Maria Beatriz Mussnich Pedroso, 19 anos, embarcou como estagiária no O Eco diretamente do terceiro período da faculdade de Jornalismo da PUC. Ao conhecê-la tivemos certeza de que estava reservado para ela um assunto que há muito nos despertava atenção, mas que apesar de passar diante dos nossos olhos diariamente nunca figurou nas páginas do site. A situação do rio Rainha. Nascida, criada e ainda hoje estudando na Gávea, Beatriz recebeu a tarefa de escrever sobre as águas que cortam seu bairro, e por duas semanas dedicou-se à missão. Aqui está a sua primeira reportagem.
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Moro na Gávea, Rio de Janeiro, há oito anos e, como a maioria dos moradores, ignorava a existência do rio Rainha. Não se consegue ver todo o trajeto do rio porque ele aparece e desaparece várias vezes no curto percurso de seu leito. Canalizado em tubos subterrâneos ou no fundo de terrenos particulares, sua identidade está associada à história do bairro, que parece acompanhar suas formas sinuosas. O Rainha nasce na Ponta das Andorinhas, um dos picos da Serra da Carioca, no Maciço da Tijuca, corta a Gávea paralelo à Marques de São Vicente, a principal rua do bairro, e deságua numa verdadeira cloaca: o canal da avenida Visconde de Albuquerque, no Leblon.
Depois disso, fui procurar memórias dos “antigos” moradores da Gávea. Minha idéia era descobrir se alguém se lembrava do rio. Muito poucos. Antes de ser Rainha o rio era chamado de Branco. É o que mostram velhos mapas do Rio de Janeiro (1809, 1844 e 1868), que obtive junto a historiadora Cláudia Gaspar. “Pelo vale da Rua Marquês de São Vicente corre o rio Branco, formado por diversos pequenos mananciais, sem nome”, conta o livro História dos subúrbios da Gávea (sem data), de Cássio Costa, do Departamento de História e Documentação do Estado da Guanabara. O nome Rainha começa a aparecer nos mapas do século XX.
Entrevistei o primatologista Adelmar Coimbra Filho, 80 anos. Ele já foi administrador do Parque da Cidade de 1946 a 1957. É reconhecido também como um dos maiores especialistas na natureza do Rio de Janeiro. Em duas horas de conversa, tive uma aula sobre a fauna e flora da Mata Atlântica. Mas não descobri muito sobre o Rainha. Coimbra diz que a última vez que foi ao Parque teve vergonha ao olhar para o rio. “Virou sinônimo de vala para jogar lixo”, diz. Situação bem diferente da única memória que tem do Rainha. Quando andava pelo Parque, recorda, volta e meia parava para beber sua água.
Até a década de 20, o rio Rainha desaguava na Lagoa Rodrigo de Freitas. No governo do prefeito Carlos Sampaio (1920-22), quando foram feitas canalizações dos rios da Serra da Carioca, seu destino passou a ser o canal da avenida Visconde de Albuquerque (ver mapa).
Naquela época, morar perto do rio era um grande privilégio, pois não existia máquina de lavar nem de secar. As lavadeiras da Gávea eram bem conhecidas. Muitas eram empregadas das chácaras, mas também lavavam as roupas de casas da vizinhança que não tinham acesso ao rio. O sebo de boi era o sabão daqueles tempos. Obtido de graça com os açougueiros do bairro, era derretido e cortado em pedaços pequenos para durar.
O primeiro indício de poluição do rio Rainha apareceu na década de 30, quando uma imensa fábrica de feltro na Estrada da Gávea pegou fogo. O incêndio fez explodir os tanques de óleo e o combustível vazou para o rio. “Acho que foi o maior desastre ecológico do Rio de Janeiro da época”, lembra Stockler. Esse córrego não tardou a ser violentado mais uma vez. Em 1960, quando o Rio de Janeiro deixou de ser Distrito Federal, tudo mudou. Antes, a guarda municipal tinha a incumbência de vigiar o Parque da Cidade (foto) para que não houvesse construção de favelas. Vinha muita gente de fora do estado (nordeste, principalmente), tentava subir o morro, mas a guarda apreendia o material. Havia controle rigoroso contra as favelas, segundo Coimbra. Isso acabou. E uma favela cresceu próxima ao Parque da Cidade.
O Rainha chega à rua Marquês de São Vicente, principal via da Gávea, pelos fundos de uma simpática casa amarela, número 432. Antonio Caetano (foto), 60 anos, que se diz o antiquário mais antigo do Rio de Janeiro, mora há quatro anos nesta casa. Ela tem a mesma fachada desde que foi construída em 1881 por Armando Guimarães. O neto de Armando, também Armando, contou para Caetano que tomava banho no rio. “O fluxo de dez anos atrás era bem maior”, diz. O rio Rainha passa embaixo da varanda da sua casa. Uma vez na semana, Caetano pede ao seu caseiro para limpar o rio.“Tem garrafa de refrigerante, saco plástico, muito lixo”. Segundo ele, há alguns anos era pior. A padaria grudada com sua casa contribuía para o lixo que vem mais de cima da rua. Caetano reclamou várias vezes do cheiro e conseguiu que fosse colocada uma tela na janela da padaria para não jogarem mais nada. Depois de passar pela casa, o rio entra numa tubulação e atravessa para o outro lado da rua. Dali, desce a céu aberto e chega ao Colégio Teresiano, também na Marquês de São Vicente.
Estudei no Teresiano durante 14 anos e nunca soube o nome daquele rio. Tenho lembranças de descer para o parquinho para brincar e sentir um cheiro horrível. Quando visitei o colégio, o encontrei aparentemente limpo. O porteiro, Floriano, contou que há menos de 2 meses tinha pescado um cará. “Até comi e não me fez mal”, disse. Ele me informou que por conta de reclamações de alunos, a Feema esteve lá há uns 2 anos e descobriu o problema: a gordura do bar da própria escola estava indo parar no rio. Do Teresiano o Rainha segue em direção à PUC (foto).
O documentário “Rio Rainha: uma curta viagem” (junho 2002), de Fábio Villela Serfaty, mostra a quantidade de sujeira que o Rainha recebe no seu trajeto entre a nascente, no Maciço da Tijuca, e o ponto onde desemboca, no Leblon. Além do lixo, o vídeo flagra uma enorme quantidade de canalizações de esgoto de diversos locais que caem direto no rio. O bairro que o abriga e com o qual se identifica o Rainha é responsável pela transformação de suas águas límpidas em puro esgoto.
A resposta do teste das águas pela Feema levou uma semana e não serviu para muita coisa. Apenas para me informar que nos três pontos coletados o “número mais provável” de coliformes fecais é “maior ou igual a 1.600 em 100mL de água”. Isso quer dizer que nem no Parque da Cidade, nem na PUC e nem na rua Artur Araripe a água é potável. Nenhuma novidade. O que eu queria era ter obtido da Feema um dado preciso sobre o quanto o rio Rainha fica poluído em poucos quarteirões. Não consegui, mas descobri que pela Gávea ainda desce um rio de nome pomposo que diminui a cada dia e carrega a memória do bairro.
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Pode me explicar como tem um rio em frente ao planetario, perto da Marques e outro no fundo do planetario, perto do minhocao? Se voce andar pela vice Governador Rubem Berardo vai ver que são mesmo dois rios. Un deve ser o Branco e o outro da Rainha
Olá! Sou aluno da PUC e estou fazendo meu TCC sobre o Rio Rainha. Eu tentei achar o documentário mas não consegui.. Seria possível me ajudar? Obrigado!
Brinquei muito no Rio rainha, embaixo de uma enorme jaqueira que tinha na margem.
Preciso de um favor.
Necessito muito encontrar o antiquário António Caetano, de quem meu pai foi amigo por anos. Quero prestar uma homenagem aos dois pelas palmeiras imperiais que eles plantaram na pracinha em frente ao prédio que moramos.
Meu e-mail é [email protected] e meu telefone é 19 99849 8720
Obrigado e aguardo por sua ajuda
Muito bom…. Queria saber como esta hoje