Abaixo dos municípios de Apuí e Manicoré, no sul do Amazonas, existe uma imensa área de floresta praticamente intocada. Tem a forma de um triângulo. Um de seus lados encosta-se no Pará. O outro se estende pela fronteira com o Mato Grosso. O último se estica da margem do Tapajós, na divisa do Amazonas com o Pará, e vai até Humaitá, cidade próxima à Rondônia. Há poucos humanos lá dentro – apenas populações ribeirinhas e, presume-se, uma tribo de índios ao longo da área do Rio Juruena. Mas do lado de fora, esse triângulo de mato já está cercado de gente por quase todos os lados. Um “vetor de pressão”, como preferem os ambientalistas, fica ao norte, é antigo e já está relativamente estabilizado. Vem da época da Transamazônica. A novidade são os dois que apareceram ao sul, em Mato Grosso, e à oeste, vindo de Rondônia. Em comum com o primeiro vetor, têm a grilagem de terra. A diferença, além da origem geográfica, está na rapidez, organização e intensidade da sua onda de invasões.
“De 2000 para cá veio muita gente. Como nunca veio”, diz o paranaense Antonio Roque, prefeito de Apuí, na beira da Transamazônica, distante uns 100 quilômetros dessa área de floresta. Do seu centro, num raio desta mesma extensão, satélites a serviço do Imazon enxergaram 8% de todo o terreno no entorno do triângulo já ocupado. Em 30% dele, as imagens mostraram focos de calor, indicativos de presença humana potencial. É quase tudo irregular. Na região próxima à Rondônia e ao Mato Grosso, os satélites registraram a existência de 5 mil 735 quilômetros de estradas clandestinas, a maioria servindo a madeireiros também clandestinos e aos pecuaristas que vêm na sua esteira. É gente fincando estacas de demarcação ou retirando recursos de áreas públicas na marra. A sensação de Roque de que o mundo ficou apertado e os dados do Imazon são a prova que o sul do Amazonas virou a bola da vez da ocupação fundiária ilegal no norte do Brasil.
Para tentar conter o desmatamento clandestino e a grilagem de terra na área, o secretário de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SDS) do estado, Virgílio Viana, está dando os retoques finais numa arma feita de rios, plantas e bichos. Até a primeira semana de novembro, ele promete pôr na mesa do governador Eduardo Braga um decreto criando neste triângulo uma espécie de mosaico de unidades de conservação. Seus 3, 2 milhões de hectares vão abrigar três parques estaduais, três reservas de desenvolvimento sustentável e uma floresta estadual. Quem pensa que eles são frágeis para deter a marcha dos grileiros está muito enganado, insiste Claudio Maretti, da WWF, uma das três Ongs – as outras são a Conservação Internacional e o Imazon – que mergulharam de cabeça, inclusive financiando parte dos trabalhos, na proposta de legalizar a região como área de preservação. (mapa)
“No Brasil, unidades de conservação ainda são a melhor opção para evitar a ocupação e o desmatamento ilegal”, diz. O mato legalizado faz do grileiro um derrotado. Ou pelo menos o obriga a se arriscar mais para, por exemplo, extrair madeira ilegalmente da floresta. “A fiscalização tende a ser maior e a pena para quem é pego depredando a natureza mais severa”, explica Analzita Muller, que cuida do projeto de Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA), do ministério do Meio Ambiente, e acompanha de perto o processo sobre o destino final do sul do Amazonas para o governo federal. Que Braga vai assinar o decreto de criação da zona de proteção, ninguém que está metido no assunto duvida. A questão é quando. “Na segunda quinzena de novembro”, afirma Viana. “Janeiro”, diz Maretti. “É urgente”, apela Rita Mesquita, do departamento de projetos especiais da SDS.
“O pessoal novo que está chegando é melhor organizado e armado do que os que apareceram aqui há 30 anos atrás. É um esquemão, com milícia e tudo. Tem ar de empreendimento”, continua ela, contando que há gente investindo de 2 a 3 milhões de reais nesse tipo de empreitada. A urgência sobre a necessidade de se tomar alguma atitude ficou patente numa oficina de líderes comunitários do estado do Amazonas que a SDS fez em Manaus há um ano. “Viu-se que, pela intensidade da grilagem vinda do Mato Grosso e de Rondônia, aquilo tinha virado uma área de preservação prioritária”, conta Viana. Claro que além de implantar um bastião de defesa contra os grileiros, a assinatura do governador no decreto vai proteger um bocado de biodiversidade. Nesse mosaico de unidades de conservação que a SDS pretende implantar, sobretudo nos três parques, existem espécies endêmicas de pássaros, cabeceiras ainda relativamente intocadas de rios, cachoeiras e doze espécies de primatas. Há ainda resquícios de Mata Seca, um tipo de vegetação que foi riscada do mapa pela soja no Mato Grosso.
No Parque do Juruena, na fronteira com o Pará, há a notícia da existência de uma tribo de índios ainda isolada e de um sítio arqueológico. Próximo a ele, fica uma mina de calcário, coisa que, segundo Mesquita, num solo de formação antiga como o amazônico, dá uma exuberância e vitalidade singulares à vegetação. “Se o governo não assinar o decreto, tudo isso vai sumir”, diz Adalberto Veríssimo, do Imazon. “Se assinar, talvez daqui há 20, 30 anos, essa será a única área de floresta que vai sobrar naquela região”. Ele acha que a criação do mosaico é ao mesmo tempo um ato de resistência e capitulação. “Na ausência de governo, ele é o melhor instrumento para barrar a devastação e a ocupação ilegal”. Nos municípios no entorno da floresta, essa parece ser também a visão dominante. Nas consultas públicas que, como manda a lei, aconteceram no sábado 23 de outubro em Apuí e no dia seguinte em Manicoré, a proposta do mosaico foi aprovada. Não por amor ao verde, mas pela percepção geral de que isso ajudará a disciplinar a bagunça da estrutura fundiária na região e desarmará a tensão.
“Não é a melhor razão para preservar, mas não deixa de ser uma razão e a natureza agradece”, diz Mesquita, comemorando os resultados. Em Apuí, localizado num entroncamento da Transamazônica, em zona antiga de desmatamento, os limites à exploração econômica dentro do mosaico foram engolidos a contra-gosto pela audiência. Numa floresta estadual, a lei permite a extração de recursos em regime de manejo, com o menor impacto possível para o meio ambiente. Até mineração ou corte de madeira, desde que obedecendo às regras de manejo florestal. Nela pode-se também criar pequenos animais para a subsistência. Vaca, por exemplo, nem pensar. Nas reservas de desenvolvimento sustentável, é possível fazer tudo isso e mais agricultura familiar. Nos parques, só pesquisa e turismo ecológico.
“Não dá. O povo aqui é muito ambicioso. Como é que você trabalha e não pode fazer suas coisas crescer”, pergunta Luis Carlos Lempke, um agricultor catarinense casado com uma cearense, mistura nada incomum numa cidade onde quase todo mundo vem de outro lugar. No auditório da escola municipal Darcy Ribeiro, onde a reunião se estendeu por 8 horas, entre os 250 presentes, apenas dois levantaram o braço quando Viana, dando início aos trabalhos, perguntou quem tinha nascido ali. O resto fazia parte do contingente de gaúchos, paranaenses e nordestinos que chegaram lá em levas de intensidade variada do fim da década de setenta até meados dos anos 90. Os primeiros vieram num assentamento do Incra, em 1978. Os outros foram chegando ao longo dos anos seguintes.
Em 1987, a área foi elevada a município e seu planejamento urbano espelha essa juventude. Tem 18 mil habitantes e apenas algumas ruas são asfaltadas. Não há calçadas. Construção de alvenaria, só no centro. A maioria das casas ainda é de madeira. Não se pode dizer que seja uma cidade suja. Mas já tem problemas ambientais comuns às aglomerações urbanas. Um buritizal foi cortado ao meio pela Transamazônica. A estrada represou a água e criou uma lagoa de água imunda, onde as árvores estão morrendo. Apuí também há muito perdeu o que parecia a José Luis Amaral, que se apresenta como correligionário do prefeito Roque, um dos seus charmes. “No começo, a comida chegava até as pessoas andando. Quantas vezes a gente caçou porco que vinha dar no meio da cidade”.
Ao redor de Apuí, a mata já está rala e o que continua de pé segue sendo derrubado sem qualquer fiscalização. Da janela de um caquético bimotor Bandeirante prestes a tocar a pista do aeroporto municipal, Viana identificou vários focos de desmatamento recente. Até onde ainda existem árvores. “Eles cortam a floresta por baixo e isso deixa o dossel da floresta fica mais ralo”, explica. Usar os recursos naturais de maneira restrita é algo que vai contra a tradição local. Lempke, pequeno agricultor como a maioria dos que estavam na audiência pública, tem história para achar tantas regras para exploração do solo estranhas. Nem toda a extensão de terra que ele cultiva há duas décadas é legalizada. Não é anormal. O prefeito Roque, que virou pecuarista dos grandes, reconhece que só 500 hectares dos 10 mil onde pastam seus bois estão legalizados.
Portanto, se há algo que o pessoal de Apuí entende é grilagem. E dessa que vem pelo oeste e sobretudo do sul, pelo Mato Grosso, empurrada pela expansão da soja, até um sujeito como Roque tem medo. Diz que os invasores são poderosos e bem organizados, capazes de ocupar grandes extensões de mato em um dia. E não têm qualquer cerimônia em expulsar alguém que já esteja nele há mais tempo. “Essa reserva vai criar outros problemas”, diz, pensando no aumento da fiscalização que ela vai trazer. “Mas por outro lado ajuda a arrumar a bagunça. Precisamos de um ordenamento”. É essa necessidade de ordem que, paradoxalmente, faz com que a principal sugestão saída de uma audiência pública, onde a maioria dos presentes já grilou terra, seja no sentido de fortalecer as restrições à exploração na área de floresta do sul do estado. Pede que a reserva de desenvolvimento sustentável ao longo do rio Aripuanã seja ampliada. São situações assim que Viana fica mais convicto ainda de que a região está à beira do que ele chama de estágio de “detonação”.
Vista do alto, pela janela do Bandeirante, Manicoré é uma cidade que não tem nada a ver com sua vizinha, Apuí. Foi fundada há 125 anos, tem 40 mil habitantes – a maioria descendentes de caboclos que estão lá há gerações – e os sinais dessa história mais longa estão por toda a parte. O espaço urbano da cidade é organizado e sua estrutura fundiária mais estável, baseada numa velha tradição de extrativismo. A economia depende da pecuária e da melancia e os sinais da prosperidade que ambas as atividades lhe trouxeram estão por toda a parte. As ruas são asfaltadas e boa parte das casas já tem ar condicionado. Manicoré não tem a menor vergonha em prestar homenagens aos dois baluartes de sua economia. Tem um monumento à melancia – uma reprodução realista em tamanho gigante da fruta – e praticamente todas as pinturas no seu vasto centro de exposições fazem menção a ela e ao boi.
Quando os manicorenses falam em grilagem de terras, a preocupação está mais para rivalidade regional do que para realidade. Querem apenas ver gaúchos, paranaenses e nordestinos longe de lá. Se os parques, a floresta e as reservas ajudam a empurrar essa turma para longe, melhor. Daí o apoio popular à idéia das unidades de conservação no sul do estado. “Isso ajuda a manter as nossas terras na mão dos caboclos amazônicos”, diz um madeireiro que faz manejo florestal na região. Mesmo com uma ameaça distante, a sensação que unidades de conservação ajudam a organizar a posse e propriedade de terras é evidente. Na audiência pública, feita num auditório com pintura rosa tinindo de nova e refrescado por seis aparelhos de ar-condicionados, Viana e sua equipe receberam, como em Apuí, proposta para restringir ainda mais o acesso aos recursos da floresta. Os presentes recomendaram a criação de uma 3ª reserva de desenvolvimento sustentável, no extremo oeste, próximo ao parque do Guariba. Também tiveram que debater a implantação de reservas extrativistas em área do governo federal no município, para ajudar a legalizar a posse de terra.
Na segunda-feira, dia 25 de outubro, em Manaus, o secretário reuniu-se com o grupo de trabalho que se ocupa diretamente da criação da reserva no sul do Amazonas – além de seu pessoal, ele inclui os representantes da WWF, da Conservação Internacional, do Instituto de Terras do Estado do Amazonas (ITEAM) e do ministério do Meio Ambiente. No encontro tentaram aplainar suas divergências sobre a qualidade das unidades de conservação que vão estar dentro do mosaico e incluir as propostas colhidas na audiência pública. As Ongs queriam que as unidades de proteção integral – ou seja, os três parques estaduais, – tivessem áreas maiores. “Achamos a proposta de proteção tímida”, diz Claudio Maretti, da WWF. Ele preferia ver principalmente a região sul do parque do Juruena, na fronteira com o Pará, mais extensa do que estava no desenho original. “Não há necessidade de tanto espaço para uma floresta estadual, onde o meio ambiente fica mais vulnerável à presença do homem”, raciocina. Enrico Bernardi, da Conservção Internacional, insistiu na ampliação do parque do Cumaiú, uma tripa de terra a 100 quilômetros da Transamazônica, na parte norte da área que será demarcada.
Viana rebate dizendo que sua experiência ensina que regiões de proteção integral muito extensas geram enormes resistências onde já existe a presença de seres humanos. “Nossa proposta é pautável a todos os interesses envolvidos”, diz. Além de levar em conta os interesses das Ongs, o secretário ainda teve que considerar sugestões colhidas em Apuí e Manicoré, uma para ampliar uma reserva de desenvolvimento sustentável e outra para criar uma nova, próxima ao que pode virar o parque do Guariba, no extremo oeste do triângulo de floresta. Ele não é muito claro sobre os resultados do encontro. Garante que os interesses econômicos, ambientais e sociais foram conciliados e incorporados, mas prefere fazer mistério sobre o desenho final do mosaico que irá submeter ao governador Eduardo Braga. Bobagem. O mapa sofreu modificações. Algumas profundas. Todas a favor do meio ambiente.
As sugestões saídas das audiências públicas foram incorporadas. A terceira reserva de desenvolvimento sustentável, perto do Guariba, já está incluída no mosaico. A do Aripuanã foi estendida até a fronteira com o Mato Grosso, correndo ao longo da calha do rio. O parque do Cumaiú também aumentou de tamanho. O Juruena perdeu um pouco de terreno na parte norte. Ele foi incorporado à reserva de Barati, que aumentou de tamanho Não era necessariamente o que Maretti queria. Mas como ele reconhece, é muito melhor do que nada. O desenho final desta linha de defesa verde contra os grileiros está portanto pronto. O Amazonas também já tem 500 mil dólares de doadores internacionais para serem usados na implantação do mosaico. O dinheiro pode ser maior, caso o conselho da fundação Moore, dos Estados Unidos, aceite a decisão de seu corpo técnico e autorize a doação de 3 milhões de dólares para o governo do Amazonas, a serem usados na preservação ambiental. Só fica faltando mesmo Braga meter seu jamegão no decreto. Nunca uma floresta à beira do precipício dependeu tanto de uma canetada.Se o mosaico sair do papel, é provável inclusive que o governo federal se sinta incentivado à arrumar o seu pedaço da casa naquela região. Planos para isso não faltam. Na segunda-feira, na mesma reunião que decidiu o desenho das unidades de conservação que ficarão em terreno do estado do Amazonas, foram feitas sugestões, já incorporadas ao mapa ambiental da região, de criação de mais três áreas de preservação próximas à Transamazônica.
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