
Crise hídrica no Amazonas
Quando décadas de abandono encontram uma emergência climática
Na maior bacia hidrográfica do planeta, milhões de pessoas convivem com torneiras vazias ou água de má qualidade. Esta reportagem do Vocativo em parceria com ((o))eco mostra como falhas persistentes no abastecimento urbano e rural, somadas ao aquecimento global, impõem a contradição da sede em meio a rios gigantes — um alerta para o futuro da Amazônia e de quem nela vive.
Reportagem Fred Santana | Vocativo
Edição Aldem Bourscheit | ((o))eco
Era uma segunda-feira de calor incomum para junho quando acompanhei o líder do projeto Água Limpa, Carlos Prado, numa visita à comunidade Barranco do Bosque, no interior do município de Lábrea, à cerca de 800 km ao sul da capital Manaus (AM). A tarefa dele e de seus auxiliares era levar uma mangueira para bombear água do Rio Purus até um aparelho de tratamento, para abastecer cerca de 50 famílias e uma escola.
O local já começava a ter problemas porque a tubulação atual não mais alcançava a água, deixando os moradores desabastecidos. Ao chegar no local, um novo impasse: os mais de 10 metros de mangueira a mais levados em emergência não alcançaram o leito do rio, o que para a metade do ano, quando a estiagem ainda não havia começado, foi uma desagradável surpresa.
Cenários desoladores como este mostram que o Amazonas está diante de um paradoxo. A unidade de federação dona de um patrimônio hídrico sem paralelo abriga milhões de pessoas dependentes de fontes inseguras, expostas a doenças e reféns de um sistema que não acompanha o crescimento urbano. Ou seja, onde sobra água, falta água.
Esta reportagem foi produzida por meio da Bolsa de Reportagem do edital Sala Colaborativa, promovido pela Ajor (Associação de Jornalismo Digital), em parceria com a InfoAmazonia e com apoio do Instituto Serrapilheira. O projeto tem como objetivo fortalecer o jornalismo socioambiental guiado por evidências científicas para informar decisões, gerar impacto real e fortalecer o diálogo público sobre desafios climáticos e ambientais.
Segundo estimativas de 2024 do IBGE, o estado possui 4,28 milhões de habitantes. Desse total, apenas 52,6% são atendidos por duas concessionárias de água: a Águas de Manaus, responsável por cerca de 2 milhões de pessoas na capital, e a Companhia de Saneamento do Amazonas (Cosama), que cobre aproximadamente 250 mil moradores em 15 municípios do interior. Isso significa que mais de 2 milhões de amazonenses, o equivalente a 47,4% da população do estado, permanecem sem cobertura permanente de nenhuma das duas empresas, dependendo de soluções próprias informais ou serviços municipais de captação de água.
Um levantamento sobre indicadores de saneamento básico nos municípios do Amazonas mostra que, embora a maioria declare ter cobertura urbana de abastecimento de água elevada, os dados revelam inconsistências e lacunas que colocam em dúvida a real qualidade do serviço.
O estudo “Indicadores de saneamento básico na Amazônia ocidental: realidade dos municípios do Amazonas”, publicado na Revista Contribuciones a las Ciências Sociales, analisou informações do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Sinisa) até 2022 e concluiu que a infraestrutura hídrica no estado ainda está distante de garantir acesso seguro para toda a população.
Entre os 48 municípios que declararam informações sobre o índice de cobertura urbana de água, a média encontrada foi de 87,96% de atendimento, e 25 deles informaram ter 100% de cobertura. Apesar dos números positivos, regiões como Coari, Manicoré, Parintins e Tabatinga apresentaram valores inferiores a 90% em alguns casos, mostrando que há grandes disparidades dentro do próprio estado.
Outro dado relevante é o consumo médio per capita de água, declarado por 49 municípios. A média foi de 142,84 litros por habitante por dia, mas parte dos municípios registrou consumo muito abaixo de 100 litros diários, enquanto outros ficaram bem acima da média. Essa variação sugere possíveis falhas de medição ou de padronização nos registros, o que compromete a avaliação da real qualidade e disponibilidade do recurso.
O Vocativo colheu depoimentos em três cidades do interior (Lábrea, Tefé e Alvarães), além da capital Manaus, para revelar o que está por trás da crise hídrica. O resultado é o registro de esforços desesperados para conseguir ter acesso à água potável diante da ausência de políticas públicas efetivas e a ameaça crescente da crise climática.

Décadas de abandono
A trajetória moderna do saneamento no Amazonas começa na capital Manaus. A instalação do Reservatório do Mocó, inaugurado em 1899 como resposta ao crescimento urbano impulsionado pelo ciclo da borracha, marcou o primeiro grande passo no abastecimento regular de água canalizada na região. No entanto, mesmo com a prosperidade do período econômico, a cobertura permaneceu restrita à capital, por décadas.
Dados do Censo de 2010 apontam que 60% da população rural retirava água de rios, igarapés, lagos ou açudes, enquanto somente 10% contavam com rede geral de abastecimento. Para se ter ideia, a Cosama só foi criada setenta anos depois, em 1969, para operacionalizar os serviços de água em Manaus e municípios vizinhos. Na capital, o serviço foi privatizado no ano 2000, ficando o interior a cargo do poder público.
Este ano, o abastecimento de água no Amazonas ainda reflete décadas de desigualdade e desafios estruturais. Apesar de avanços tímidos – como o aumento de cobertura de água canalizada de 64,5% em 2010 para 66,0% em 2022 – o estado permanece na 23ª posição nacional nesse indicador. Manaus pontua melhor, mas com estagnação no alcance da rede geral (76,2%) e uma tarifa 18,6% mais cara que a média nacional.
No interior, a situação é ainda mais crítica: em quase metade dos municípios, a água canalizada cobre menos de 70% dos domicílios; em alguns, nem 50% têm acesso a essa infraestrutura mínima. Além disso, embora 93,4% dos domicílios estaduais tenham água canalizada, esse percentual esconde disparidades consideráveis entre as zonas urbanas (quase 100%) e rurais (apenas 54,7%).

Água pouca e de má qualidade
A qualidade da água para consumo humano no Amazonas foi objeto de uma ampla investigação científica publicada em 2024 na revista Ciência & Saúde Coletiva, periódico da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). O artigo “Qualidade e acesso à água para consumo humano: um olhar sobre o estado do Amazonas, Brasil” analisou 185.528 amostras de água coletadas entre 2016 e 2020, em 11 microrregiões do estado, e revelou falhas graves nos parâmetros químicos, físicos e microbiológicos. Os autores defendem que essas falhas colocam em risco não apenas a saúde pública, mas também a segurança alimentar de milhões de pessoas.
Segundo o levantamento, 93,20% das amostras vieram de áreas urbanas. Um dos resultados mais preocupantes é que a maior parte das amostras apresentou pH abaixo do recomendado pela legislação brasileira (entre 6,0 e 9,5). Essa característica torna a água mais ácida, com riscos de corrosão em tubulações, alteração no sabor, presença de metais pesados e maior vulnerabilidade à contaminação.
Na análise microbiológica, a situação foi ainda mais crítica nas áreas rurais e comunidades tradicionais, onde houve maior presença de coliformes totais e Escherichia coli. Esses indicadores apontam para contaminação fecal e risco de transmissão de doenças como diarreia, hepatite A, febre tifoide e parasitoses. A precariedade do armazenamento da água, muitas vezes em recipientes abertos e sem condições adequadas de higiene, foi apontada como um dos fatores que contribuem para essa ameaça.

A universalidade da precariedade em Manaus
A escassez de água para a população na maior bacia de água doce do planeta sempre levantou questionamentos e estudos. O principal deles talvez seja a tese “A luta pela água na Amazônia: Desafios e contradições do acesso à água em Manaus”, do padre jesuíta Sandoval Alves da Rocha, coordenador do Fórum das Águas do Amazonas e doutor em Ciências Sociais pela PUC-Rio. Integrado em 2012 ao Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares) da Companhia de Jesus, ele conversou com o Vocativo em sua casa, na zona Sul de Manaus.
“Quando cheguei havia uma série de protestos em relação à falta de água e de esgotamento sanitário. E isso me chamou a atenção, porque era a primeira vez que eu pisava na cidade de Manaus e vim com aquela ideia de como é que a gente explica a existência de escassez de água em uma cidade cercada com rios de água doce? Essa pergunta me levou a estudar de forma mais aprofundada essa crise da água aqui”, conta Sandoval.
Diante da precariedade do saneamento no estado, surgiu uma solução que prometia ser miraculosa: a privatização. No dia 4 de julho de 2000, durante o governo do então governador Amazonino Mendes, o sistema de abastecimento de água e esgotamento sanitário de Manaus foi privatizado, com a venda da subsidiária Manaus Saneamento S.A., ligada à Cosama.
Sandoval afirma que houve todo um cenário de preparação para a venda. “Havia uma forte intenção do então governador Amazonino Mendes de realizar a privatização. Houve uma espécie de desinvestimento do Estado para que, de fato, chegasse a um nível de insustentabilidade, até mesmo social. Aí vieram muitas reclamações. Então apareceram com a grande solução: vamos privatizar”, afirma.
Um detalhe curioso a respeito do negócio: a subsidiária foi avaliada em cerca de R$ 486 milhões, mas foi adquirida por apenas R$ 193 milhões pelo grupo francês Lyonnaise des Eaux, parte do conglomerado Suez. Essa grande desvalorização – quase 60% abaixo do valor contábil – gerou críticas e abriu espaço para questionamentos e investigações.
Após assumir a concessão, o grupo francês operou sob o nome Águas do Amazonas, com previsão contratual de investimentos significativos no sistema de saneamento para atender à expansão da cidade. Contudo, as metas não foram cumpridas. A população continuou sofrendo com precariedade no saneamento, enquanto investimentos públicos tiveram de ser feitos para garantir serviços básicos. Um exemplo foi a obra da estação de tratamento Ponta da Lajes, executada com R$ 365 milhões do estado devido à inação da concessionária.
Vale explicar que a empresa só possui o nome “Amazonas” por força de marketing. Isso porque ao privatizar a água, o interior do estado foi excluído, gerando uma desigualdade que persiste até hoje. “A Cosama, que deveria atender o estado todo, foi desvinculada da cidade de Manaus, mais promissora em termos de produção de riqueza”, explica Sandoval.
Para impulsionar a privatização, os políticos favoráveis diziam que o sistema de esgotamento sanitário, que não avançava, seria o maior beneficiado. “Nem era tanto o sistema de esgoto de água, porque a água, diziam, tinha até demais. Quando a empresa veio e assumiu, havia essa perspectiva de focar principalmente no esgotamento sanitário. Resultado: foi o serviço que menos avançou”, critica o padre.

Em 2007, houve uma repactuação do contrato sem que os problemas fossem resolvidos. Posteriormente, em 2012, o grupo Águas do Amazonas foi substituído pela empresa Manaus Ambiental, controlada pelos grupos Águas do Brasil e Solví, esse presente no Brasil, Peru e Argentina.
Sob a nova gestão, a concessão foi prorrogada até 2042, após negociação durante a gestão do então prefeito Amazonino Mendes, em 2012. Durante os anos seguintes, Manaus continuou figurando entre as cidades brasileiras com pior desempenho em saneamento. Em 2023, por exemplo, apenas cerca de 12,5% do esgoto gerado era tratado, com o restante sendo despejado em rios e igarapés. O sistema também continuou registrando inúmeras reclamações, principalmente sobre falta de água e custos elevados.
Em 2018, o conglomerado Aegea Saneamento e Participações S.A. adquiriu as controladoras da Manaus Ambiental e da Rio Negro Ambiental, por um valor estimado em R$ 800 milhões, consolidando-se como uma das maiores empresas privadas de saneamento do país. Finalmente, em 2025, a Manaus Ambiental foi vendida à Aegea, que assumiu integralmente a operação com o nome Águas de Manaus. O valor dessa negociação não foi divulgado.
Investigações pela má qualidade do serviço
Ao longo de todo esse período, a privatização da água, no entanto, nunca se converteu em eficiência. A péssima qualidade do fornecimento motivou três pedidos de comissões parlamentares de inquérito (CPIs) nos últimos 25 anos de concessão. Duas foram aceitas e correram na Câmara Municipal de Manaus (CMM), em 2005 e 2023.
Mesmo com as investigações e muita reclamação, as mudanças no serviço foram apenas de ordem financeira e burocrática. Para o padre Sandoval Rocha, a relação promíscua entre os empresários e a política compromete qualquer medida efetiva.
“Como o poder do capital é muito forte, a tendência é cooptar políticos. Eu já vi vereadores dizerem que recebem propostas da empresa lá na Câmara dos Vereadores para ficar calado diante da situação, para não andar com certos projetos”, avalia.

Foi durante a segunda CPI, em 2012, que surgiu o Fórum das Águas, coletivo formado pela sociedade civil e moradores, para denunciar e refletir a respeito da questão da água. E nas reuniões e entrevistas coletivas do Fórum, os relatos são de péssimos serviços e cobranças abusivas. “As queixas são diversas: não ter água à noite, ela sair muito suja e até contas com valores exorbitantes. Um abuso de poder econômico muito grande, com tarifas muito abusivas. Eu costumo dizer que foi a universalização da precariedade”, lamenta Sandoval.
Numa entrevista coletiva do Fórum veio a público a história de Mary Nellys, integrante do Sares. Ela relatou o seu caso, que começou logo após a morte da mãe, titular da conta de energia da casa, em outubro do ano passado. Quando o irmão dela veio para Manaus, em dezembro, e tentou reativar os serviços em seu próprio nome, a conta de água não foi transferida porque a empresa exigia o pagamento dos débitos anteriores, somando supostos R$ 7.278,50.
“Não tem como reativar a água se não pagar esse valor. E aí o que a gente pode fazer? Vamos negociar, né? Foi o que a gente fez. Só que quando foi pra negociar, tem que dar uma entrada maior pra abater, pelo menos, a metade desses sete mil e duzentos. Coisa que a gente não tem”, explicou, aflita, Mary.
Segundo uma pesquisa de 2024 da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), a Águas de Manaus é a terceira empresa do Amazonas com maior número de reclamações junto ao Programa de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon).

Resistência da Colônia Antônio Aleixo
Há, no entanto, um lugar em Manaus que simplesmente não aceita a privatização do serviço de água. Trata-se do bairro Colônia Antônio Aleixo, na zona leste de Manaus. O local tem sua origem na década de 1930, quando foram construídos pavilhões de madeira para abrigar nordestinos que chegaram ao Amazonas como “soldados da borracha”. Com o fim dessa fase, os pavilhões ficaram abandonados, até serem reutilizados nos anos 1940 para um novo objetivo: a instalação de um leprosário.
Em 1942, o médico mineiro Antônio Aleixo, convidado pelo colega amazonense Menandro Tapajós, passou a coordenar o espaço que acolhia portadores de hanseníase. O local passou a ser chamado Colônia Antônio Aleixo, em homenagem ao médico. Durante décadas, a área funcionou como espaço de isolamento de pessoas com a doença, o que marcou fortemente sua história.
Com os avanços no tratamento da hanseníase e a chegada de familiares dos pacientes, a colônia foi se transformando em comunidade. A desativação do leprosário ocorreu nos anos 1970, mas a consolidação como bairro urbano veio de forma gradual, impulsionada pela abertura da antiga Estrada do Aleixo, hoje Avenida André Araújo, que ligou a região ao centro de Manaus.
A relação do bairro com a água é um aspecto central de sua identidade. Às margens do Rio Negro e cercado por igarapés e lagoas, o território foi marcado tanto pelo isolamento natural quanto pelas possibilidades de transporte e sobrevivência que a água proporcionava. Foi nesse contexto que surgiu um movimento de resistência contra o processo de privatização, iniciado pelo padre Ludovico Crimella, que foi o responsável pela perfuração dos primeiros poços artesianos do bairro, no início dos anos 1980.
“A experiência não está mais sendo gerida pela igreja, porque o bairro cresceu tanto que o padre entregou as próprias comunidades, então se formou várias associações encarregadas de gerir setores do bairro. São sete associações. A água é gerida pelos próprios moradores, que atuam como coordenadores das associações. Cheguei a ter contato com moradores antigos que foram afetados pela hanseníase. Eles faziam a memória afetiva mesmo daquela época em que eles se mobilizavam para construir, com as próprias mãos, todo o sistema de abastecimento de água”, conta Sandoval.
Para o padre jesuíta, há uma identificação da construção do bairro com a própria vida das pessoas. Além, é claro, da péssima fama do serviço da Águas de Manaus. “Os moradores não querem que a empresa entre, porque eles olham para cá e vem reclamação, vêm tarifas abusivas, vêm adutoras quebrando e vêm aqueles trabalhos precários das empresas, que a empresa vai lá, quebra a calçada do pessoal e vai embora e deixa o buraco. Não tem a menor responsabilidade. Quando se fala em entrar em empresa, eles começam a fazer agitação, mobilizações para evitar”, diz.
Outra prática na Colônia Antônio Aleixo é a cooperação entre os moradores. “É uma gestão que olha a realidade que está ali pautando aquilo que as pessoas precisam, inclusive na hora do pagamento. Tem alguns casos lá em que há uma negociação entre o gestor e a pessoa que não consegue pagar. Nesses casos, você pode fazer algum tipo de serviço comunitário para o bairro. Vai capinar, vai fazer alguma coisa para ver se consegue pagar isso. Há um tipo de negociação entre eles ali que com a empresa não vai existir. Com a empresa não vai existir isso. Ou você paga ou é cortado”, pondera o padre Sandoval.

A cruel face da subcidadania
Na tese “A luta pela água na Amazônia”, Sandoval Alves Rocha utiliza o conceito de subcidadania para explicar como a população de Manaus, especialmente nas periferias, é tratada pelo poder público e pelas concessionárias de água. O termo, inspirado no sociólogo e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Jessé Souza, descreve a condição de cidadãos que, embora tenham direitos formalmente reconhecidos, vivem sistematicamente privados deles, em especial do acesso à água potável.
“Por algum motivo a população se acomoda e se acha mesmo inferior, como se não merecesse elevar um pouco mais a melhoria de vida, como se não merecesse um estado de cidadania plena. Não é à toa que os nossos vereadores são terríveis. Eles não representam, de fato, os interesses da comunidade”, lamenta Sandoval.
Em Manaus, a desigualdade no abastecimento produz uma divisão entre aqueles que conseguem pagar e recebem o serviço regularmente e aqueles que permanecem excluídos, tratados como “clientes de segunda categoria”. Segundo o padre jesuíta, essa lógica transforma o direito humano à água em privilégio de poucos e reforça a naturalização da precariedade como destino das camadas populares. E isso fica ainda mais evidente em municípios do interior do Amazonas visitados pela reportagem.
Lábrea
Em Lábrea, a deficiência na gestão e a ausência de tratamento de qualidade resultam em poluição e desperdício de água, uma situação agravada pela escassez em determinados períodos anuais. “Tem uma rede aqui por baixo do trapiche, mas não é uma água muito saudável. Aqui em casa, quando a gente pode, compra água mineral, quando não pode a gente toma assim mesmo. Põe um copo de hipoclorito e toma”, lamenta a vendedora autônoma Maria Zanira, moradora do trapiche Beira-Mar, na zona norte da cidade.
Morador há 20 anos do trapiche do Sheik, no centro de Lábrea, o carpinteiro Laércio Silva relata uma solução comum em diversas localidades do Amazonas: a utilização de poços artesianos, diante da ausência de distribuição coletiva promovida pelo estado. “Usamos o poço de uma vizinha, mas agora a água tá com um problema porque não tá tão forte. Então a gente tá usando só água que vem da Cosama, que puxa água do Largo Preto [zona Oeste de Lábrea]”, afirma. A qualidade da água fornecida pela companhia estadual, no entanto, não agrada. “A cor dela também é diferente. Vamos procurar outro poço enquanto o da vizinha tá com problema”, explica Silva.
Dono de uma mercearia e também morador do trapiche do Sheik, há 42 anos, Manoel Ramalho Serreira conta que a água utilizada pelos moradores passou a se misturar com o esgoto após uma obra da Cosama, o que tem causado uma série de doenças nos comunitários. “A nossa água é de poço e deságua junto com o esgoto da Cosama o Igarapé Água Preta. A Cosama emendou as tubulações e a água ficou péssima e está adoecendo gente”, alertou.
Manoel afirma que sintomas como diarréia, dor de cabeça e febre são comuns nos moradores quando consomem água que não vem de poço artesiano. “Mostramos para a prefeitura o problema nesse córrego, mas eles não limpam, não cuidam. Aí sobra pra gente aqui que vive na área”, lembra. Segundo o comerciante, a única ação do poder público para melhorar a qualidade da água é a distribuição de hipoclorito de sódio entre os moradores.
Enquanto conversava com a reportagem, Manoel fez questão de mostrar um pouco da água disponível no local. De acordo com o morador, a qualidade da água às vezes piora. Nesses dias, ela só serve para limpeza do local. “Nós deixamos de canto, só pra jogar no chão mesmo”, explicou.
O improviso é outra constante na busca por água entre os moradores de Lábrea. Maria Calafente da Silva e Aldemir Hilário da Silva são aposentados e moram no bairro Vila Falcão, na zona norte da cidade, e chegaram a usar motores para bombear água para suas casas. Hoje, como o restante da cidade, recorrem a poços e convivem constantemente com doenças de veiculação hídrica.
“Foi pela Prefeitura que conseguiram esses dois poços aí para nós aqui nessa rua. Então a gente não usa essa água pra beber. Um tempo desses eu usei e passei uma semana no hospital internado, doente. Pensei que ia morrer”, lembrou Aldemir.

Tefé
A cidade de Tefé, município às margens do Rio Solimões, distante 500 km de Manaus, também registra um histórico de baixa cobertura de abastecimento. Em 1954, apenas 15% da população era atendida por sistemas públicos e a perfuração de poços nos anos 1980 não foi suficiente. A seca de 2022 deixou cerca de 3 mil pessoas sem água, e no ano passado o Lago Tefé atingiu níveis críticos, registrados até por satélite.
“A água vem todo tempo suja. A gente aproveita bem pouco e ainda desperdiça muito porque a gente abre a torneira, vê que ela está amarela e espera ela limpar”, afirma o marceneiro Aldenor Neves Ramos, morador do bairro Ponte Boa, zona norte da cidade.
“Essa água só serve mesmo pra tomar banho e lavar alguns tipos de roupa. Roupa branca não lava direito, porque ela fica amarela. Nossos tanques são limpos toda semana porque fica tudo amarelo”, lamenta Aldenor, que também reclama de sintomas como diarreia quando consome água fornecida pelo Serviço de Água e Esgoto Autônomo (Seae) de Tefé, que só atende a região central da cidade. O único local nos arredores que disponibiliza água para beber é a Unidade Básica de Saúde (UBS) Lourival Pires.
Sem a mesma opção, a família da também comerciante Marinele Dias, moradora às margens do Lago Tefé, zona sul da cidade, precisa recorrer a filtros de carvão para conseguir beber água. Dono de um supermercado, Manoel Haroldo da Silva reclama não apenas da qualidade da água, quanto do preço cobrado pela SEAE. “A água é péssima. A água chega aqui amarela de ferrugem. Eles cobram R$ 30 por família e entregam um serviço péssimo”, afirma.

Localizada a cerca de 17 km da área urbana de Tefé, a Comunidade da Agrovila surgiu no final da década de 1990 a partir da organização de famílias em busca de terra, moradia e melhores condições de vida. Entre 1997 e 2007, os moradores conquistaram espaço por meio de lutas coletivas que resultaram na criação de uma escola e maior aproximação com os serviços urbanos do município.
A Agrovila sempre enfrentou graves problemas de infraestrutura, especialmente no acesso por estrada, fundamental tanto para o transporte escolar quanto para o escoamento da produção agrícola, em especial a farinha. Moradores denunciam que, por longos períodos, a via ficou intrafegável, obrigando famílias a percorrer quilômetros a pé. O isolamento da comunidade contribuiu também para sua dificuldade no acesso à água potável.
O aposentado Rogério do Nascimento narrou as dificuldades dos moradores para lidar com a escassez e a malária ao mesmo tempo. “O órgão de saúde nos aconselha a botar uma quantidade de cloro dentro do tanque porque aqui, quando é época, dá muita malária. A água do igarapé, quando a água está secando (época da estiagem), ela vai descendo acumulando larvas do mosquito. Quando as crianças vão tomar banho nos igarapés, o que é que acontece? Transmite a malária. Aí vai passando de um para o outro”, lembra.
“Aqui não tem esgoto não. O esgoto desce direto pro igarapé”, alertou Rogério. Segundo ele, há ainda outro problema: a secretaria de saúde do município instalou três armadilhas para mosquitos de malária nos arredores, no curso da água. O morador relatou ainda que chegaram a registar mais de 400 casos de malária na comunidade, a maioria crianças.

A dama da água
Com 1,55 m de altura, Maria Célia Lopes de Moraes é agricultora, mãe de três filhos e é, sozinha, responsável pela manutenção das duas bombas de abastecimento de água de 150 famílias do Distrito 19 da comunidade da Agrovila. Toda manhã é a mesma rotina: Célia acorda às 4h, desce a rua Januário e liga a primeira bomba às 5h30, que puxa e armazena água do igarapé do Caniço, atrás do conjunto de casas, até as 8h, quando a segunda bomba é ligada e faz o mesmo procedimento, até as 11h, garantindo água aos moradores.

Célia explicou à reportagem que, anos atrás, o processo era feito por ela e por uma prima, que agora está em licença maternidade. Perguntada o que aconteceria caso ela fique doente e algum dos aparelhos ou tubulações das casas dê defeito, a agricultora respondeu: “Vou me arrastando. Eu sou o tipo de pessoa que gosta de fazer favor pra todo mundo. Mas eu não gosto de pedir favor pra ninguém”, disse, sorrindo timidamente.
Hoje, pelo menos, Célia passou a ser paga pelo serviço pelo Serviço Autônomo de Abastecimento de Água e Esgoto (Saae) de Tefé. “Agora todo mundo aqui usa praticamente água de graça. Ninguém paga água”, afirma, orgulhosa.
A rotina de trabalho, cuidar dos filhos e ainda ser responsável por abastecer uma comunidade inteira, porém, cobra seu preço. Isso sem falar que, mesmo com todo esse esforço, ainda há críticas. “Não tinha folga. Até pra sair era difícil. A gente quer ir na cidade, ir ao trabalho da gente, mas não tinha como. Tinha essa preocupação, de ir lá no trabalho e voltar até a hora pra ligar a água. Aí a gente daí é criticado, né? Tem gente que a gente não entende”, lamentou Célia. “Já aconteceu de eu chegar do trabalho e alguém dizer: Ai, Célia, não tem água na minha casa, tem como tu ligar pra mim? Aí eu faço esse favorzinho, né?”, conta.
Segundo a agricultora, apesar da rotina estressante, a situação melhorou. “Antigamente era mais difícil. Quando a bomba queimava, a gente passava semanas sem água. Ainda bem que tem um igarapé, né? A gente ia pro igarapé e tomava banho lá mesmo. Agora não, tem as bombas. Se for acontecer um problema, hoje de manhã, de tarde a gente já tá resolvendo. Se o cano quebrar, eu mesma vou lá e emendo”, afirma Célia.
Diante da escassez e da má qualidade da água, surgem esforços desesperados, como o projeto Água Limpa, em Lábrea. A iniciativa consiste na instalação de bombas de filtragem que puxam água do Rio Purus, tornando-a potável, levando para pontos de distribuição na cidade e em comunidades do interior. A iniciativa surgiu em 2024, durante o segundo ano da maior estiagem já registrada no Amazonas, quando muitas pessoas, de muitos lugares, tanto da zona urbana quanto da zona rural, começaram a reclamar da qualidade da água.


“O poço tem a água da SAAE, que é muito poluída, barrenta. Então é totalmente imprópria para uso. E o pessoal que tem poço, nessa subida e descida do rio, a água muda e fica muito barrenta para muitos lugares. E tem lugares em que a água fica suja, barrenta e com gosto de ferrugem, tanto no inverno quanto no verão. Então eu montei um projeto chamado Água Limpa, que seria para poder ajudar essas comunidades de alguma maneira”, explica Carlos Prado, idealizador do projeto.
“A gente sabe que, na verdade, deveria ter um tratamento de água através da Ceam, que é a fornecedora de água, mas isso daí seria mais difícil. Então eu fiz esse projeto para ver se a gente conseguiria parcerias para dar um jeito em certas comunidades”, explica.

Alvarães
Separada de Tefé por 15 minutos de barco do Lago Tefé, Alvarães, distante 530 km de Manaus, enfrentou um problema inesperado com a estiagem nos anos de 2023 e 2024 que impactou a distribuição de água no local: energia. Abastecida por poços de 66 metros de profundidade, Alvarães viu a estiagem diminuir a quantidade de água nesses poços, o que obrigou o poder público local a baixar ainda mais as bombas por meio de tubulações.
A cidade só possui 30% de cobertura feita pela Cosama, ficando o restante com a prefeitura. Segundo a empresa, a distribuição não é feita diretamente para as casas e o processo demora, em média, 3 horas. Primeiro, o reservatório puxa a água dessas bombas e leva até caixas d’água instaladas em pontos estratégicos da cidade. Depois que essas caixas enchem, a água é liberada junto com o tratamento. Para tratar a água, a Cosama usa apenas hipoclorito de cálcio (Ca(OCl)₂).
Outro fator que prejudicava o abastecimento da população era o desperdício. Com a falta de manutenção das caixas e mais de quarenta anos de uso, o antigo reservatório já está muito deteriorado, fazendo muita água não chegar nas casas por conta de vazamentos. “A gente estava enchendo o reservatório em 4 horas e 20 minutos. Com a manutenção [e a resolução dos vazamentos] passou a encher em 2 horas e 40 minutos”, explica Janilce do Nascimento Ribeiro, agente Cosama. “O tempo para encher o reservatório aumentava de 2 horas e meia para 4 horas, com isso diminuía o tempo de distribuição”, afirma a funcionária.
A reportagem visitou também o laboratório de verificação de amostras de água em Alvarães. Apesar de bem equipado, a testagem não é constante. “Não dá para fazer diariamente, devido à logística, mas, assim que solicitado, a gente faz”, descreve Janilce.
Na estiagem, as bombas que auxiliam o abastecimento de água queimam muito. Isso acontece porque a água nos poços baixa a tal ponto que a boca das bombas chegam a bater no solo, super aquecendo e queimando. As constantes quedas de energia – às vezes por superaquecimento da rede – também agravam o problema. “Com a estiagem, a energia também fica precária. Então a gente tem que ter bomba reserva para que quando uma queime, a gente já substitua”, explica a funcionária.

Além disso, como o abastecimento das caixas que redistribuem água nos bairros acontece ao longo de duas horas, caso falte energia, todo o processo fica paralisado. Como o quadro elétrico da prefeitura tem mais problemas e cobre 70% da cidade, é comum faltar água em Alvarães. “Tem bomba que eles [da prefeitura] colocam e dura só uma semana”, afirma Janilce.

Todos esses percalços acontecem em períodos comuns. Durante a estiagem de 2023 e 2024, a situação, porém, chegou em níveis críticos. Isso porque o fenômeno secou o rio Solimões e o Lago Tefé de tal maneira que impediu a chegada de combustíveis para a região. Vale lembrar que 70% da energia elétrica do Amazonas – e Alvarães é uma dessas áreas – é proveniente de termoelétricas.
Isso atingiu, de uma vez, tanto o nível da água quanto o fornecimento de energia elétrica, que influencia por sua vez o abastecimento de água. “Tanto Tefé quanto Alvarães tiveram que fazer um racionamento. Se não tem energia, não tem como puxar a água. Em Tefé foi pior. Aqui os barcos não deixaram de trazer combustível. Em Tefé, sim. Em alguns momentos tiveram que trazer combustível de canoa. Foi muito difícil. A gente sofre muito nessa época”, lembra Manoel da Rocha Araújo, auxiliar-administrativo da Cosama, em Alvarães.
Com as dificuldades enfrentadas nos dois últimos anos de seca severa, os funcionários da concessionária temem que novos fenômenos do tipo deixem a situação ainda pior no futuro. “Na época da estiagem as bombas ficam bem no mínimo, 64 metros, lá embaixo. Se isso piorar, a gente vai ter que racionar pra o rio recuperar”, alerta Janilce.
Tabatinga
Em Tabatinga, o abastecimento de água começou com sistemas improvisados pelo Exército, em meados dos anos 1960, baseados em captação em igarapé e filtros lentos, sem desinfecção. Apenas a partir da década de 1970 a responsabilidade foi transferida à Cosama, mas o crescimento urbano desordenado manteve índices de cobertura baixos e perdas significativas na rede.
Um artigo sobre saúde na tríplice fronteira (Brasil–Colômbia–Peru), de pesquisadores do Instituto e da Fundação Oswaldo Cruz, registrou que só 40,8% dos domicílios de Tabatinga tinham acesso à rede de água e apenas 24% dispunham de água encanada em casa, no início da década passada
Os mais atingidos acabam sendo os indígenas. “Nós moramos aqui e precisamos de água potável. Começou desde o mês de abril. A água não é muito boa. Quando vem é suja porque tem um lixão perto de Tabatinga que contamina a água do Rio Solimões. Todas as famílias indígenas aqui da nossa aldeia já foram contaminadas com malária, febre e outro tipo de doença. É um problema de saúde por causa da água suja”, lamenta Jeck Araújo Filho, da aldeia Umariaçu-1, da etnia Tikuna do Alto Solimões.
Uma crise climática no meio do caminho
A crise hídrica no Amazonas está sendo agravada por uma outra crise: a climática global. Eventos extremos como as secas de 2023 e 2024 estão afetando a disponibilidade de água potável na Amazônia de diversas formas. “Independentemente de qual seja a fonte de água da população, ela está sendo afetada pelas secas. Seja água subterrânea, seja água do rio ou água de chuva”, explica Maria Cecília Rosinski Gomes, doutora em Meio Ambiente, Saneamento e Recursos Hídricos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Cecília lembra o impacto social na Amazônia com a estiagem, em casos mostrados nesta reportagem, como em Lábrea e Alvarães. “No caso de água de rio, por exemplo, em muitos casos a seca intensa faz com que a água fique muito distante do ponto de captação. Nesses casos, é necessário o aumento da tubulação e uso de bombas mais potentes. Vimos muito isso em diversas regiões da Amazônia, principalmente nos rurais, que dependiam da água do rio. Algumas vezes a bomba até tinha capacidade de bombear, mas o rio ficou distante de 100, 200, 300 metros do ponto original de captação”, explica.
Segundo os relatórios do Painel da ONU sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em Inglês), com o aquecimento do planeta, as estiagens – tanto na agricultura quanto na natureza – tendem a aumentar, assim como um clima mais seco e propenso a incêndios. Isso ocorre principalmente na Amazônia, porque estão mudando tanto as chuvas quanto a evaporação da água, o que deixa as florestas mais ressecadas e com menos oferta de água.
Essa situação piora quando somamos à equação o desmatamento: sem árvores, menos água sobe da terra para o ar (menos evapotranspiração), diminuindo a formação de nuvens e, consequentemente, fazendo cair menos chuva. O resultado é que as estações secas ficam mais longas, o risco de incêndios aumenta, as temperaturas sobem localmente e a vulnerabilidade da Amazônia a secas extremas se torna ainda maior.
“Um dos impactos mais importantes das mudanças climáticas tem sido as alterações no ciclo hidrológico, em particular na Amazônia. Nós observamos que muitas comunidades ficaram completamente isoladas nas secas de 2023 e 2024, sem uma adequada disponibilidade de água, água limpa, alimentos, remédios e assim por diante”, explica Paulo Artaxo, membro da Academia Brasileira de Ciência e do IPCC e ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 2007, junto com uma equipe de cientistas.
Para Artaxo, a estiagem dos últimos dois anos tem ligação direta com essas mudanças. “O menor fluxo de água nos principais rios amazônicos durante essas secas extremas certamente diminui a qualidade da água, além de outros efeitos, como, por exemplo, no lago de Mamirauá. Durante a seca de 2023, a temperatura da água atingiu mais de 40 graus, o que resultou na mortandade de centenas de golfinhos da região de Tefé por causa do aquecimento da região”, lembra.
Outro fator que parece contribuir para a mudança no equilíbrio hidrológico da região é uma característica peculiar do Rio Negro. “Observamos que as águas negras do Rio Negro, na verdade, absorvem uma quantidade muito grande de radiação solar, o que, com as secas, aumenta de intensidade, e, com isso, e com a ausência de chuvas durante secas, as extremas, faz com que a qualidade da água piore muito, há menos oxigênio na água por causa da alta temperatura e, basicamente, os animais e os peixes não conseguem sobreviver”, explica Artaxo.
Essa característica acaba interferindo também na qualidade da água da região. “Isso acaba sendo um dos efeitos maléficos das mudanças climáticas na questão da qualidade da água dos rios amazônicos”, alerta o pesquisador.
“Durante as cheias, o desafio não é a disponibilidade: ela está debaixo das casas ribeirinhas muitas vezes. O problema muitas vezes é mais sobre a qualidade dessas águas, que entram em contato com esgotos e outras fontes de contaminação”, explica Leonardo Capeleto de Andrade, pós-doutorando no Instituto de Geociências (IGc) da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador-associado na área de Tratamento de Água para comunidades ribeirinhas amazônicas.
As grandes secas possuem outro impacto social: quando os rios se afastam das casas, forçam as pessoas a se deslocarem até esses locais para captar as águas, muitas vezes em baldes carregados por centenas de metros até de volta às comunidades.
“Apesar de secas extremas mais frequentes, as residências não estão adaptadas a essas realidades (como vem ocorrendo com as cheias, que forçam os moradores a fazerem palafitas mais altas). As populações de alguns locais podem até ser forçadas a migrar para áreas menos afetadas ao longo do tempo”, afirma Capeleto.

Faltam dados, sobram dúvidas sobre a qualidade da água
Os autores destacam que a confiabilidade dos dados é um ponto crítico. Divergências nas auto declarações feitas pelos municípios levantam dúvidas sobre a qualidade da água ofertada e dificultam diagnósticos mais precisos. Sem informações uniformes e transparentes, a formulação de políticas públicas e investimentos voltados à melhoria do abastecimento tornam-se limitados, ampliando os riscos à saúde da população e ao direito ao acesso à água potável.
Enquanto 25 cidades no estado afirmam atender 100% da população urbana, outras registraram índices inferiores a 90%, e parte delas declarou consumo médio de água abaixo de 100 litros por habitante ao dia, patamar considerado insuficiente. Para os pesquisadores, essas variações expõem não apenas desigualdades no acesso, mas também fragilidades metodológicas.
A ausência de padronização, as lacunas e até mesmo possíveis erros nos registros dificultam qualquer avaliação precisa sobre a qualidade da água distribuída. Sem informações confiáveis, torna-se inviável medir a segurança do abastecimento e orientar políticas públicas eficazes, deixando a população vulnerável a riscos sanitários invisíveis.
Há também a piora da qualidade da água, em alguns casos. Isso porque com a estiagem, alguns trechos de rios ou fontes inteiras diminuem tanto a ponto de se tornarem poços de água parada. “Rapidamente a qualidade da água se deteriora, seja pela morte dos peixes, pela falta de oxigênio ou pelo aumento de algas”, explica Maria Cecília Rosinski Gomes.
Está ocorrendo uma intensificação da contaminação das águas dos rios, seja por fatores antrópicos ou ambientais, e isto está influenciando na mudança dos componentes físicos, químicos e biológicos da água.

“A alta temperatura das águas dos rios durante o período da estiagem faz com que haja um desequilíbrio no ambiente aquático, além da morte de animais, como peixes e botos, devido ao calor extremo e a baixa oferta de oxigênio nos lagos. Há também o aparecimento de organismos novos na região, como a floração da microalga Euglena sanguinea, que é potencialmente tóxica para peixes e outro sendo contaminante da água”, explica Milena Barbosa, natural de Tefé e que atuou durante a estiagem com a análise de qualidade das águas dos poços da cidade, pelo Instituto Mamirauá.
A ausência do acesso à água limpa e segura impacta diretamente na saúde coletiva da população. Nos meses de seca, há surtos de doenças e infecções relacionados ao consumo de água contaminada, como as diarreias que afetam principalmente crianças e idosos, levando a uma sobrecarga dos sistemas de saúde regionais que não estão preparados para receber uma demanda grande de pessoas doentes.

O que esperar para o futuro
Se o cenário atual não é bom, o futuro parece ainda mais sombrio. O relatório do IPCC de 2022 destaca que a combinação entre mudanças climáticas e desmatamento representa um risco elevado de mudanças bruscas no clima da região e até mesmo a transformação da Amazônia em uma savana.
“Isso mostra a necessidade da região amazônica se adaptar rapidamente ao novo clima, implementar processos, políticas que não deixem a população amazônica com as mesmas deficiências de fornecimento. Temos que planejar, fazer planos de contingência para disponibilizar água, alimentos e remédios em eventos de secas extremas como as que ocorreram em 2023 e 2024”, alerta Paulo Artaxo.
Leonardo Capeleto lembra que os rios estão diretamente ligados às águas de poços mais rasos nas comunidades ribeirinhas e cidades amazônicas. Com as secas e cheias, o nível desses lençois também se altera, reduzindo níveis ou aumentando a contaminação.
“Água potável é apenas aquela que é tratada. Independente da estação, as águas dos rios, lagos, poços e mesmo chuva não são naturalmente potáveis. Ou seja, os sistemas de tratamento também vão precisar se adaptar a essas realidades”, avalia o pesquisador. “A Amazônia não vai ficar sem água, mas ela pode sofrer secas e torná-las menos acessíveis. A infraestrutura relacionada a esse abastecimento vai ter que também se adaptar”, sugere.
Além disso, na região sul da Amazônia já se observa que partes se tornaram fonte de carbono para a atmosfera devido à degradação florestal. Esses fatores demonstram que, segundo o IPCC, a crise climática não apenas intensifica eventos de seca, mas também compromete a integridade ambiental da Amazônia, predispondo a região a eventos extremos como os vivenciados nos dois últimos anos.
“As simulações climáticas que o IPCC fez mostra que se tivermos um planeta 4 graus mais quente em média do que algumas dezenas de anos atrás, o que vamos observar é um aumento médio da frequência de eventos climáticos que pode aumentar por um fator 30 e eles serem 5 vezes mais intenso”, explica Paulo Artaxo. “Isso significa uma intensificação enorme de eventos climáticos extremos que certamente terão um impacto enorme na região amazônica e em todo o restante do planeta”, afirma o cientista.
Já o padre Sandoval Rocha afirma que há uma janela de oportunidade importante em novembro, durante a 30ª Conferência das Partes da Convenção do Clima (COP30), em Belém. “Se os líderes mundiais vierem com essa perspectiva de soluções universalistas, sem ouvir as necessidades, a base, a gente não vai conseguir reverter o processo de mudança do clima. Essas soluções mágicas de cima para baixo não resolvem”, afirma.

O que dizem as autoridades
Em nota, a Cosama afirmou à reportagem que opera 50 sistemas de abastecimento, em 44 comunidades de 15 municípios, beneficiando cerca de 250 mil pessoas. “Nesses locais, a cobertura média de atendimento da população urbana varia entre 65% e 70%, enquanto nas áreas rurais, a parcela não atendida é de 30% a 35%, em média”, disse.
A companhia afirma também que está elaborando projetos de revitalização e ampliação dos sistemas, já submetidos ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com destaque para Benjamin Constant, Atalaia do Norte, Eirunepé e São Paulo de Olivença, municípios na região do Alto Solimões, no sudoeste do Amazonas. Além disso, estão em andamento obras em Nova Olinda do Norte, situada na calha do rio Madeira, e em Codajás e Carauari, ambos na região do Médio Solimões, executadas pela Seinfra (Secretaria de Estado de Infraestrutura) e que, após concluídas, serão transferidas à Cosama para operação.
A concessionária explicou, ainda, que atualmente é a Defesa Civil quem garante algum atendimento no interior, com cerca de 700 purificadores de água instalados em 54 municípios do estado.

Os testes, de acordo com a empresa, incluem verificações físico-químicas, microbiológicas e organolépticas, assegurando potabilidade e conformidade legal. A fiscalização é realizada pela Vigilância em Saúde, com resultados reportados mensalmente ao sistema nacional e publicados no site www.cosama.am.gov.br
Já a Águas de Manaus afirmou que o abastecimento “está universalizado desde 2023 na área urbana da capital amazonense com atendimento de 99% da cidade, com mais de 2 milhões de pessoas alcançadas”. A empresa afirmou possuir um plano de investimentos, até 2044, para fazer esse acompanhamento e que não recebe subsídio do Governo Estadual para operar em áreas de “baixo retorno financeiro”.
A concessionária afirma, ainda, que entre 2023 e 2024, foram investidos mais de R$ 2 milhões para a adaptação das estruturas de abastecimento de água para cenários climáticos extremos.
“Esse aporte garantiu que a severa estiagem – que atingiu a cota de 12,11 metros no ano passado – não afetasse a captação e distribuição de água. Foi montada uma força-tarefa que incluiu o rebaixamento de 13 das 16 bombas de captação do rio Negro, além da instalação de três bombas anfíbias, que também podem captar água do rio através de estruturas flutuantes, semelhantes a balsas e conseguem acompanhar a descida do rio”, disse.
Vale destacar, no entanto, que nenhuma das duas empresas, nem a companhia estadual nem a concessionária municipal, apresentaram planos de contingência para possíveis estiagens severas no futuro.
Esta reportagem foi produzida por meio da Bolsa de Reportagem do edital Sala Colaborativa, promovido pela Ajor (Associação de Jornalismo Digital), em parceria com a InfoAmazonia e com apoio do Instituto Serrapilheira. O projeto tem como objetivo fortalecer o jornalismo socioambiental guiado por evidências científicas para informar decisões, gerar impacto real e fortalecer o diálogo público sobre desafios climáticos e ambientais.
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