Reportagens

Ressaca na Ilha Grande

Programa de Turismo Inclusivo do BNDES desagrada donos de pousada e a Prefeitura, mas prevê investimentos em saneamento e a ampliação das áreas de conservação.

Carlos André Ferreira ·
5 de janeiro de 2005 · 20 anos atrás

A comunidade da Ilha Grande, no litoral sul do Rio de Janeiro, completou dez anos de atividades turísticas – iniciadas com a implosão do Instituto Penal Cândido Mendes em 1994 – envolvida em uma discussão que agita os ânimos e gera apreensão entre moradores, empresários e poder público.

Tudo por conta do Programa de Promoção do Turismo Inclusivo na Ilha Grande, um estudo financiado pelo BNDES e executado pelo Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social da COPPE, conceituado centro de pesquisas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com o apoio da ONG Comitê de Defesa da Ilha Grande (CODIG). O Programa foi concebido para ser um instrumento de integração entre os diversos atores que hoje compõem a malha social da ilha — donos de pousadas, nativos, proprietários de casas de veraneio, pescadores e turistas sazonais — mas acabou gerando descontentamento em alguns segmentos.

Pousadeiros e a Prefeitura de Angra dos Reis temem o aumento indesejado no turismo e a conseqüente degradação ambiental da Ilha Grande. Isto porque entre as ações previstas no Programa está a criação de novas condições para receber visitantes de baixa renda. Para o presidente do CODIG, Alexandre Guilherme Silva, quem critica não conhece bem as propostas. “Acho que as reações contrárias estão carregadas de preconceito e desinformação”, comenta Alexandre.

O Programa prevê uma completa intervenção na infra-estrutura turística, orçada em R$ 20 milhões, mas os pontos que ganharam mais destaque na discussão foram os projetos “Cama e Café”, o Restaurante Comunitário e o Camping Livre. “Talvez não tenhamos acertado nos nomes, que causaram estranhamento em algumas pessoas, mas nossa intenção é gerar uma estrutura sustentável para que todos tenham o direito de conhecer a Ilha Grande”, diz o gerente do projeto, professor Luiz Henrique Abegão, da COPPE. “O Cama e Café tem como objetivo único regularizar e melhorar um serviço que já é uma realidade na ilha: o aluguel de quartos nas casas de moradores. O Restaurante Comunitário, que algumas pessoas confundiram com o projeto de restaurantes a 1 real, na verdade seria uma escola de aperfeiçoamento da culinária local e formação de mão-de-obra para a estrutura hoteleira”, explica Abegão.

Mas o professor lembra que estes projetos não refletem a totalidade do Programa. A primeira fase do Programa de Turismo Inclusivo na Ilha Grande consistiu em um amplo levantamento da situação do turismo e das demandas sócio-ambientais da ilha, que custou aos cofres do BNDES cerca de R$ 450 mil. O resultado é uma proposta de ação dividida em sete áreas: saneamento, ordenamento legal das unidades de conservação, infra-estrutura e logística para o turismo, estudo da capacidade de visitação e a inclusão dos nativos na atividade turística.

Alguns donos de pousadas ficaram alarmados com um possível aumento da concorrência no setor. Para a presidente da Associação de Meios de Hospedagem do Abraão, Ana Maria Cardoso, o “Cama e Café” não cabe na Vila do Abraão, ponto de chegada de grande parte do turismo da Ilha Grande, já que é ali que aportam as barcas vindas das cidades de Angra dos Reis e Mangaratiba. “Hoje temos cerca de 120 estabelecimentos de hospedagem no Abraão, 50% deles em situação irregular. Essa ilegalidade, em nosso entender, além de não contribuir para o desenvolvimento da região, gera uma concorrência desleal. Tenho seis empregados com carteira assinada. Como posso competir com aquele que aluga o quintal durante os feriados?”, questiona Ana Maria. Para ela, o que falta é a união dos governos federal, estadual e municipal pela preservação da ilha.

Os pesquisadores da UFRJ afirmam que o Programa se preocupou em não sobrecarregar a Vila do Abrão, direcionando o Cama e Café para outros povoados da região. “Onde já existe a hospedagem doméstica, o serviço será formalizado e adequado aos padrões turísticos, com investimentos públicos e capacitação. Nas outras localidades, que o Cama e Café sirva de oportunidade de inserção do nativo no setor de turismo”, defende Abegão.

Outros se dizem céticos em relação ao Programa, pois já se habituaram a um velho mal brasileiro: a multiplicação de iniciativas e seu precoce engavetamento. “Nos últimos anos, já tivemos três ou quatro propostas similares para a Ilha Grande. O que faltou foi um maior entendimento entre os poderes públicos”, diz o presidente do Instituto Estadual de Florestas (IEF), Maurício Lobo, responsável pelo Parque Estadual da Ilha Grande. Para ele, antes de qualquer iniciativa é necessário formalizar o Plano de Manejo da área. “Só podemos pensar em um projeto de turismo inclusivo para a Ilha Grande depois que criarmos o zoneamento definitivo. Sem saber quais áreas serão restritas, qualquer esforço pode representar um tiro n’água”, completa.

O ex-presidente do BNDES, Carlos Lessa, enquanto esteve à frente do Banco, idealizou e se envolveu diretamente na execução do Programa de Turismo Inclusivo. A escolha da Ilha Grande como local para uma primeira experiência foi estratégica por conta de sua localização, entre Rio e São Paulo. “O que buscamos neste programa é um modelo de inclusão social que beneficie as duas pontas, o turista e o nativo”, argumenta Lessa. “Queremos deixar a Ilha Grande aberta para todos os turistas, de todas as faixas sociais, não apenas para os ricos. O turista de baixa renda também merece receber um serviço de qualidade e pode ajudar na preservação do local”, diz.

A preocupação de Carlos Lessa tem fundamento. Altamente cobiçada por grupos internacionais, que vêm instalando empreendimentos imobiliários em toda Costa Verde, como é conhecido o trecho de litoral que vai do Rio de Janeiro a Santos, a região tem hoje diversas praias com acessos privatizados por resorts. Lessa teme que a Ilha Grande, protegida por décadas por conta do presídio, esteja agora à mercê destes grupos. “A Prefeitura de Angra dos Reis tem a fantasia de fazer do local um centro de turismo internacional de alto poder aquisitivo. Precisamos salvar a Ilha Grande da fúria loteadora das elites”, alerta.

A Prefeitura afirma não ter sido consultada sobre o Programa. “O prefeito sequer foi comunicado. Ficamos surpresos quando soubemos que havia um estudo em andamento”, diz o secretário de Desenvolvimento Econômico e Turismo, Manoel Francisco de Oliveira. “Estamos de acordo com as intervenções de infra-estrutura, mas projetos nós também temos. Por que não fomos ouvidos?”, questiona Oliveira. O secretário explica ainda que é contra o Cama e Café porque a iniciativa pode aumentar a visitação à ilha. “Se não conseguimos controlar o fluxo de turistas atualmente, como faremos se incentivarmos ainda mais?”. O secretário de turismo nega a possibilidade da construção de um resort na Ilha Grande. “A Prefeitura não tem nenhum pedido nesse sentido, e, se tivesse, teria que submetê-lo aos órgãos ambientais”.

Denúncias de especulação imobiliária na Ilha Grande são freqüentes e vêm de diversas fontes. Benedito da Costa, vice-presidente da Associação de Moradores de Araçatiba, povoado com cerca de 300 habitantes, reclama do fechamento, pelos proprietários, de trilhas tradicionais que antes ligavam os povoados. “A faixa costeira vem sendo tomada por mansões irregulares”, diz. O ordenamento territorial é um dos pontos elaborados pela COPPE. A ilha conta com quatro áreas de preservação ambiental, que em algumas regiões se sobrepõem. Além do Parque Estadual da Ilha Grande, existem a Reserva Biológica Estadual da Praia do Sul e a Área de Proteção Ambiental de Tamoios, que vai até o continente, ambos administrados pela Feema, e a Reserva Biológica da Ilha Grande, esta existente apenas no papel.

Consultor do Programa, o advogado e professor de direito ambiental da PUC-Rio Rodrigo Mascarenhas deparou-se com uma situação inusitada: encontrou mais proprietários do que ilha. “Se somarmos todos os títulos de propriedade, vamos chegar a umas três Ilhas Grandes”, comenta Mascarenhas, que acredita que alguns proprietários de títulos irregulares podem estar articulando as críticas às propostas de turismo inclusivo. “Alguém encontrou pequenas brechas conceituais no Programa e o distorceu na mídia”, diz. Apesar de tantas unidades de conservação, a Ilha Grande ainda tem zonas desprotegidas, como as praias de Parnaióca e Lopes Mendes. Uma das propostas do estudo conduzidas pelo advogado é a ampliação do Parque Estadual. “Se o Programa de Turismo Inclusivo pode ser acusado de alguma coisa, é de ser conservacionista”, conclui.

A saída do economista Carlos Lessa da presidência do BNDES preocupa os defensores do Programa. Questionada sobre a continuidade das ações, a assessoria de imprensa do Banco não soube informar se elas serão financiadas até a fase de execução, nesse caso em parceria com o Estado e o Município. No entender dos idealizadores do Programa, o turismo, hoje explorado quase que totalmente por pessoas que vieram de fora, deve também contribuir para o desenvolvimento da população local e trazer qualidade de vida aos nativos, sem colocar em risco os ecossistemas. A idéia é replicar o Programa de Turismo Inclusivo em outros sítios turísticos brasileiros. A preservação destes cenários naturais é o seu maior atrativo, o nosso maior patrimônio.

* Carlos André Ferreira é jornalista e fotógrafo profissional. Autor de “Avenida das Américas – uma viagem de bicicleta pela América Latina” (2004).

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