Reportagens

Papa entra na política do clima e cobra países ricos

Encíclica histórica sobre meio ambiente e limites ao consumo critica a falta de resultados efetivos nas conferências ambientais.

Cíntya Feitosa ·
19 de junho de 2015 · 10 anos atrás

 

Papa Francisco aperta a mão do Secretário-Geral das das Nações Unidas Ban Ki-moon, durante encontro no Vaticano em abril de 2015. Foto: AP Photo / L
Papa Francisco aperta a mão do Secretário-Geral das das Nações Unidas Ban Ki-moon, durante encontro no Vaticano em abril de 2015. Foto: AP Photo / L

A encíclica papal divulgada nesta quinta-feira (18) não é só um manual de conduta para a Igreja Católica, mas um documento político que demanda ações efetivas no combate às mudanças climáticas e no auxílio aos povos mais pobres do planeta. Na carta de 190 páginas, intitulada “Laudato Si” (Louvado Sejas), o papa Francisco defende uma mudança profunda no atual modelo de desenvolvimento e cobra dos países ricos sua dívida com o planeta, em especial em relação aos povos mais vulneráveis aos efeitos da degradação ambiental.

Embasado no consenso científico de que o desequilíbrio na temperatura do globo é causado sobretudo pela atividade humana, o pontífice destaca as mudanças climáticas como um dos maiores desafios da humanidade, com implicações ambientais, sociais, econômicas, distributivas e políticas. A carta alerta para migrações devido à escassez de recursos, além dos eventos climáticos extremos que já atingem parte do planeta. “Infelizmente, verifica-se uma indiferença geral perante estas tragédias, que estão acontecendo agora mesmo em diferentes partes do mundo.

O princípio moral do documento é que a humanidade é parte da natureza, e deve compreender que não deve subjugá-la para atender aos seus objetivos, pois, além da missão de cuidar da criação de Deus, também sofrerá as consequências da degradação. “Há uma revalorização da teologia da criação, segundo dois conceitos-chaves: cultivar e guardar”, disse o presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), dom Sérgio Rocha. “Não somos senhores da natureza, somos administradores. Isso não é novidade absoluta, mas, numa encíclica, adquire um peso diferente.”

Mas, além dos princípios cristãos e da questão social quanto à responsabilidade sobre os mais pobres, Francisco apresenta soluções econômicas e políticas. Ele aponta a necessidade da transição para uma economia de baixo carbono, com a ampliação do acesso a energia renovável e adoção de boas práticas em setores da economia como a construção civil, por exemplo. “Torna-se indispensável um consenso mundial que leve, por exemplo, a programar uma agricultura sustentável e diversificada, desenvolver formas de energia renováveis e pouco poluidoras, fomentar uma maior eficiência energética, promover uma gestão mais adequada dos recursos florestais e marinhos, garantir a todos o acesso à água potável.”

Presente na divulgação da encíclica, o cardeal Peter Turkson, presidente do Pontifício Conselho Justiça e Paz no Vaticano, reforçou a ideia de que a questão moral não está separada das questões políticas. “Somos parte da natureza. Não temos duas crises distintas, uma ambiental e outra social, mas sim uma única crise socioambiental complexa. Este é o contexto em que colocamos alguns dos temas da Encíclica.”

“A encíclica é muito realista, proativa e corajosa”, resumiu o arcebispo de Salvador e vice-presidente da CNBB, dom Murilo Krieger. Realista, segundo ele, por traçar um quadro sem retoques da situação ambiental do planeta. Proativa por propor soluções econômicas, políticas e culturais ao problema; e corajosa por aventurar-se no território da decisão política, algo incomum na Igreja, apontando responsabilidades.

Segundo o secretário-executivo da CNBB, dom Leonardo Steiner, o documento reforça posições do episcopado brasileiro. Três campanhas da fraternidade já tiveram temas socioambientais, e a de 2017 terá como mote “vida e biomas”.

Segundo a CNBB, a carta de Francisco terá grande repercussão não só nas negociações internacionais de clima, no fim do ano, em Paris, como também no governo brasileiro. Dom Leonardo afirmou ao OC que a CNBB quer usar a encíclica para estabelecer um diálogo com o governo sobre o tema.

Carta é bem recebida na comunidade internacional

A “Laudato Si” chega em momento importante para a agenda global de negociações, às vésperas de definições das Nações Unidas sobre os objetivos de desenvolvimento sustentável, em setembro, e do acordo do clima, em Paris, em dezembro. O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, saudou o papa por sua posição firme em cobrar uma ação urgente. Em nota, Ban instou os governos a colocar o bem comum acima dos interesses nacionais e a adotar um acordo climático universal ambicioso em Paris.

A mensagem do papa também foi bem acolhida na UNFCCC, braço da ONU para mudanças climáticas. “Essa convocação deve guiar o mundo rumo a um acordo climático universal forte e durável em Paris no final deste ano”, disse a secretária-executiva Christiana Figueres. “Juntamente com o imperativo econômico, o imperativo moral não deixa dúvida de que temos de agir sobre a mudança climática agora.”

Jim Yong Kim, presidente do Banco Mundial, também se manifestou: “Deve servir como um lembrete austero para todos nós sobre a ligação intrínseca entre mudanças climáticas e pobreza.”

O secretário-executivo do Observatório do Clima, Carlos Rittl, afirmou que a carta é um documento histórico e um manual completo de desenvolvimento sustentável. “O papa Francisco demonstrou uma coragem que tem faltado aos líderes mundiais ao delinear claramente as causas do problema da mudança climática, que passam pelos padrões insustentáveis de produção e consumo, e ao apontar suas soluções, que passam pela saída da era dos combustíveis fósseis.”

Em setembro, na sua participação na assembleia-geral da ONU, o papa Francisco terá a oportunidade de fazer, pessoalmente, o chamado político à atuação dos governos de todo o mundo. Na encíclica, o pontífice fez duras críticas às conferências ambientais. “As negociações internacionais não podem avançar significativamente por causa das posições dos países que privilegiam os seus interesses nacionais sobre o bem comum global”, diz. “Aqueles que hão de sofrer as consequências que tentamos dissimular recordarão esta falta de consciência e de responsabilidade.”

Responsabilidade global

Em sua carta, o papa defende o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas na questão climática, segundo o qual os países mais industrializados têm maior responsabilidade em contribuir para solucionar a crise – o que não exime os países em desenvolvimento de compromisso.

“Uma vez que os efeitos das mudanças climáticas se farão sentir durante muito tempo, mesmo que agora sejam tomadas medidas rigorosas, alguns países com escassos recursos precisarão de ajuda para se adaptar a efeitos que já estão a produzir-se e afetam as suas economias”, diz.

O líder católico também critica a ideia do “crescimento infinito”, bem como a ideia de que as soluções para a crise estão na tecnologia. Há críticas sobre a externalização dos custos ambientais e sobre a fé nas forças de mercado darão um jeito no ambiente. O papa propõe uma nova economia, que use a criatividade em favor de menos desperdício e menos impacto.

A carta busca um “novo significado” para a existência, no lugar da busca pelo desenvolvimento ilimitado. “Somos nós os primeiros interessados em deixar um planeta habitável para a humanidade que nos vai suceder. Trata-se de um drama para nós mesmos, porque isto chama em causa o significado da nossa passagem por esta terra.”

*Este artigo foi publicado originalmente no site do Observatório do Clima, republicado em O Eco através de um acordo de conteúdo.

 

 

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