Enviada especial à Açailândia, Maranhão – “A mineração que temos hoje é descontrolada e, com certeza, acima dos limites de sustentabilidade do país e do planeta”, afirma Dário Bossi, de 42 anos, um missionário italiano em terras brasileiras. Sua grande preocupação: o que vai acontecer depois que a extração de minério acabar? O amparo a comunidades pobres atingidas pela mineração se mistura com a história deste padre italiano que deixou Samarate, pequena cidade de 15 mil habitantes na região da Lombardia, fronteira com a Suíça, no norte da Itália, para lutar pela causa socioambiental no Brasil. Ele chegou ao Maranhão em 2007 e se engajou na defesa de comunidades afetadas pela extração mineral.
Dário vem de uma pequena congregação, os Combonianos. Eles são apenas 2.200 missionários espalhados pelo mundo, especialmente na África e América Latina. Daniel Comboni, que dá nome ao grupo, foi um dos primeiros bispos no continente africano ainda na época colonial e foi reconhecido como um dos grandes defensores da causa dos africanos no período do imperialismo.
No Brasil, eles somam 90 e estão também em países como Equador, Colômbia e Peru. Por aqui, a prioridade de ação é na região amazônica nos estados de Roraima, Amazonas e Rondônia, mas também em periferias urbanas, como Fortaleza, João Pessoa, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, através das pastorais.
Rede Justiça nos Trilhos
Após ter vivido na periferia da zona leste paulista e ter lidado com crianças e adolescentes em conflito com a lei, o italiano desembarcou no nordeste brasileiro, no pequeno povoado de Piquiá de Baixo, bairro de Açailândia cercado por guseiras, sobre o qual o eco produziu esta série especial de sete reportagens. De Piquiá, o missionário não saiu mais. Fincou os pés e ajudou a criar a Rede Justiça nos Trilhos para monitorar e apoiar comunidades atingidas ao longo da estrada de ferro Carajás.
Em contato direto com pequenos agricultores, jovens missionários, estudantes, pesquisadores e defensores de direitos humanos, Dário conseguiu articular movimentos sociais e reunir academia, padres, ambientalistas e operários de indústrias siderúrgicas. Através da Rede Justiça nos Trilhos, ele integra a Rede Brasileira de Justiça Ambiental e o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração que discute em Brasília ajustes para o novo código da mineração.
Entre a população de Açailândia, Dário se destaca. Ele não tem pele curtida do sol e nem porte físico de quem pega pesado em serviços braçais como boa parte da população local. De pele clara, esbelto, magro, longilíneo, com uma calvice que lhe confere um ar de padre e fala mansa ainda com sotaque italiano, Dário é respeitado e chama a atenção por onde passa.
Com os olhares atentos ao volante nas ruas esburacadas tanto de Açailândia como de São Luís, Dário conta histórias e é capaz de explicar o panorama social da região sem se distrair. É requisitado e hiperativo, dá entrevista e atende ao celular ao mesmo tempo. Dorme pouco e procura ser o mais hospitaleiro possível, mesmo quando tem que cuidar de um grupo de mais de 20 pessoas, entre eles estrangeiros e a autora desta série. No início de maio, a Rede Justiça nos Trilhos ajudou a organizar o seminário internacional “Carajás 30 anos” junto com o Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA) da Universidade Federal do Maranhão, que ocorreu em São Luís.
Questão socioambiental silenciada
Ao desembarcar no Maranhão há mais de 7 anos, Dário ignorava os conflitos e problemas da região. Estudou, correu atrás, buscou informações, se aliou a grupos de estudos, a movimentos sociais e a populações atingidas para tentar compreender a intrincada cadeia que envolve a mineração e seus impactos. Hoje, padre Dário, como ficou conhecido, é considerado um dos grandes conhecedores do tema.
“Com o passar dos anos, amadurecemos que não era só a questão religiosa e de migração operária desordenada no pólo industrial de Açailândia, mas também a questão socioambiental que estava sendo silenciada”
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“Ser padre aqui significa assumir os desafios e os sonhos das pessoas e da natureza que geme nas dores de um parto”, é como Dário descreve seu ofício no seu blog em português que tenta atualizar com frequência, apesar da atribulada agenda de compromissos.
“Com o passar dos anos, amadurecemos que não era só a questão religiosa e de migração operária desordenada no pólo industrial de Açailândia, mas também a questão socioambiental que estava sendo silenciada. Queríamos abrir uma nova experiência de cunho socioambiental”, explica Padre Dário. “Desde o começo percebemos que o conflito era grande e que não tínhamos as forças e nem competências para enfrentar tudo. A ideia era compor uma equipe de múltiplas competências e o mesmo foco de ação. O desafio era totalmente diferente”, explica.
“Nos deparávamos com conflitos isolados”, diz ao referir-se ao monocultivo de eucalipto, pois muitos trabalhadores se queixavam da chegada inesperada e não negociada das empresas de celulose, siderúrgicas e do trabalho análogo ao escravo ligado à produção do carvão. “Outra questão era da poluição. No Piquiá, o povo não aguentava mais e não sabia o que fazer. O trem passava e a gente não compreendia bem as conexões e sequência dos conflitos amazônicos”, comenta.
Programa Carajás
Ele explica que, por trás de conflitos aparentemente isolados, há um desenho que conecta toda série de problemas socioambientais: o programa Carajás de mineração. Há pouco mais de 30 anos, o Decreto de Lei nº 1.813, de 24 de novembro de 1980, instituiu o Projeto Grande Carajás, destinando uma área de 900 mil km, entre os estados do Pará, Tocantins, e Maranhão, para a extração de minério. Criado pela então Vale do Rio Doce, durante o governo de João Figueiredo (1979 a 1985), o programa prometia o desenvolvimento social e econômico dos estados do Norte e Nordeste.
A rede idealizada por Dário conecta comunidades atingidas por tal projeto e atua ao longo do eixo da ferrovia Carajás, de Parauapebas no Pará até São Luís do Maranhão. Segundo a própria Vale, São 892 km de trilhos pelos quais circulam ao mesmo tempo 35 composições, entre elas um trem de carga com 330 vagões e 3,3 km de comprimento. Elas fazem 24 viagens de ida e volta por dia entre a mina de Carajás e o porto da Ponta da Madeira, no litoral maranhense. Esse trajeto margeia 27 municípios, cerca de 100 comunidades, onde vivem 2 milhões de pessoas.
“Há comunidades rurais, periferias urbanas, assentamentos de reforma agrária, indígenas e quilombolas com diferentes conflitos”, destaca. “Ou a gente enfrentava a questão pelo seu miolo, ou se ficássemos na periferia dos conflitos epidérmicos, não iríamos resolver nada”. Para ele, a Justiça nos Trilhos não se reconhece como uma “ONG de escritório”. A sua vocação, defende, é “estar ao lado dos atingidos” nas comunidades a fim de assessorá-los juridicamente, promover campanhas de educação e propor alternativas.
“(…) estão abrindo uma nova mina e uma nova ferrovia inteira ao lado da que existe. É uma operação de trabalho muito grande, (…) e foi passado à população como se fosse simplesmente uma pequena expansão, através do processo de fragmentação das licenças ambientais.”
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Dário diz que, além de criticar e denunciar, a organização procura atuar de maneira construtiva. “Temos consciência de que há alternativas possíveis, trabalhamos na formação de agroecologia, na implantação de projetos experimentais de cultivo e definição legal de fundos sociais comunitários”.
O movimento que Dário lidera é contrário à mineração como é praticada hoje e defende uma reestruturação do setor. “Trabalhamos na dimensão da mitigação para diversificar e distribuir os lucros a fim de que o empreendimento seja menos impactante e de distribuição mais igualitária”.
Caso de Piquiá é emblemático
Na sua opinião, o caso de Piquiá de Baixo é um dos mais emblemáticos ao concentrar tantos problemas numa comunidade só. A preocupação é maior ainda, diz o missionário, em função dos impactos futuros que poderão ser causados durante as obras de duplicação da Estrada de Ferro Carajás, caso a comunidade não seja reassentada a tempo.
Os moradores enfrentam dificuldades em conseguir financiamento e apoio para a construção de um novo bairro e criticam o papel da Vale no processo. Os projetos da empresa, porém, seguem nos trilhos. Em 7 de fevereiro de 2014, a Vale obteve licenciamento ambiental para ampliar a extração de minério de ferro na Serra Norte de Carajás, no Pará. E ainda em maio, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) aprovou financiamento de R$ 6,2 bilhões para a companhia. Esta é parte de uma verba de R$ 37,8 bilhões que será usada em melhorias no Complexo de Carajás e na Capacitação Logística Norte.
O projeto inclui a construção de uma unidade mineradora e de beneficiamento de minério de ferro com capacidade para 90 milhões de toneladas por ano, assim como de um ramal ferroviário entre as cidades de Canãa dos Carajás e Parauapebas, no Pará. Também será realizada a expansão da capacidade de transporte da estrada de ferro Carajás para 230 milhões de toneladas por ano.
O Sistema Norte do complexo contém um dos maiores depósitos de minério de ferro do mundo e produziu 115 milhões de toneladas em 2013 – um minério de alta qualidade, alto teor de ferro e baixa concentração de impurezas. A Vale pretende ainda iniciar a exploração das reservas de Serra Sul – uma das três regiões que compõe o Sistema Norte de mineração, em Carajás. Após a ampliação da capacidade da ferrovia Carajás, a capacidade de transporte irá aumentar de 150 milhões de toneladas de minério de ferro por ano para 230 milhões de toneladas por ano.
A mais nova e cobiçada mina é a chamada S11D, a maior da história da Vale e da mineração, que prevê a exploração de apenas uma parte das 45 formações de minério de ferro que compõem a cordilheira Serra Sul, em Carajás. A Serra Sul integra a Serra Nacional dos Carajás e tem potencial maior do que a vizinha Serra Norte, onde já está localizada a maior mina de ferro do mundo.
Nova mina
“Nada foi conseguido na base de acordos serenos e amigáveis. Foi necessário um processo forte de denúncia com a instalação de um inquérito civil público em 2011. Tudo isso só aconteceu resultado de pressão, mobilização do povo e atos nunca violentos, o máximo foi bloquear a entrada das siderúrgicas na BR-222 por 30 horas”
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“Na prática, estão abrindo uma nova mina e uma nova ferrovia inteira ao lado da que existe. É uma operação de trabalho muito grande, a construção de um programa totalmente novo e foi passado à população como se fosse simplesmente uma pequena expansão, através do processo de fragmentação das licenças ambientais. Seriam alguns pequenos ajustes com condições legais e negociações sociais muito menores”, argumenta Dário.
Na duplicação, serão construídos 47 viadutos e cinco grandes pontes. A que hoje fica localizada em Piquiá de Baixo, a chamada “Ponte dos 40”, em referência aos 40 metros de altura sobre o rio que leva o nome da comunidade, deve ser ampliada.
A Vale informa que já iniciou as obras de 5 destes novos viadutos e todos estarão prontos até o fim das obras de expansão, previstas para 2018. “O local dos novos viadutos foram validados com lideranças comunitárias das regiões onde as passagens serão instaladas, considerando assim a necessidade deles na execução do projeto”, comunica a empresa.
“Piquiá é, com certeza, a comunidade que mais se destaca, pois a duplicação terá um impacto estrutural, além de ampliar as estradas de acesso à ponte, o que vai invadir a área da comunidade”, diz o padre, que lembra ainda da instalação de um grande canteiro que será necessário para as obras.
Não é só o barulho que vai aumentar, mas também as vibrações e a poluição. A poeira que Piquiá já sofre, é decorrente não só das atividades siderúrgicas, mas também dos resíduos provenientes do pátio de descarregamento de minério e dos caminhões que transportam minério e carvão. “Se outros caminhões tiverem que começar a circular para construir a ponte, aquilo vai se tornar um inferno”, prevê.
Sem data para início das obras de duplicação em Piquiá, Padre Dário imagina que esta seja a última parte, tanto pela complexidade da construção como pelo conflito social existente. “Se eles chegassem agora para duplicar geraria um conflito enorme. A Vale é refém daquele povo, mesmo sem reconhecer isso, ela teme entrar agora na comunidade, pois não vai ser bem recebida”.
Os moradores de Piquiá de Baixo ainda vivem na expectativa de conseguir a complementação de 30% do valor necessário para dar início às obras do novo bairro.
“Nada foi conseguido na base de acordos serenos e amigáveis. Foi necessário um processo forte de denúncia com a instalação de um inquérito civil público em 2011. Tudo isso só aconteceu resultado de pressão, mobilização do povo e atos nunca violentos, o máximo foi bloquear a entrada das siderúrgicas na BR-222 por 30 horas”, diz o padre Dário bossi.
Esta é a sétima e última reportagem da série especial Piquiá de Baixo, sobre a vida dos impactados ambientais da produção de ferro gusa no Maranhão.
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