No dia 1º de dezembro de 2004, o Incra baixou portaria exigindo o recadastramento de imóveis rurais com extensão entre 100 e 400 hectares na Amazônia e deu partida num processo que deixou boa parte da indústria madeireira do Pará em ebulição.
O problema não foi necessáriamente o recadastramento. Afinal, todos, madeireiros inclusive, parecem ter se habituado à estrutura fundiária irregular do estado e aos ciclos de tentativa das autoridades federais de organizá-la. O atual começou em 1999. A diferença desta etapa, explica Brenda Brito, pesquisadora do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), é que ela veio envolta numa categoria legal meio incerta, a de posse por simples ocupação, e portanto sujeita a várias interpretações. Além disso, pelo tamanho dos imóveis, todos de pequeno e médio porte, atingiu muito mais gente.
Veio também com uma novidade que aos ouvidos dos posseiros soou irritante: um prazo encurtado para iniciar o processo de regularização – 60 dias para áreas entre 300 e 400 hectares e 120 para propriedades menores. Os madeireiros ficaram ainda mais ressabiados quando descobriram que 10 dias depois de publicação da portaria do Incra, Antonio Carlos Hummel, Diretor de Florestas do Ibama, recomendou em memorando aos gerentes executivos do órgão na Amazônia que os planos de manejos já aprovados em áreas de posse entre 100 e 400 hectares fossem suspensos. No início de janeiro, o gerente do Ibama em Santarém, Paulo Mayer, seguiu as sugestões do chefe.
Com jurisdição sobre 50% do território do Pará, que inclui a região Oeste, uma das principais zonas de conflito fundiário no estado, Mayer suspendeu 39 planos de manejo de madeira em pequenas e médias propriedades. Até então, eles estavam regulados por Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) feito em 1999, determinando que as propostas de manejo seriam aceitas pelo Ibama desde que acompanhadas de declaração de órgão competente dizendo que a regularização da propriedade da área estava em andamento. “Foi uma mudança abrupta”, reclama Justiniano Queiróz Neto, vice-presidente da União das Entidades Florestais do Estado do Pará (Uniflor), que reúne as entidades de classe da indústria madeireira local.
Os madeireiros reagiram à decisão de Mayer. Fecharam rodovias estaduais e federais em diversos pontos do Pará em protesto e ameaçaram bloquear o rio Amazonas. Em Novo Progresso, município às margens da rodovia BR-163, o comércio parou e o sindicato madeireiro local dizia que mais de dez mil homens que vivem da extração e processamento da madeira estavam de braços cruzados. Em Santarém, a Câmara de Vereadores realizou uma audiência pública na quinta-feira, 27 de janeiro. Uma resolução, assinada inclusive por dois deputados do PT e um do PMDB que estavam presentes, pediu a suspensão imediata da portaria do Incra ordenando o recadastramento. Outra resolução exigiu a revogação da suspensão dos planos de manejo e o reestabelecimento de todos os que foram suspensos pela gerência de Santarém.
Na sexta-feira, dia 28 de janeiro, essa mais nova crise fundiária na região Norte – que tem uma óbvia dimensão ambiental – parecia se encaminhar para um desfecho onde cada lado cederia um pouco. Em negociações com a direção da Uniflor, alto funcionário do Ibama confidenciou que no Ministério do Meio Ambiente discutia-se três pontos para buscar solução para o impasse. O primeiro envolvia o anúncio imediato da abertura de licitações para projetos de manejo em Florestas Nacionais. O segundo, que precisava da colaboração do Incra, previa acelerar o licenciamento ambiental dos assentamentos de reforma agrária. É o que falta para que se possa também fazer neles o manejo para a extração da madeira.
O último, de longe o mais polêmico dentro do governo, é tentar regularizar os projetos que foram recentemente suspensos pela gerência executiva de Santarém. Em troca, a indústria madeireira teria que engolir a proibição definitiva da emissão de autorizações para manejos florestais em terras onde haja a mais leve suspeita de que possam ser públicas. É uma maneira de referendar de alguma forma as ações do Ibama das últimas semanas e reforçar a autoridade dos representantes do órgão na região Amazônica. Em Belém, o governo do Pará também se mexeu. Na mesma sexta-feira, em reunião com representantes da indústria da madeira na sede da Federação das Indústrias do Estado, prometeu levar de volta à Assembléia Legislativa o projeto de macrozoneamento – fundamental para ordenar a bagunça fundiária no Pará – e marcou para a segunda-feira, dia 31 de janeiro, uma reunião para iniciar o processo de demarcação de Florestas Estaduais, onde os madeireiros poderão efetuar manejos em regime de concessão.
Marcílio Monteiro, gerente executivo do órgão em Belém do Pará, defendeu as medidas tomadas pelo seu colega de Santarém. Diz que seria ideal poder separar os problemas ambientais, mais afeitos à questão do manejo, dos problemas fundiários. “Mas lá no Oeste do Pará isso é muito difícil”, afirma. Ele lembra que na sua gerência nenhum plano de manejo foi suspenso agora e quem explorou a madeira vai poder retirá-la. No entanto, conta que quando assumiu foi obrigado a enfrentar a questão. “Dos 400 planos de manejo que encontrei, só restam hoje 54”, diz. Alguns foram cancelados por problemas de manejo mesmo. Mas a maioria foi por irregularidades fundiárias.
Esse dilema em que problemas fundiários se enroscam com as questões ambientais está presente em toda a Amazônia. Mas pela desorganização cartorial e pelo tamanho da pressão humana, ele talvez se manifeste de forma mais evidente no Pará. “Aqui tudo é ilegal”, diz Wagner Krombauer, presidente da Uniflor. “A agricultura e a pecuária raramente respeitam a limitação de 20% de desmatamento. E como nosso setor, o madeireiro, ainda sofrem com a indefinição fundiária”, explica. Seu vice na Uniflor, Queiróz Neto, acha que parte desse problema da ilegalidade pode ser minorado se as autoridades levarem em consideração que há muita gente no Pará doida para se legalizar.
Ele divide em três categorias a questão fundiária que afeta a indústria da madeira no estado. Na primeira está quem tem o título de propriedade totalmente legalizado. Não são muitos. Na segunda, fica a turma que está há muito tempo numa área e luta há anos pela sua regularização. Na terceira, inclui os grileiros, que tomam posse do solo na marra e falsificam os documentos de propriedade. “O pessoal que essa medida do Ibama pegou fica na segunda categoria”, diz. “É gente que está doida para se regularizar”. É provável que sim. Infelizmente, não dá para garantir, como ele mesmo admite.
Há quem, por exemplo, corra atrás de uma autorização do Ibama para um plano de manejo apenas para ter mais um documento “esquentando” a sua posse da terra, lembra Adalberto Veríssimo, pesquisador do Imazon. Outros correm atrás da mesma coisa mas com o objetivo de pôr a mão nas cobiçadíssimas Autorizações para Transporte de Produtos Florestais (ATPFs) – o documento que legaliza qualquer madeira extraída no país – e revendê-las. Para quem tem madeira tirada ilegalmente, coisa que não é incomum no Pará, esse papel vale ouro. Neto reconhece que o problema existe. Mas preferia ver o governo apostando mais na vontade de quem quer virar legal do que reprimindo indiscriminadamente, como ele mesmo diz, todo mundo. Entre os afetados pela decisão do gerente do Ibama de Santarém, garante, está inclusive uma madeireira certificada, que não pode operar em área com título de propriedade irregular.
“O manejo madeireiro é a única indústria realmente sustentável nessa região”, diz Krombauer. “Ela não se presta à preservação, mas ao contrário da pecuária e da agricultura, pode ser tocada com baixíssimo impacto ambiental”. O problema é garantir que o manejo feito tenha qualidade. “O manejo, bem feito, deixa a floresta de pé”, diz Leonardo Sobral, gerente ambiental da Cykel, madeireira certificada pelo Forest Stewardship Council (FSC), o que lhe garante o selo de operação florestal ambientalmente correta.
Sobral reconhece que entre a turma que vai ao Ibama pedir autorização para planos de manejo há oportunistas. “Mas tem muita gente fazendo um trabalho de primeira linha, pagando imposto e cuidando de não devastar o mato”, afirma. “Como o Ibama não tem condição de fiscalizar direito os manejos, o problema sempre acaba sendo resolvido com base na questão fundiária. Não é às vezes a melhor maneira”, diz ele, que defende que a posse é um instrumento que, em muitos casos, precisa ser reconhecido para a regularização da propriedade da terra. Neto, da Uniflor, radicaliza um pouco a questão. “Tudo isso vai acabar muito mal para o meio ambiente”, garante.
“Essas medidas estão tornando impossível a sobrevivência do sujeito que não está a fim de devastar e que mesmo em situação irregular, quer se legalizar”, diz. “Do jeito que a coisa vai, esse governo segue os outros fazendo um processo de seleção às avessas. Só vão ficar os maus, gente que não se importa de trabalhar em terra grilada e derrubar a floresta”. Ele aponta a si próprio e Krombauer como exemplos desse processo. Ambos venderam suas operações de extração e processamento de madeira. Krombauer virou agente de negócios no setor. Compra de quem tem e vende para quem quer. Neto vive de alugar o equipamento que seu pai usava em Paragominas. Ambos se dedicam quase que integralmente à política de classe.
Sobral, da Cykel, concorda com esse tipo de análise. “A indústria da madeira não vai acabar. Isso só vai aumentar a ilegalidade”, diz ele, reclamando por algum tipo de saída. Instado a sugerir uma, lembra que há um projeto de manejo em regime de concessão em terras públicas feito pelo Ministério do Meio Ambiente e que neste momento repousa em alguma gaveta da Casa Civil de José Dirceu. A outra é acelerar a expansão de manejos madeireiros dentro de Reservas Extrativistas e assentamentos. “É uma alternativa, talvez a melhor no horizonte atual. Mas não é fácil”, diz, lembrando do abismo cultural que separa gente com visão empresarial de pessoas que são assentadas. “Falta-lhes visão de negócio”.
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