Reportagens

Floresta de bois

Pastam hoje na região Norte do Brasil 57, 4 milhões de bois. Se não forem adotadas medidas para direcionar a sua expansão, eles tomarão conta da Amazônia.

Manoel Francisco Brito ·
24 de fevereiro de 2005 · 20 anos atrás

Virou senso comum dizer que se nada for feito, em algumas décadas a floresta Amazônica desaparecerá pela ação do homem. Estudo feito pelos pesquisadores Eugenio Arima, Paulo Barreto e Marky Brito, do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), indica que antes que isso ocorra, é bem possível que parte expressiva da mata na região sucumba à pata do boi. A pesquisa aponta que a pecuária na região, por conta da demanda do mercado, produtividade vantajosa e de políticas públicas distorcidas, teve um crescimento avassalador na última década do século XX. Hoje, quase um terço das 180 milhões de cabeças de gado que existem no Brasil, mais precisamente 57, 4 milhões, pasta em campos da Amazônia onde antes, na maioria dos casos, havia floresta. O último censo agrícola do Brasil, realizado em 1995, diz que 77% das áreas desmatadas na região tinham sido convertidas em pastagens.

Embora não se tenha feito nenhum levantamento detalhado desde então, as estatísticas colhidas pelos pesquisadores sinalizam que a situação piorou. “O desmatamento cresceu”, diz Barreto. “Saiu de médias históricas de 18 mil quilômetros quadrados desmatados por ano para 24 mil quilômetros quadrados nos últimos dois anos”. Esse salto foi acompanhado pelo rebanho bovino na região. Entre 1990 e 2003, segundo dados do IBGE, ele cresceu 106% – contra apenas 6% no mesmo período no resto do país. Alguns fatores foram fundamentais para empurrar a expansão descontrolada da pecuária na região. A principal delas é o baixo custo da terra na Amazônia. Grande parte dos pastos amazônicos avançaram sobre florestas que cresciam em terras públicas. “A grilagem é o motor da pecuária extensiva na região”, diz Barreto.

Como o preço da invasão é barato, e o incômodo futuro das autoridades provavelmente nenhum, custa pouco fazer o rebanho crescer. Principalmente nas áreas onde a produtividade é alta. Basta ampliar a área de pasto. Estudo da FGV citado no trabalho do Imazon afirma que, entre 1997 e 2000, um pasto plantado no Pará saia em média por apenas 11% do valor dos pastos plantados em São Paulo. “A terra responde por 80% dos custos da pecuária”, explica Barreto. “Como aqui ela é muito barata em razão da disponibilidade de áreas devolutas, isso praticamente viabiliza a produção pecuária na região”. Mas existem outros incentivos que tornam esta atividade ainda mais atraente do ponto de vista econômico na Amazônia.

A pecuária que cresce sobre a floresta tem um estímulo inicial no próprio desmatamento da área para a implantação de pasto. “O corte das árvores fornece um acúmulo de capital que em geral é investido para colocar o gado em cima da terra”, diz Barreto. Além desses recursos naturais extraídos do mato, há outra fonte de financiamento barato, a juros subsidiados, para a pecuária na Amazônia. Ela está nos Fundos Constitucionais criados em 1988 para o desenvolvimento das regiões Norte e Centro-Oeste. Captam seus recursos retirando 0.6% da arrecadação anual do Imposto de Renda e do IPI e os emprestam a juros entre 6% e 10, 75%, bem abaixo do que é cobrado no mercado. O que parece muito bom fica ainda melhor se as parcelas da dívida forem pagas em dia. Isto garante descontos que variam de 15% a 25% no percentual de juros cobrados.

Nem o fato de um tomador não ter título definitivo sobre suas terras é problema para ter acesso ao dinheiro desses fundos. Basta ele fazer parte de uma associação de pequenos produtores. As regras permitem que ela tome recursos emprestados em seu nome. Dos 5,8 bilhões de reais que o Fundo Constitucional da região Norte emprestou de 1989 a 2002 para projetos agrários na Amazônia, 40,7%, segundo a pesquisa do Imazon, foram para a pecuária. Quase 90% desse montante foram investidos no Pará, Rondônia e Tocantins – que junto com o Mato Grosso estão entre os 4 principais produtores bovinos da Amazônia Legal. Outra pesquisa feita em 2002 por especialistas da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, com 200 pequenos produtores rurais no município de Uruará, no Pará, na região da Transamazônica, identificou que todos os que conseguiram captar créditos governamentais a juros subsidiados desmataram mais do que aqueles que não tinham crédito.

Mas o governo não incentiva o desmatamento, e por tabela a colonização da Amazônia pelo boi, somente com dinheiro barato. A existência de estradas oficiais, dentro de um contexto de ausência de autoridades federais ou estaduais, conta muito na decisão de um grileiro de colocar bois no terreno que ele invadiu. Ela viabiliza economicamente o transporte da carne. Barreto se preocupa com anúncios de melhoria na infra-estrutura viária na região sem investimentos acelerados no controle da ocupação das terras públicas. Pelos cálculos de seu estudo, só o asfaltamento da parte da BR-163 no Pará ampliaria em 30,4 mil quilômetros quadrados a área potencialmente atraente para a implantação da pecuária.

O asfaltamento da Cuiabá-Santarém não é a única notícia que deixa Barreto preocupado em relação ao futuro. Até agora, uma das principais barreiras à expansão do gado na Amazônia era a falta de controles sanitários, principalmente em relação à febre aftosa. Isso mantinha os mercado externos distante dos pecuaristas da região. Nos últimos dois anos, os fazendeiros e autoridades nos principais estados produtores da região fizeram um esforço concentrado para erradicar a doença. Tocantins e Rondônia juntaram-se ao Mato Grosso e já estão inclusive aptos a exportar. A região sul do Pará está próxima de conquistar o aval das autoridades internacionais.

“A demanda internacional pode incentivar ainda mais a expansão da pecuária na Amazônia, que hoje é direcionada aos mercados da Amazônia e das regiões Sul e Sudeste do Brasil”, diz Barreto. Ele lembra que a decisão do governo Lula de fazer com que o Brasil vire um potência mundial agro-exportadora pode contribuir ainda mais para empurrar o gado floresta amazônica adentro. A euforia com a exportação agrícola está fazendo com que áreas antes dedicadas à pastagem estejam sendo utilizadas para a plantação de grãos. “O boi que sai dali não some. Ele vai para algum lugar na Amazônia”, diz Barreto.

Ele lembra que não tem nada contra a expansão da pecuária. Apenas acredita, como está registrado em seu trabalho, que o governo precisa ter políticas públicas que conciliem a preservação ambiental com a expansão da atividade na região. “O rebanho bovino na Amazônia pode continuar a crescer pelo desmatamento ou por investimentos em tecnologia”, diz. Do jeito que a situação permanece na Amazônia, economicamente faz mais sentido expandir pelo desflorestamento do que por investimentos no aumento da produtividade. Em 80% das áreas dedicadas à criação de gado de corte, ela é muito baixa. Não chega a meio boi por hectare. Nos outros 20%, onde estão os principais centros produtores na região, a produtividade supera inclusive a do resto do país, encostando em 1,4 boi por hectare. “Produtividade alta e preço de terra baixo facilitam ainda mais a expansão da pecuária”, diz Barreto.

Barreto aponta que uma das principais ações que o governo pode fazer para tornar atraente o investimento em tecnologia pecuária, além da revisão dos parâmetros para a concessão de empréstimos subsidiados com dinheiro público, é dar um combate mais efetivo a grilagem de terras e a criar Unidades de Conservação. “São mecanismos fundamentais para tornar o valor da terra na Amazônia mais caro. Se isto não acontecer, continuaremos a ver o mato tombar”, diz. Ele acha que as medidas recentes adotadas pelo governo na esteira do assassinato da freira Dorothy Stang são corretas e ajudam a disciplinar a bagunça fundiária na região. “O desafio será manter a presença forte do governo no médio e longo prazos, incluindo polícia e justiça, regularização fundiária e fiscalização ambiental”, afirma.

Se isto não acontecer, como lembra o historiador José Augusto Pádua, o Brasil continuará reproduzindo na sua última região de fronteira o mesmo modelo que vem sendo empregado na colonização do país nos últimos 500 anos. “O boi fazia parte de um arsenal biológico do homem branco para a conquista da terra. Era uma espécie de arma ecológica secreta”, diz Pádua. “Trata-se de uma espécie exótica, que não tem predadores naturais e que pode se expandir sozinha, sem qualquer auxílio humano. Foi o boi, bem antes do ser humano, que conquistou o nosso interior”. Em 1700, na área do sistema colonial português no Brasil, habitavam 300 mil pessoas. Nessa mesma época, só no interior da Bahia e de Pernambuco, as autoridades informavam que havia 1 milhão e 300 mil cabeças de gado.

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