Reportagens

Tiro no pé

No corredor ecológico que liga os parques Serra da Capivara e Das Confusões, no Piauí, a presença de sem-terras provocou danos ambientais e uma perigosa tensão.

Carolina Mourão ·
24 de fevereiro de 2005 · 20 anos atrás

Há 5 anos um grupo de sem-terra se alojou nos limites do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, vindo das mais diferentes regiões. Hoje são mais de mil e estão prestes a ocupar um importante corredor ecológico que faz ponte com outro parque próximo, o da Serra das Confusões. Afirmam que são descendentes de quilombolas e que têm direito natural de explorar a área, caçando e derrubando árvores indiscriminadamente. Na verdade, os recentes assentados se juntaram a um pequeno número de negros que já habitavam a região e invadiam terras públicas para roçar – formando um só grupo de sem-terra que exige o direito de ocupar uma área improdutiva.

O corredor ecológico não pertence aos domínios nem de um parque nem de outro. Assim, o Incra acabou arrematando a área de pura caatinga por 650 mil reais, mesmo depois que a Unesco pediu ao governo brasileiro que toda a região fosse reconhecida como Patrimônio Natural da Humanidade e com o Ibama tendo conhecimento da importância ambiental da região. O desequilíbrio provocado pela presença dos sem-terra na área já é incalculável.

O Parque Nacional da Serra da Capivara é conhecido em todo o mundo científico por abrigar peças que podem explicar de uma vez por todas o dilema da ocupação humana nas Américas. Diversos artefatos, mais de 30 mil pinturas rupestres, ossos humanóides e de animais da megafauna – como o Tigre-dente-de-Sabre, o Mastodonte e a Preguiça Gigante – que conviveram com o homem no período entre 2 milhões a 11 mil anos atrás, o Pleistoceno – são descobertos sistematicamente pela equipe da arqueóloga Niéde Guidon. Só ano passado, o parque da Capivara recebeu 12 mil turistas – número que aumenta 30 por cento ao ano graças aos esforços da Fumdham – Fundação Museu do Homem Americano, cuja mentora do projeto é a própria Niéde.

Há 13 anos ela trava uma ingrata batalha na busca de uma política de desenvolvimento sustentável para a região que cerca o parque. “É um dominó. Impossível preservar 700 sítios arqueológicos sem conscientizar a população da importância ambiental daqui”, disse. Na época do início da ocupação dos trabalhadores sem-terra ela já sabia o problema ambiental que iria enfrentar. O Ibama foi acionado, mas nada foi feito.

Só o parque das Confusões é quatro vezes maior que a cidade de São Paulo e conta com apenas 2 funcionários do Ibama para fiscalizar a área. São 502 mil hectares de caatinga sem nenhuma infra-estrutura para receber visitantes. Na Serra da Capivara a situação é melhor. Apesar de ser 3 vezes menor do que o Parque da Confusões, tem 127 funcionários fixos, contratados e pagos pela Fundação, para fiscalizar a área e ajudar nos trabalhos. Mas ainda é pouco.

O corredor ecológico tem 60 km de comprimento e forma a estreita ponte que liga os dois parques. O local é um funil perfeito para a caça, que é feita com a ajuda de cães magérrimos e famintos que pertencem aos trabalhadores sem-terra. É por lá que aves, pequenos e grandes mamíferos – como a rara pantera negra – passam em busca de água em direção à Serra das Confusões, que tem fontes perenes, quando a Serra da Capivara sofre na estiagem. A migração de animais entre os dois parques promove a variabilidade genética entre as populações, fator de extrema importância no equilíbrio ecológico das espécies na região.

Os caçadores sazonais e os sem-terra alojados lá utilizam armas como espingardas e armadilhas com disparo automático para realizar caças diárias. As armadilhas são instaladas covardemente nas saídas das tocas dos animais. Mas a presença de civis armados no Parque Nacional da Serra da Capivara não é novidade. Niéde convive com ameaças há anos e uma funcionária da Fumdham foi assassinada com um tiro pelo próprio irmão, caçador, quando vigiava uma área. Os sem-terra compram essas armas da mão de pessoas especializadas em confeccioná-las em casa, para serem vendidas ali mesmo na região. A equipe da arqueóloga já dispensou 60 funcionários para evitar novas mortes dentro do parque.

Por conta da caça predatória, algumas espécies como o tatu canastra, o tamanduá e o tatu bola são cada vez menos vistos na região. Mas animais maiores também são alvo. Veados são cobiçados e já fazem parte da dieta eventual dos sem-terra. Um onça morta também foi apreendida pelos funcionários da Fumdham. Antônio Soares, secretário de política agrária da Fetag que representa os sem terra na região, dá o tom do conflito e assume a prática da caça, mas só para subsistência: “Os sem terra que estão ali são descendentes de quilombolas, elementos do parque. Vamos ficar. Gente também precisa comer”. A especulação pela carne silvestre, entretanto, existe. Há quem pague 100 reais por um tatu na beira da estrada. Também é sabido que nos casarões com piscina da região serve-se caça como petisco da terra.

O volume de animais subtraídos do corredor tem aumentado, não só porque provavelmente são vendidos como iguarias nas redondezas, mas também porque o solo é pobre para plantio de hortas e insuficientemente produtivo para manutenção da dieta das mil pessoas assentadas. Segundo Paulo Gustavo, da Coordenação da Divisão Técnica do Incra do Piauí, a terra no corredor ecológico é vermelha e branca, com problemas de acidez e deficiência de nutrientes e não é própria para a agricultura de subsistência. “É mesmo um solo pobre para quase todas as culturas. Seria ideal para plantar o feijão, mas escassez de chuva condena a ação. O caju agüenta, mas demora anos para dar. A melhor forma de cultura é a do mel silvestre que gera renda e preserva o meio ambiente. A região produz mel da melhor qualidade”.

A assessoria de imprensa da Funham, que zela pelo Parque Nacional da Serra da Capivara, afirmou que os sem-terra não se limitam a derrubar árvores e a caçar. Segundo Thomas Fisher, os assentados estão queimando pneus propositalmente no pé das paredes e cavernas pintadas, para tapar os desenhos que datam de pelo menos 20 mil anos. A fuligem não pode ser retirada sob pena de remover as delicadas pinturas. Essa seria uma das estratégias para validarem a ocupação. Sem desenho as paredes perdem o valor patrimonial. Não bastasse a suposta queima de pneus, a região convive com pichações de spray feitas por visitantes e invasores.

Mas as espécies resistem. O patrimônio genético da região que abrange os dois parques é riquíssimo. Só o Parque Nacional da Serra das Confusões é o maior cenário de caatinga do mundo, com grandes savanas que possibilitam a movimentação e o domínio territorial de animais de grande porte, como a onça, que precisa de uma área de 25 a 50 quilômetros quadrados para viver, cada uma.

No fim do ano passado, em outra matéria sobre a Serra das Confusões publicada em O Eco, o professor Paulo Sales, ecólogo da Universidade de Brasília, afirmou que a caatinga está proporcionalmente mais ameaçada que o cerrado e não há quase nenhum estudo sobre as espécies encontradas lá. “São 4 paisagens em um bioma. A região é um elo perdido entre o passado e o presente que vai trazer grandes surpresas científicas”. Não deu outra. Um estudo conduzido por cientistas do Brasil, dos EUA e da Itália foi divulgado dia 16 de fevereiro no American Journal of Primatology e pode revolucionar o que se sabe até aqui sobre o comportamento cultural dos primatas, graças a preservação da área. Em apenas um ano de trabalho no Parque Nacional Serra da Capivara, macacos-pregos selvagens foram vistos empregando ferramentas em seu hábitat pela primeira vez. (foto2)

No dia 26 de janeiro foi apresentada uma proposta de transformar oficialmente o corredor ecológico em área protegida. Participaram da reunião o Ibama, o Incra, a administração dos parques e a Fundação do Museu do Homem Americano, contando ainda com a presença do Ministro da Cultura, do Turismo e representantes do Irhan, que tomaram conhecimento do problema. A intenção era chegar a um acordo entre os interessados pela área e evitar um conflito ainda maior. Na ocasião, a ministra Marina Silva prometeu assinar o documento na semana seguinte após o carnaval, para acalmar os ânimos. Mas a assessoria da Ministra informou que o documento ainda está sendo elaborado e não há prazo para que fique pronto.

Se a ministra continuar postergando o ato, o conflito de interesses pode ter um desfecho mais grave. Os sem-terra estão armados. Niéde Guidón, francesa, recebe ameaças de morte. A ministra precisa ser rápida para que não aconteça no Piauí um crime parecido como o que vitimou a freira Dorothy Stang, no Pará. A briga envolve partes do próprio governo. Não se sabe o que é pior. Tiro nos bichos, ou tiro no próprio pé.

Leia também

Reportagens
27 de dezembro de 2024

Poluição química de plásticos alcançou os mais antigos animais da Terra

Estudos identificaram que proteínas geradas nas próprias esponjas marinhas eliminam essas substâncias prejudiciais

Reportagens
26 de dezembro de 2024

2024 é o primeiro ano em que a temperatura média da Terra deve ultrapassar 1,5ºC

Acordo de Paris não está perdido, diz serviço climatológico europeu. Confira a galeria de imagens com os principais eventos extremos de 2024

Salada Verde
26 de dezembro de 2024

Obra milionária ameaça sítio arqueológico e o Parna da Chapada dos Guimarães, no MT

Pesquisadores, moradores e empresários descrevem em documentário os prejuízos da intervenção no Portão do Inferno

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.