Reportagens

Terapia contra o pânico

O principal desafio do Protuba, novo projeto para livrar os tubarões da extinção, é tratar do pavor que a maioria das pessoas sente em relação a eles.

Lorenzo Aldé ·
19 de novembro de 2004 · 20 anos atrás

Num lindo dia de sol, praia cheia, um banhista nada até depois da arrebentação e fica lá, curtindo o mar e o visual da praia. De repente, repara que as pessoas na areia começam a se levantar, depois correm em direção ao mar gritando alguma coisa e agitando os braços para cima. Pais e mães desesperados retiram seus filhos da água. Alarmado, ele olha em volta e só vê a imensidão azul e silenciosa. Até que surge algo. É uma barbatana. A câmera passa para debaixo d’água, e agora vemos as pernas do banhista agitando-se sem sair do lugar. Sobe a música de suspense…

A esta altura, o público já está crispado na cadeira, e o pavor que está sentindo o acompanhará para fora do cinema. Mais do que isto, contaminará as gerações seguintes. Exagero? Pois foi isto que o filme Tubarão, de Steven Spielberg, causou nas platéias ao redor do mundo. E mesmo tendo sido lançado em 1975, é até hoje visto como o principal responsável pela má fama dos tubarões.

Diante da pergunta “Por que as pessoas têm tanto medo dos tubarões?”, Marcelo Szpilman, um dos maiores estudiosos do assunto no Brasil, não pensa duas vezes: “Basicamente por causa do filme Tubarão. É um marco divisor tremendo. As pessoas passaram a ter fobia e raiva de tubarão, como uma ameaça a ser exterminada”. Ele se lembra da sua própria reação ao ver o filme: “No dia seguinte, morri de medo de entrar na piscina. E olha que eu já mergulhava, desde os 10 anos de idade”.

O assunto o interessa especialmente porque ele é diretor do Projeto Tubarões no Brasil (Protuba), que o Instituto Ecológico Aqualung lança oficialmente dia 24 de novembro, no Rio. Com o objetivo geral de preservar as espécies de tubarão ameaçadas de extinção no país, o Protuba tem quatro linhas de ação. A primeira é “desmistificar a irreal imagem assustadora dos tubarões”. Para isso, o projeto vai produzir e distribuir publicações e promover campanhas e palestras de esclarecimento. As outras ações serão um levantamento da situação das diferentes espécies de tubarão no Brasil, a criação de uma rede de associados e o apoio a entidades que já atuam na preservação dos tubarões.

A Revista do Protuba será distribuída no lançamento do projeto. No primeiro número da publicação, que terá periodicidade semestral, o mito de que os tubarões seriam “feras assassinas” é contestado com várias estatísticas e informações científicas. Apesar de temidos, os ataques de tubarão são pouco freqüentes. É muito mais fácil morrer atingido por um raio (1 chance em 4 milhões) do que atacado por um tubarão (1 em 94 milhões). Se seguíssemos a lógica dos números, também deveríamos ter mais medo de cachorros do que de tubarões. Eles matam nove vezes mais. Das 400 espécies de tubarão existentes no mundo (88 no Brasil), apenas três podem ser consideradas perigosas: o tubarão-branco (Carcharodon carcharias), a tintureira (Geleocerdo cuvier) e o cabeça-chata (Carcharhinus leucas). Apenas as duas últimas estão presentes no Brasil. E mesmo assim a maioria dos ataques ocorre por erro de identificação: ao sentir que sua mordida não atingiu um peixe ou tartaruga, o tubarão deixa a vítima em paz. Nenhuma maldade no gesto, portanto.

Em Recife, onde acontece a maioria dos ataques de tubarão no Brasil, professores da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) fazem palestras em escolas e feiras de ciências levando um kit com as mandíbulas, barbatanas e nadadeiras laterais. Paulo Oliveira, professor do Departamento de Engenharia de Pesca e especialista em comportamento de tubarões, conta que essas ações de educação ambiental começaram em 1992 e têm o objetivo de sensibilizar as pessoas para a importância ecológica do maior predador dos oceanos. “O tubarão não é bem visto. Ele não é fofo, não é bonito e tem a boca cheia de dentes. É fácil falar mal do que não se conhece. Por isso a gente ensina o que é o tubarão, como come, como se reproduz, seu papel na cadeia alimentar e no equilíbrio das outras espécies”.

Para Marcelo Szpilman (foto), do Protuba, os projetos que protegem esta ou aquela espécie marinha são uma forma de “marketing” para mobilizar a população. Mas como a preservação de cada espécie depende da saúde dos ecossistemas marinhos, a intenção deve ser salvar o mar como um todo. “Não dá para salvar baleia sem salvar o mar. Mas dizer ‘Vamos salvar o mar’ é muito vago, não mobiliza. Da mesma forma, salvar o tubarão significa salvar todas as espécies que vivem interligadas a ele”, explica.

Como estão no topo da cadeia alimentar, os tubarões são fundamentais para o equilíbrio marinho. A lista de animais ameaçados de extinção da União Mundial para a Natureza (UICN), atualizada semana passada, mostra que mais de 30 espécies de tubarão correm riscos no Brasil, o que representa quase 40% das espécies presentes em nossa costa. No mundo, cerca de 100 milhões deles são capturados por ano, a maioria para a obtenção de nadadeiras (incluindo a barbatana), ingredientes de finas iguarias orientais que chegam a valer 50 dólares por quilo. Uma das práticas comuns da pesca predatória (finning) é arrancar as nadadeiras e devolver o animal vivo para o mar, onde ele afunda e agoniza até morrer.

Mas matar ou torturar tubarões não parece ser tão grave quanto machucar um pobre golfinho ou uma indefesa tartaruga. “Alguns animais não ganham a simpatia humana. O morcego, que também é tratado como vilão, sugador de sangue, é importantíssimo para o meio ambiente. O urubu é importantíssimo. Até a barata tem função no ambiente”, explica Szpilman, em defesa dos animais injustiçados. Só que nenhum deles causa medo semelhante ao dos tubarões.

Paulo Oliveira também atribui boa parte dessa histeria ao filme Tubarão. “Certamente influenciou. Spielberg foi bastante infeliz”. Ele faz várias ressalvas aos exageros retratados no clássico, que teve três continuações. “O que o filme mostra é fantasia, não é fato. A começar pelo tamanho daquele tubarão. Ele come barco, come helicóptero! Se a gente for analisar, ele consegue até pensar, premeditar o ataque. Isso é uma mentira gigantesca. A capacidade de aprendizagem do tubarão é pequena, eles agem por instinto”, explica.

Não cabe só a Steven Spielberg a acusação de ter criado um monstro. Seu filme foi inspirado em um romance homônimo (Jaws) escrito por Peter Benchley e publicado em 1974. Benchley foi também co-autor do roteiro que levou Tubarão para as telas.

O curioso é que este jornalista nova-iorquino agora trabalha pela preservação do tubarão branco, a mesma espécie retratada no filme, comum nos Estados Unidos e ameaçada de extinção. Além de produzir reportagens para a National Geographic, Benchley é membro do Conselho Nacional de Defesa do Meio Ambiente dos Estados Unidos, onde atua como porta-voz do Programa dos Oceanos. Em 2002, lançou um novo romance sobre tubarões, Shark Trouble. Mas, desta vez, o tom é outro. O terror da fera assassina foi substituído pelo fascínio sobre o animal. “Sabíamos tão pouco naquela época, e aprendemos tanto desde então, que eu não poderia escrever a mesma história hoje. Agora eu sei que o monstro mítico que criei era em grande parte uma ficção. Mas também sei que o verdadeiro animal é tão ou mais fascinante”, escreve Benchley no novo livro. E complementa: “O engano mais comum e sem fundamento que existe é pensar que o tubarão ataca pessoas, que ele é um devorador de homens. Nada poderia estar mais longe da verdade”.

Os tempos são outros, e aos poucos o trauma coletivo causado pelo filme vai passando, com o crescimento da consciência ambiental. Paulo Oliveira nota uma evolução no comportamento das crianças, nos 12 anos em que vem trabalhando com elas. “A princípio o medo era maior. Hoje muitas crianças já têm esclarecimento do papel dos tubarões no ecossistema marinho. Sabem que o maior culpado pelos ataques não é o tubarão mas o ser humano, que provocou uma degradação generalizada nos ambientes costeiros”.

Pelo mesmo motivo, o cientista relativiza a responsabilidade de Peter Benchley pelo estrago causado por seu primeiro romance. “Na época do livro e do filme não havia a visão globalizada que se tem hoje do meio ambiente. Crucificá-lo não seria o ideal. Em tempo ele se retratou”.

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

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