região compreendida pelos canais circulares da cidade. A população beira 800 mil pessoas que demandam bom transporte.

E, antes de decidir criar mais ruas para que mais carros possam se locomover ou uma rede maior de transporte público, o plano procurou categorizar as ruas já existentes, de acordo com sua função:

1. Ruas residenciais: não possuem espaço para transporte público, só permitem a entrada de carros e motos dos que lá habitam. Possuem livre circulação de bicicletas e pedestres.

2. Ruas de compras pequenas: são feitas para serem percorridas a pé, mas podem ter transporte público. As calçadas são largas e não há estacionamento para carros que, na maioria dos casos, nem podem circular por aqui.

3. Ruas comerciais com muito trânsito: áreas de shopping com grande circulação de carros, estacionamento nas ruas, mas sem transporte público e algumas vezes sem ciclovias.

4. Avenidas largas arteriais que ligam bairros e áreas importantes. São vias expressas que não possuem transporte público, apenas ciclovias.

5. Rodovias intermunicipais: possuem circulação de veículos pequenos e grandes de carga. Ligam a cidade aos municípios vizinhos.

As ruas residenciais como essa possuem velocidade máxima permitida de 30 km/h e não têm ciclovias: a baixa velocidade faz com que seja seguro compartilhar a pista. Foto: Natália Garcia Essa via de compras é compartilhada entre ciclistas, motoristas e pedestres e possui alguns locais de estacionamento. Foto: Natália Garcia
Estabelecidas essas classificações, fica mais claro para a prefeitura como deve agir para impedir o crescimento do uso de carros, melhorar a rede de transportes públicos, e aumentar o número de deslocamentos a pé e de bicicleta.

Hoje a divisão modal da cidade é: 36% das viagens são feitas de transporte público, 33% são de carro, 27% de bicicletas e 4% a pé. “Se conseguirmos manter o uso do carro nesse nível já ficaremos bem felizes”, explica Fokko Kuik, secretário de transportes.

Tentou-se a adoção de um sistema de pedágio urbano similar ao de Londres: quem quiser circular de carro no centro da cidade teria que pagar uma taxa. No entanto, a medida encontrou ferrenha resistência política. Então, para desencorajar o uso de veículos particulares, a saída foi diminuir o número de estacionamentos nas ruas e aumentar a tributação, tanto na compra dos carros quanto dos combustíveis.

Um dos estacionamento de carros que foi adaptado para se tornar paraciclo. Note que 8 bicicletas cabem com folga no espaço que seria ocupado por apenas um carro. Foto: Natália Garcia

Em todas as avenidas com ciclovia há o “bike box”, um espaço para as bicicletas largarem na frente quando o farol abre. Foto: Natália Garcia

Para controlar o trânsito, as grandes avenidas arteriais – aquelas que ligam bairros – terão sua infraestrutura melhorada para que concentrem todo o fluxo de automóveis. “Assim os carros sempre passarão por elas, nunca pelas ruas menores”, explica Kuik.

Não haverá grandes investimentos em mais calçadas ou mesmo ciclovias. Estão previstas apenas novos trechos de ciclovia periféricos até 2025. Já o metrô ganhará uma nova linha, que cruzará a cidade de norte a sul. A rede de tram também será ampliada. “Essa rede tem como objetivo facilitar principalmente a vida das pessoas que estão nos distritos fora do centro, mas precisam acessar a área central”, diz Kuik. “Boa parte desses deslocamentos é hoje feita de carro e isso queremos combater”.

Os estacionamentos do centro da cidade praticamente deixarão de existir e se concentrarão em zonas periféricas: para que o centro da cidade seja livre de congestionamentos. Essa medida será combinada a tentativa de desenvolver os confortos urbanos nas áreas periféricas da cidade, com a criação de escolas, centros comerciais e serviços. “Além de facilitar os deslocamentos, queremos evitar que alguns deles precisem acontecer. Queremos que as pessoas possam morar perto do trabalho”, complementa Kuik.

A avenida Overtoon, próxima ao centro histórico de Amsterdam, possui apenas trilhos de traim, ciclovias e calçadas. Foto: Natalia Garcia
A avenida Overtoon, próxima ao centro histórico de Amsterdam, possui apenas trilhos de traim, ciclovias e calçadas. Foto: Natalia Garcia
“A divisão do espaço público em camadas com funções diferentes poderia ajudar cidades com trânsito complicado, como São Paulo”, diz Kuik. No caso da capital paulista, como na maioria das cidades brasileiras, há uma rede de vias sobre o asfalto que, em sua maioria, servem apenas aos carros. “Se essas vias fossem repartidas com outros modais, a cidade ganharia muito”, diz o planejador holandês. “A pior coisa que se pode fazer por uma cidade é deixar os carros circularem livremente, porque eles ocupam espaço cada vez maior”, sentencia.

A outra lição de Amsterdã é pensar em conjunto as melhorias da estrutura urbana com o bom funcionamento da economia. “Manter os canais de Amsterdã sempre foi e continua sendo importante para a cidade”, explica o professor de planejamento urbano especializado em gestão de água, Ewald Engelen. Os canais eram economicamente importantes para permitir a entrada de barcos que abasteciam a cidade. Hoje, são um grande chamariz para o turismo. “A saída para recuperar os rios brasileiros pode estar aí, na sua valorização econômica do processo”, diz Engelen. No nosso caso, se os rios pudessem ser usados como via de transporte de cargas, por exemplo, seria economicamente vantajoso recuperá-los.

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