Reportagens

De sonho e pedra

A rara opala do Piauí está encravada na Serra dos Matões, aonde só se chega com sacrifício. Uma jóia da natureza, para a maioria do povo não passa de miragem.

Carolina Mourão ·
10 de dezembro de 2004 · 20 anos atrás

Nas veredas fechadas de sertão picado, o trajeto termina em espinhos. O Boi Morto, mina de opala, pedra preciosa dezenas de vezes mais rara que o diamante, multicolorida, está ali, talvez a 300 metros, mas por ali não se chega até ela. O caminho alternativo possível é pesado e só se consegue fazê-lo de moto ou jegue. Exige habilidade e intimidade de rali. A moto tombou uma vez na areia fina, branca e fofa, que aumenta o calor. Em seguida, a areia me jogou para cima de um dos galhos finos cheios de espinhos. Minha calça jeans rasgou e meus pés assaram. A claridade criava ilusões óticas, como a própria opala, quando, então, nas descidas do trajeto pudemos ver o horizonte da Serra dos Matões.

Ela fica no município de Pedro II, um braço de estrada que vai para lugar nenhum, na serra, a 41 km de Piripiri e a 195 quilômetros de Teresina. Lá se pode encontrar a beleza rara das opalas e 100% da população com esgoto inadequado, 91% com abastecimento de água impróprio e 62,5% dos chefes de família com menos de 1 ano de estudo, conta o IBGE. Na terra das preciosas opalas, o censo indicava que 86% das crianças viviam, em 1991, em domicílios com renda mensal equivalente a 83 dólares da época. Em reais de hoje, não chegam a 250.

A conquista da opala sempre envolveu forças contrárias, desde a própria formação geológica. Os perigos para se obtê-la são equivalentes à sedução que ela provoca. Houve um tempo, depois da febre da pedra na década de 70, que se dizia em Pedro II que a opala trazia má sorte. Todos de lá se livraram das suas. Talvez porque os garimpeiros “baburravam” – ganhavam dinheiro de garimpo, que depois perdiam no jogo ou deixavam nos bordéis. Muitos morriam a faca, tantas as brigas e as ambições. O próprio trajeto tratou de enxugar a demanda. Os acidentes no Boi Morto são lendários. Mas foi com uma enxada, na década de 40, que um lavrador encontrou, em plena superfície, a primeira pedra da serra. Mais de 60 anos depois, ela já não é tão fácil de encontrar. Mas continua a gerar polêmica, confusão e a seduzir com seu brilho.

As opalas existem em quatro ou cinco países, mas Austrália e Brasil se destacam no mercado. Na maioria dos lugares em que é encontrada, predomina a variedade semi-preciosa, que se assemelha a citrinos e quartzos coloridos. As de Pedro II são preciosas, das variedades branca e negra. As mais raras, pela cor e dureza, multicoloridas e belíssimas, seriam completamente diferentes das demais, não tivessem a mesma estrutura geomórfica. Próximas da perfeição, são consideradas as melhores do mundo, não só pela explosão de cores, que mudam de acordo com o jogo de olho, mas pela dureza, que se aproxima à do diamante – material mais resistente do planeta. Para quem trabalha com jóias, essa qualidade é fundamental. De outra maneira fissuram na extração ou no cunho das peças. As melhores são chamadas de opalas extra: a estrutura interna da pedra decompõe a luz do sol em um espectro do arco-íris. No mercado mundial, o quilate da opala bruta extra atinge preços superiores aos do diamante, podendo chegar a U$20.000 o quilate. Dá 241 vezes a renda mensal da maioria da população.

O jogo de cores da opala era um mistério até pouco tempo. Recentemente os geólogos descobriram que a raridade dessa variedade de Pedro II tem explicação científica. Para que ocorra a ilusão de cores é preciso que as esferas de sílica, que formam microscopicamente a estrutura da pedra, sejam rigorosamente iguais em volume, tamanho e forma – mas apenas com o diâmetro entre 222 e 329 milímetros – e estejam alinhadas como uma seqüência de moléculas perfeitas. Situação raríssima que é encontrada em Pedro II.

O município de Pedro II está localizado exatamente sobre o que os geólogos chamam de Lineamento Transbrasiliano – uma antiga falha geológica que corta a América do Sul em dois. A fissura alcança a base da crosta terrestre, mas não tem saída para cima. Na falha onde se formou o oceano Atlântico, o magma se chocou com a água, criando uma pressão tão grande entre forças opostas que, sem saída, o material viscoso endureceu há 100 milhões de anos, formando os veios da opala piauiense. As próprias pedras, jamais iguais umas às outras, parecem conter um mar de fogo.


O primeiro registro da pedra no mundo se deu na Hungria, 100 anos depois de Cristo. O nome deriva da palavra upala, um termo sânscrito que significa Pedra Preciosa, no sentido absoluto: a preciosidade que pode ser tocada. Os árabes acreditavam que as opalas caíam do céu nos flashes dos relâmpagos e adquiriam sua cor maravilhosa. Já os romanos acreditavam que a pedra era símbolo de esperança e pureza. Segundo a mitologia, quando terminou o universo, Deus raspou todas as cores de sua paleta e criou a opala.

O veio conhecido da opala piauiense está exaurido. A Mina do Boi Morto, desativada. É cada vez mais difícil encontrar boas opalas. Os velhos garimpeiros, ainda conseguem achar uma ou outra. Mas não é nada fácil achá-los, metidos pelos sertões. É preciso sair campeando o interior vários dias para encontrar um deles. E dar sorte de encontrar um que tenha uma pedra no bolso.

Na terra, só indo fundo, para além dos veios conhecidos e de onde conseguem chegar os garimpeiros tradicionais, por mais turrões. Pode ser que nunca mais encontrem outros veios. Mas os geólogos que conhecem bem os caprichos das opalas insistem: elas existem em toda aquela falha geológica, pois é o mesmo solo, rico em sílica. O perigo é que se encontrarem novas ocorrências, elas não serão garimpadas a enxada, nem por garimpeiros locais, daqueles que usavam a receita das pedras para “baburrar” e iam para a mina em lombo de mula. Seria garimpo técnico, profissional e voltado para o lucro em escala. Coitada da Serra dos Matões.
De natureza contraditória, a opala do Piauí é mesmo mentira e verdade. Sonho e pedra, o impossível possível.

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