A crise climática afeta todas as pessoas, mas de maneiras muito diferentes. Enquanto alguns têm apenas alguns transtornos ou precisam lidar com temperaturas extremas no seu dia a dia, outros têm suas vidas completamente atingidas pelas mudanças climáticas. É sobre essas diferenças, impactos e formas de adaptação local que o geógrafo Bruno Araújo conversa com Lennon Medeiros, fundador da VisãoCoop, instituição que trabalha com protótipos digitais e verdes.
“Precisamos pensar e planejar melhor as cidades que a gente quer viver, eliminando essa dinâmica de quem tem mais grana, vive em lugares que são melhor preparados. E, segundo, precisamos reconhecer que as mudanças climáticas vieram para ficar. O ciclo das chuvas mudou, o ciclo do calor mudou, a gente precisa se adaptar”, defende Lennon, que vem da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro.
Medeiros estudou Ciências Sociais na UFRRJ e Letras na PUC-Rio, é embaixador de inovação cívica na Open Knowledge e pesquisou tecnologias verdes no ITS-Rio. Atualmente, lidera a Regenera.AI, uma aceleração de tecnologias para regeneração da Mata Atlântica e da Amazônia em parceria com o Governo do Reino Unido. Em entrevista ao podcast Planeta A, republicada na íntegra em ((o))eco, ele fala sobre infraestrutura, tecnologia, áreas urbanas e adaptação climática nas cidades.
Escute o episódio completo do podcast Planeta A:
Confira a entrevista abaixo:
Bruno Araújo: De acordo com a plataforma AdaptaBrasil, do Ministério da Ciência e Tecnologia, 66% dos municípios brasileiros têm baixa ou baixíssima capacidade de adaptação a desastres causados por inundações, enxurradas e alagamentos. Por que os municípios precisam dessas ações de adaptação?
Lennon Medeiros: Porque as cidades foram muito mal feitas. A gente pensa a partir daí, principalmente quem é de favela e periferia. Eu sou da Baixada Fluminense, que é historicamente um espaço onde tem muita agricultura, e posteriormente, muita fábrica. Mas o grande processo de transformação urbana tem a ver com a chegada dos transportes de massa. Então, você tem cidades que nascem ao redor das ferrovias e outras cidades que nascem ao redor das rodovias.
Agora você pode imaginar, principalmente quando a especulação imobiliária começa a ser muito forte, o preço das casas começa a subir, as pessoas começam a morar em lugares onde não tem estrutura adequada de energia, de saneamento.
E aí, acho que é uma coisa pertinente da gente perceber é que, conforme essas cidades vão ficando muito densas, muito cheias, as pessoas começam a morar em zonas ambientalmente vulneráveis, principalmente em relação aos efeitos das mudanças climáticas. Então tem pessoas morando em zonas onde o rio, pelo processo natural de cheia, avança. Tem pessoas morando perto de grandes problemas de infraestrutura e acho que isso é um ponto aqui crucial da gente pensar. Acho que essa pode ser a resposta mais pertinente assim da coisa.
Em Queimados [município da Baixada Fluminense], o maior efeito da enchente acontece por causa de 4 pilares da CCR da Nova Dutra que foram feitos abaixo do espaço que deveriam ter sido feitos. Ou seja, é uma coisa que você toma a decisão de economizar o concreto, na construção, mas que isso tem um efeito para aquelas vidas muito grande. O que acontece é que o pilar está muito baixo e o rio não consegue ter espaço adequado para o volume que ele precisa para passar durante uma grande chuva e as coisas começam a acumular. Ali vira uma espécie de barreira, as coisas começam a transbordar ali naquele espaço.
Então, as cidades precisam de adaptação, primeiro, porque elas não foram construídas para um momento que a gente está vivendo, não foram planejadas. E, segundo, porque as mudanças climáticas alteram muito essa dinâmica.
Então, uma chuva que a gente esperava ver a cada 80 anos, agora está acontecendo com muita frequência. A gente precisa se perguntar se os lugares onde a gente mora estão preparados para, com essa quantidade toda de gente, suportar ondas de calor e grandes chuvas. E na maior parte das respostas é não.
Desses 66% [municípios], a maior parte dessas cidades são cidades-satélites de regiões metropolitanas, cidades que são entendidas como ‘cidades dormitório’. E aí, não tem aquele volume de imposto para botar nas construções, para reforçar o sistema de saúde.
Então, são duas coisas: Primeiro, precisamos pensar e planejar melhor as cidades que a gente quer viver, eliminando essa dinâmica de quem tem mais grana vive em lugares que são melhor preparados. E, segundo, precisamos reconhecer que as mudanças climáticas vieram para ficar. O ciclo das chuvas mudou, o ciclo do calor mudou, a gente precisa se adaptar.
Toda a infraestrutura do presente não está preparada para lidar com essas mudanças na atmosfera. E acho que tem um outro elemento também nessas discussões sobre as cidades, que é: elas foram construídas ao longo da história da sua formação socioespacial em guerra contra a natureza, a partir do ponto de vista de que o meio ambiente era um atraso para o desenvolvimento. Então a gente precisava construir, construir, construir… E isso é o que traria o desenvolvimento.
Total. Uma coisa que pra mim foi muito marcante é que eu cresci vendo a escola onde eu estudava sendo transformada conforme o avanço de governos e do desenvolvimento econômico. Então ela foi de uma escola que tinha muitas árvores para uma escola que era toda baseada em concreto, toda cimentada.
Quem é da periferia vê essa escala, da gente ir desde o madeirite e subir para o tijolo. E depois você tem o reboco, a massa… Então tem toda uma construção de ideia de que o concreto é sinônimo de desenvolvimento, de prosperidade. Sendo que agora o que aconteceu foi uma grande inversão desses valores. As escolas mais caras, as escolas particulares, são as escolas onde as crianças podem conviver com o verde.
Ou seja, até aí, o verde foi monetizado.
Total, mano.
A crise climática é global, mas o impacto dessa crise é no território, é no bairro, é na rua, é na vizinhança. Queria que você relatasse o que acontece no lugar onde você mora, onde você vive, quando cai uma chuva muito forte ou quando tem um calor extremo.
Isso é um ponto que eu achei que meu território fosse, como a maior parte das periferias, e de certa forma é. Mas eu me surpreendi muito em descobrir o quão forte era a cultura de mutirão na periferia de onde eu venho. Eu sou de Queimados, que é uma cidade na região metropolitana do Rio de Janeiro, fica ali no coração da Baixada Fluminense e tem algumas características bem salgadas…
Queimados já foi a cidade mais violenta do Brasil, já matou mais gente do que a guerra na Síria (por 100 mil habitantes) no mesmo ano. Foi a primeira cidade do Brasil a sofrer intervenção militar, agora nesse novo período histórico, nas eleições. Então já teve gente votando do lado de blindados, foi a cidade que inaugurou a biometria e é uma cidade que tem mais de 60 anos de enchentes documentadas.
Então é uma cidade que já tem essa incidência… Tentou se separar de Nova Iguaçu em 1960 por causa de mutirões, que eram pessoas se ajudando contra enchentes e essa cultura sobreviveu. Então, da mesma forma que a gente vai na casa de um vizinho que tá terminando a casa dele, bater laje, eu já fiz muito isso, e tem uma coisa muito tradicional ali, de brincar com as pessoas e “pô, vem aqui pra um churrasco, vem aqui pro café” e quando chega lá tem uma obra pra fazer junto…
As pessoas se apoiam nesses processos durante as mudanças climáticas. Então, quando acontece uma enchente, você tem a formação desses grupos de mutirões que vão limpar as casas, arrecadar e distribuir comida, que vão verificar se as pessoas estão precisando de algum tipo de ajuda, de dar suporte para a Defesa Civil, atendimento humanitário, de saúde…
Isso foi se intensificando ao longo desses últimos 10 anos, de 2013 a 2023, por causa do acirramento da chuva. Então em 2013 acontece uma chuva que rompe com um ciclo, começa a chover muito. Queimados começa a ficar muito afetada pelas chuvas e os dez anos seguintes são ininterruptos.
A Fabrícia [Sterce], que é uma das fundadoras da Visão [Coop], teve a sua casa parcialmente destruída durante a enchente em 2013 e a gente começou a ficar um pouco mais atento a essas coisas mesmo. E nós não nos reconhecíamos como ativistas climáticos, enquanto agente ambiental, e só tivemos essa noção depois de anos liderando mutirão de combate a enchentes.
Então, já tinha a Juliana [Coutinho], já tinha eu, já tinha uma tropa que se reunia e fazia um trabalho de enfrentamento às injustiças climáticas, sem saber que esse era o nome.
A nossa grande característica é que a gente traz tecnologias digitais para a conversa. Então onde os nossos ancestrais, onde os nossos pais, nossos avós conseguiam atender um número x de pessoas, a gente consegue atender muito mais pessoas, porque temos WhatsApp, Google Maps e planilhas onde a gente registra esses dados e para de bater cabeça.
Isso é uma coisa que aconteceu muito no Rio Grande do Sul. A falta de sistematização e de interoperabilidade entre essas informações fez com que um mesmo ponto fosse assistido duas vezes por mutirões diferentes, enquanto outros espaços estavam descobertos sem qualquer tipo de ajuda.
Agora, por outro lado, não existe uma reação sistemática ao aumento de calor. E uma coisa a gente pode perceber, assim, uma das favelas que foi ditas com mais perigosas de Queimados é a favela que não passa esse calor porque ela está dentro de uma reserva ambiental. Então é um lugar mais fresco. Quando você tem várias pessoas em outros espaços muito concretados, onde não tem cobertura vegetal, vão passar mal com isso e que não têm uma associação, tipo “Pô preciso plantar uma árvore, preciso abrir um parque”, por outro lado, você tem essa periferia que perde em um monte de serviços públicos, mas que em relação a sua a presença do verde sai muito beneficiada.
Você consegue dar alguns exemplos pra gente de quais são as ações de adaptação nas cidades? Quais são as obras importantes, quais são as intervenções importantes?
Eu acho que tem um conceito muito massa de abordar e acho que talvez ele seja o melhor exemplo que é a ideia de cidades-esponja. Uma vez que estamos falando sobre esse triunfo do concreto, do que a gente chama de infraestrutura cinza, precisamos começar a pensar como é que a gente disputa esse espaço.
Então um exemplo muito bem sucedido é o da agenda Realengo, onde se tem um parque que é um terreno baldio e ele precisa ter uso social, então vale a pena pensar, “bom, não estou fazendo nada aqui, de repente vou plantar uma árvore, vou transformar ele em um espaço que é útil para a sociedade de alguma forma”.
Você tem outras iniciativas, por exemplo, em Magé, tem a galera do “Não Corte, Plante” que faz um reflorestamento no canteiro de centro das rodovias, isso impactou muito positivamente a redução da temperatura nesse espaço. Também tem um conceito de teto verde, tem uma iniciativa aqui no Rio de Janeiro que faz isso de forma super positiva. Isso ajuda na absorção de água, ajuda a reter o calor.
Mas quando você olha para esse conceito de cidades-esponja, ele vem com um pacote de soluções baseadas na natureza, que é basicamente planta, que é a maior tecnologia do universo. Bruno, acho que é uma coisa bacana da gente pensar, qual é a eficiência dessas áreas verdes para absorver água, para impedir o acontecimento de enchentes nos zonas urbanas, porque eles se tornam uma espécie de piscina.
Agora, é importante a gente perceber que tem uma parte muito relevante desse serviço que não vai ser feito a tempo. O BNDES contratou um especialista chinês muito relevante pra falar sobre a possibilidade de ter cidades-esponjas no Rio Grande do Sul e a previsão é a seguinte: De 3 a 5 anos você já consegue ter resultados de absorção de 300 mm de água, mas pode ser que em 15 anos essa cidade se torne capaz de reter 1000 mm de chuva. Isso é muito relevante porque, por exemplo, o que aconteceu no Rio Grande do Sul foi uma chuva entre 500 e 700 mm, que aconteceu ali durante um período, um processo de acúmulo.
Então, em algum momento a gente vai ser capaz de absorver isso. Agora depende também do período que essas coisas acontecem, né? Temos que estar prontos para esse tipo de infraestrutura. Já Petrópolis (RJ) teve uma chuva de 500 a 600 mm num período menor de tempo. Então uma coisa que a gente esperava em 80 anos começa a acontecer mais rápido nesses espaços.
Uma forma de reagir rápido a isso é ter ali tecnologia e sim um pedacinho de infraestrutura cinza. Tem um caso muito bem sucedido na praça da Bandeira [na cidade do Rio de Janeiro], que é a instalação dessas piscinas subterrâneas e uma coisa chamada bomba reversível. Então, quando o Rio Maracanã enche muito, essa bomba puxa a água do rio para o reservatório, depois ela vira na direção contrária e devolve água para o rio.

Você deu bons exemplos de ações de adaptação e eu acrescentaria ações de redução de risco também, por exemplo, essa perspectiva mais da adaptação infraestrutural. Então, obras de contenção de encostas para prevenir deslizamentos ou o próprio saneamento básico que é uma ação de adaptação, à medida que quando chove muito e alaga, as pessoas entram em contato com com água contaminada, etc.
É uma coisa importante de se pensar, porque o saneamento é o grande desafio da nossa geração. O que a gente faz com o cocô, vai para onde… Nos lugares que são mais ricos, você tem menos problemas de saneamento do que em outros lugares. Uma coisa que acontece muito em Queimados é, durante enchente, lugares que estão muito longe dos rios são afetados porque a água volta pelos encanamentos. Então tem uma coisa que é básica, que é de assistência técnica doméstica, que é você ensinar a essas pessoas a colocarem uma coisa chamada válvula reversível. Quando a água vem de baixo para cima, ela tampa e impede essas casas de encherem.
Quando falamos de adaptação, a gente está falando de uma infraestrutura que já existe e que precisa ser transformada, adaptada, modificada para lidar com os eventos climáticos extremos que se apresentam daqui para frente. Mas quando a gente fala de regiões, lugares, territórios que sequer tem essa infraestrutura, como é que a gente trata da adaptação nesses territórios?
Me veio logo na cabeça uma brincadeira que se faz muito nas periferias que é “quando cheguei aqui só tinha mato”, como se isso fosse um problema. Na verdade, ter o verde é a grande vantagem desses espaços que ainda não tem infraestruturas muito bem construídas.
O saneamento segue sendo um grande problema. Então para onde vai o cocô e onde vai o xixi, geralmente contamina rios, contamina os lagos, mesma coisa para abastecimento de energia. Agora, na ausência dessas infraestruturas, o que precisamos pensar é, primeiro, um novo ordenamento, por que as pessoas estão indo de fato para esses espaços? Como é que a gente traz as pessoas para mais próximo?
A crise climática é uma crise da habitação, então você precisa pensar novos programas de habitação para trazer essas pessoas para o centro e para mais próximo desses serviços.
Mas enquanto isso não acontece, acho que tem umas coisas assim básicas de serem check list: As pessoas estão numa zona que tradicionalmente sofre com muito calor ou sofre com alagamentos constantes? E para as pessoas que estão nesses espaços e que não tem como sair, acho que tem algumas medidas táticas, tática de guerra mesmo. A Fundação Banco do Brasil tem um banco de dados das tecnologias sociais e lá tem várias coisas legais, tem desde sistemas de teto verde de forma de transformar esse espaço, usando planta. Barraginha, que são essas pequenas barreiras que se fazem nesse espaço, como também outras adaptações que eu acho que estão muito nesse lugar ali das tecnologias sociais e que precisam ser implementadas a nível de política pública. Então tem um grande processo que é responsabilizar os governos locais por dar conta também na ordem inversa: quem tem mais problemas precisa ser assistido primeiro.
Aproveitando que você falou da tecnologia, como a tecnologia pode ajudar a gente a adaptar os espaços? E eu estou perguntando dessa tecnologia tradicional que a gente usualmente conhece como tecnologia, mas queria que você comentasse também sobre essa tecnologia social.
Eu acho que o melhor destaque que a gente pode dar é falar de uma tecnologia de computação, que é inteligência artificial, e falar de uma tecnologia baseada na natureza. Quando a gente olha, por exemplo, para quantidade de informações que a ciência precisava processar para pensar o efeito das mudanças climáticas, a gente estava falando de cientistas debruçados em muitos papéis, rabiscando e pensando o efeito na saúde é tal, erosão da terra, efeito do calor… Assim, tem uma série de variáveis que, com a ajuda de uma inteligência artificial, por exemplo, consegue processar de forma mais lúcida na hora de tomar uma decisão.
Agora, o que eu acho que é a tecnologia mais importante do momento são as soluções baseadas na natureza e o caso do Rio Grande do Sul é muito emblemático em relação a isso. Acho que tem essas possibilidades da gente ter um milhão de infraestruturas possíveis, de gastar bilhões de reais nesse processo de reconstrução e todos eles levam muitos anos para ter um efeito. Quando, por outro lado, você tem plantas que tem uma capacidade boa de transpirar para fora dessas ilhas de calor, que tem uma grande capacidade de reter a velocidade dos rios, impedir deslizamento de terra…
Então, acho que hoje o que a Visão [Coop] defende como uma melhor alternativa é essa construção de um tecno-orgânico, um encontro entre a infraestrutura de tecnologia, de maquinário, com as possibilidades pensadas pelas soluções baseadas na natureza. A gente chama isso de inteligência regenerativa, porque pega a melhor capacidade da computação e coloca ela a serviço do impacto positivo no clima, no meio ambiente.
Uma coisa que você comentou é sobre o poder da natureza, e eu não lembro em que palestra eu tava, mas se eu não me engano, foi o Ailton Krenak que disse isso: “a melhor tecnologia já criada na história deste planeta para sequestrar carbono é a árvore”.
É isso. Uma coisa que eu não me canso de repetir: não tem escassez de ouro, não tem escassez de diamante no universo, são coisas abundantes que existem em qualquer meteorito, em qualquer sistema solar. O que falta é árvore. A vida é uma característica incrível, e se a gente pensar nos organismos, a própria inteligência artificial é uma simulação de neurônios. Agora, quando você olha para as árvores, para esse ecossistema incrível que existe na amizade dos fungos com as plantas, isso é uma coisa raríssima. Uma troca de células, uma troca de inteligências orgânicas que a gente não conseguiria simular nem com toda a capacidade computacional que existe hoje no mundo.
Então o que precisamos de fato conseguir conduzir é uma tecnologia que se conecte a esses processos para ir além da sustentabilidade, porque não adianta a gente ficar nessa ideologia do empate:’ pombas, eu vou produzir e vou consumir na mesma medida e tá tudo bem’. Não mano, não tá tudo bem. Já começou um aquecimento que não tem volta, desse jeito que tá a gente precisa começar a produzir trabalho para regenerar a Terra. Não é só deixar no empate, é começar a entregar mais pra Terra do que a gente de fato já consumiu.
Nesse momento que a gente está fazendo essa entrevista, o Brasil está ardendo em chamas [a entrevista foi gravada em setembro de 2024]. Estamos há pelo menos três meses com bastante fogo. Começou na Amazônia, depois Pantanal, Cerrado e alcançou São Paulo e Minas Gerais, na região Sudeste, nas últimas semanas, o que fez a mídia então, olhar para isso que está acontecendo. E na minha opinião, não basta a gente ter um plano de controle para desmatamento, precisamos precisa de um plano de regeneração ecológica no Brasil, que vai fazer esse encontro da tecnologia com braços trabalhadores que vão trabalhar na regeneração do planeta.
É para isso que estou vivo hoje. Na Serra do Vulcão, em Nova Iguaçu, existe um movimento muito incrível chamado “eles queimam, nós plantamos”. Eles fazem esse movimento de levar cientistas da computação, uma tropa da engenharia que trabalha com drone e impressora 3D, para encontrar com os moradores desse território e com os ambientalistas. Nesse movimento, eles fazem duas coisas que são extraordinárias, uma é: eles combatem os incêndios criminosos que são feitos pra especular financeiramente mesmo, pra criar possibilidade de você ter construções ali nessa zona de preservação. E a outra coisa é: eles plantam. Então, além de combater o incêndio que existe nesses espaços, eles estão colocando novas mudas para regenerar aquele espaço. A gente quer que essas duas galeras se conectem para pensar como a tecnologia e a computação podem ser feitas para transformar isso num grande movimento.
Por quê? Porque o Brasil precisa de vocação. Qual é o nosso grande talento econômico? Não está nessa industrialização do jeito que outros países tocam, está na nossa rica biodiversidade. Então, no final do dia, a gente precisa começar a inventar uma imaginação nova, uma nova forma de olhar para gente enquanto trabalhadores do clima. Nossa grande contribuição para a humanidade hoje é inventar novas formas de se relacionar com o meio ambiente.
O impacto desses eventos extremos revela diversas desigualdades, seja no momento da chuva, seja depois dela. Para além dessa adaptação que a gente está falando, que é uma adaptação de infraestrutura nos territórios, é preciso também que ocorra uma adaptação na governança, na gestão desse impacto do evento climático extremo. De que maneira o Estado deve se preparar para enfrentar as mudanças climáticas?
Esse é o principal tema que acho que precisa ser ensinado nas escolas, precisa estar presente no cinema, precisa estar na pauta 00 das estruturas de governança.
Eu não sabia disso, mas você não tinha essa infraestrutura de ministérios e secretarias, agentes como existe hoje. Eu que nasci nesse momento, achei que isso fosse uma coisa que, pela importância, sempre existiu. Acho que um governante hoje precisa de duas coisas: A primeira é dominar muito bem essa ideia de cultura de risco, de reconhecer que ele está num espaço que não dá mais pra esperar um ciclo das chuvas normais. Não dá mais pra esperar que as pessoas não sejam afetadas pela onda de calor. Ele precisa levar isso muito a sério e colocar isso no cotidiano da cidade.
É repensar até os espaços públicos, de ter bebedouros disponíveis, ter mais espaços com sombra, serviços que levem em consideração o aumento do calor e da chuva, porque se tá numa periferia, corta o abastecimento de água, muitas vezes corta o abastecimento de luz, corta os serviços de saúde e educação pública quando acontece uma chuva. Não dá mais pra viver nisso, porque esse ciclo está desregulado e cada vez mais vai ficar mais intenso. Vamos ter que aprender a lidar com essa parada, se adaptar também tem a ver com essa atitude dos serviços públicos.
O segundo ponto é colocar isso no orçamento e desenvolver planos. Então, na esfera federal, hoje a gente tem plano de adaptação, plano clima, plano de Juventude e meio ambiente… O Ministério da Ciência e Tecnologia está projetando várias ondas de desenvolvimentos, eventos, programas para pensar essa aceleração de tecnologia verde.
E a gente precisa descer essas estratégias, porque elas fazem parte do governo federal e também tem uma grande pressão na política internacional pela criação desses mecanismos, desses programas. Precisamos pressionar isso nas cidades. A gente fez um trabalho muito importante de advocacy na Visão [Coop] pela criação de um plano de adaptação e resiliência climática. A gente gostava desse termo porque no final a sigla ficava PARC.
E o poder público ouviu a gente, uma vez, durante o verão de 2023. Tínhamos bons mapas de vulnerabilidade, mostramos quais eram os problemas da cidade, coisa que a gente construiu com uma inteligência coletiva, ouvindo os moradores dessa cidade… E o mais foda é que você tem ali dados de mulheres pretas, mulheres pobres, e que muitas das vezes não têm o acesso a grandes estudos de engenharia ambiental e sabiam exatamente quais eram os problemas da cidade, de retenção. Então tem uma inteligência aí que precisa ser também traduzida para os termos científicos. Precisa ter uma cocriação dessa parada.
O poder público precisa fomentar esse tipo de espaço, esse espaço para construção coletiva. É importante aumentar a participação social para caramba e é importante ter esses mecanismos arrojados, tanto a nível de plano quanto a nível de fundo, porque não adianta ter só a política pública, e no final das contas: verba de prevenção, 200 reais, verba de adaptação, 300 reais… Então a gente precisa de grana para plantar árvores, para adaptar o rio… O papel do poder público é captar esse recurso, é formar um espaço propício para a cooperação dessa inteligência coletiva e liderar a implementação dessas políticas públicas.
Diante da alteração do funcionamento da atmosfera, a gente precisa adaptar as infraestruturas que existem para lidar com os eventos climáticos extremos, mas a alteração já foi tamanha que precisamos ir além da adaptação. A gente precisa reconhecer que esses impactos já provocam danos e que esses danos precisam ser reparados. Vamos supor, uma família que perdeu tudo nas enchentes do início do ano, por exemplo, aqui no Rio de Janeiro, e depois perdeu de novo, duas semanas depois com uma outra enchente. Foi exatamente o que aconteceu. Essa família, ela é responsável pela chuva que a acometeu? Não. Mas ela precisa reconstruir a sua vida, recomeçar a sua vida. E aí entra a discussão sobre perdas e danos, que aí é o gatilho que você falou do orçamento e eu acho que a gente precisa também ter um orçamento dedicado para perdas e danos. Tendo em vista que a crise climática produz impactos não só no momento em que a chuva cai ou que faz muito calor. Esses impactos permanecem, são contínuos e duradouros. O desastre não termina quando a água baixa, talvez ele piore quando a água baixa.
É, porque aí acabou a atenção. As pessoas saem do território. Você não tem mais aquela relevância da emergência, aquela empatia. E o depois, como é que você reconstrói? Nós acompanhamos, até ter essa enchente que foi interrompida, estamos falando de três anos, às vezes mais de uma vez por ano, atendendo os mesmos lugares.
Então eu tive o desprazer de ver uma criança crescer. O desprazer não pela criança, que é maravilhosa, uma amiguinha, mas de encontrar essa situação permeando os primeiros anos de uma infância. Então perdeu o berço, depois perdeu os brinquedos, perdeu suas roupas. No mesmo lugar a gente ouviu uma senhora falar que ela não compra mais móveis. Ela desistiu, tem cadeiras de plástico onde ela coloca as coisas dela em cima.
Uma senhora trabalhadora, que passou a vida toda pagando imposto, se preparando para um momento de aposentadoria, e chega esse momento dela enfrentar a mudança drástica naquele território que ela ralou para construir.
O poder público precisa ter coragem para fazer quem atua nesse território, principalmente quem trabalha com infraestruturas que podem reter, provocar enchentes, a ser responsável. Por isso esse debate sobre sustentabilidade está um pouco ultrapassado. Não adianta só ter uma postura de chegar ali, cumprir uma cartilha de responsabilidade, você precisa compensar sua presença neste território. E já até existe legislação para isso. Você está presente ali, tem que ajudar a regenerar um Rio, fazer um processo de reflorestamento. A verdade é que hoje só não está sendo cumprido. Até para o poder público ter uma relação positiva…Porque a gente quer muito atrair investimento, né? Quer atrair indústria, e pá… Uma vez que esteja presente, toda essa galera usa água, emite carbono.
É preciso que eles pensem de forma muito ímpar como eles estão produzindo impacto nesses territórios. E a melhor forma de fazer isso é escutar esses moradores nesses espaços. O morador sabe exatamente o que está sendo consumido, sabe exatamente quais são os efeitos daquela presença ali. Então a gente precisa ir além, e isso tem a ver com generosidade e criatividade. A gente até aqui imaginou que dá conta. “Pô vou simplesmente fazer uma açãozinha e outra aqui e dá conta”. Não dá mais conta. A gente está diante da calamidade pública, então a gente precisa começar a se preparar com muita antecedência.
Qual é o papel da articulação territorial, do cooperativismo, da cooperação e da solidariedade no enfrentamento às mudanças climáticas?
Excelente pergunta, acho que isso é uma nova fundação da base social. Acho que num momento de calamidade pública, como o que aconteceu no Rio Grande do Sul, em Petrópolis ou na Baixada Fluminense, fica muito evidente que você precisa, por exemplo, ajudar alguém a limpar uma casa ou distribuir cesta básica para alguém que está passando fome.
Mas no cotidiano a gente tem essa ideologia tóxica de achar que precisamos competir por recursos que são escassos. Não tem recursos escassos. Os recursos naturais são abundantes e maravilhosos. O que a gente precisa é começar a utilizá-los de uma forma mais responsável, que considere o outro e não que considere esse processo de apropriação e de tomar vantagem em cima de um espaço que é comum.
Deixa eu trazer para prática: Nós [VisãoCoop] fazíamos um trabalho focado em Queimados, depois começamos a fazer um trabalho focado na Baixada Fluminense, foi quando a gente começou a interagir com esses outros coletivos e organizações de Nova Iguaçu, de Belford Roxo, de São João de Meriti. E quando a gente começa a se relacionar com a Coalizão Clima de Mudança, quando no futuro a gente funda a Confluência de Favelas, isso vai para um outro patamar, porque a gente começa a poder trocar com uma galera de outros espaços.
A gente é muito orgulhoso de ter chegado com uma garotada de Heliópolis, em São Paulo, e feito uma provocação. A gente tem um manual de como combater a enchente e uma oficina onde a gente passa a visão disso que a gente aprendeu. E sabe o que aconteceu? Surgiu uma célula lá em Heliópolis que hoje está tocando várias coisas incríveis, que colocou seus próprios métodos, que ensinou muita coisa pra gente.
Então tem um intercâmbio super positivo. E com isso vai se formando um movimento… porque vamos ser verdadeiros, Bruno, você está fazendo um podcast aqui, mas existem vários outros. Se você começar a pensar que você está concorrendo com essa galera, você vai pra um lugar muito absurdo, que é imaginar que somos o suficiente para dar conta do desafio. Não somos o suficiente, nem em número, nem em qualidade ainda.
Precisamos subir o nível, precisamos virar um movimento de vanguarda e inspirar outras pessoas. Entender que estamos fazendo um movimento que precisa ser volumoso, precisa ser denso, precisa dar conta de alcançar as pessoas nas suas mentes, nos seus corações, nos seus trabalhos, nos seus cotidianos e nas suas rotinas.
E para fazer isso, a melhor forma é sensibilizar para esse espaço que a gente tem em comum. Então, o que a terra dá, a terra pede. A gente precisa começar a entender como é que a gente se relaciona nisso. A Visão [Coop] tem esse objetivo de fomentar a cooperação, porque a gente acredita que esses encontros entre um cientista, um morador de favela, entre uma pessoa de um território no norte do Brasil e uma pessoa no sul do Brasil, trazem essas qualidades de detectar essas diferenças e ao mesmo tempo equalizar as oportunidades.
Então é uma troca de tecnologia que é muito bem sucedida, um exemplo de uma coisa que deu certo no meu território que pode te inspirar. Acho que no final do dia a gente precisa construir essa nova aliança das pessoas com a Terra e das pessoas com as pessoas também.
E agora, para finalizar nossa entrevista, eu queria pedir algumas recomendações. O que você está lendo? Escutando? Vendo?
Tem muita coisa, cara. Eu acho que uma coisa positiva é que a galera do meio ambiente e clima produz muita coisa boa. Queria começar indicando dois sites. Um é um site uruguaio, chama Amenaza Roboto. Tem publicação em português também, e eles têm uma publicação que conta uma história do Uruguai, mas que serve muito para a gente pensar a relação entre Amazônia e Rio Grande do Sul. O nome da publicação é “das secas à inundação”. Outro site que eu acho que vale a pena conhecer é o MapBiomas, que tem ali uma série de bancos de dados muito importantes que ajuda a gente a ter um pouco de dimensão do tamanho dessa crise, das diversas coisas que acontecem dentro dela.
Queria deixar um podcast legal também para pensar esses conceitos e principalmente essa história do que está acontecendo na legislação do Brasil, no movimento ambientalista, que é o Tempo Quente, da Rádio Novelo. Tem um filmaço também que tem como produtora executiva a Txai Suruí, que chama “Território” da NatGeo. Eu gosto muito de animação e tem um que chama Planeta dos Abutres que tem essa relação entre a tecnologia e que tem uma outra forma de pensar o orgânico, que eu acho que é uma boa provocação. E para fechar, eu queria indicar um livraço que eu estou lendo que chama “maneiras de ser“, de um inglês chamado James Bridle, que pensa em uma inteligência planetária. Eu achei isso ímpar, porque ele começa falando que a tecnologia é massa, mas a gente não pode só pensar a tecnologia do jeito que ela é. Precisamos pensar no impacto e na utilidade dela para a humanidade. Então vamos pensar uma ecologia da tecnologia e vamos fazer isso primeiro, reconhecendo que a inteligência humana não é soberana, tem outras tecnologias e outras inteligências que a gente precisa considerar. Tudo, na verdade, é todos. É muita vida que precisa ser valorizada.
Concordo muito com isso que você falou da cooperação ao invés da competição. E acho que tem uma coisa interessante nessa discussão, que é o seguinte: poucas são as vezes que, nessa sociedade que a gente vive, nós somos colocados como natureza. E o único ou talvez um dos únicos momentos em que somos colocados como natureza é para dizer que esse mundo é uma selva e que você precisa matar um leão por dia, que é um contra o outro, porque se você come, eu não como. Eu acho que diante da emergência que a gente está vivendo e da urgência de tomar ações e iniciativas, não tem espaço para ego.
Então, esse podcast é parceiro de todos os outros podcasts de meio ambiente. Eu acho que, na verdade, o que a gente precisa fazer é sentar todo mundo que tá produzindo podcasts junto e pensar, como é que a gente pode fazer todos esses podcasts serem melhores? A gente reunir todos os movimentos que estão tocando isso, a luta climática no Brasil hoje, pensar como é que a gente pode se fortalecer junto, conseguir alcançar essa meta, que é uma meta pra garantir a vida, que é a transformação da realidade que a gente vive.
E deixo também a indicação do “Como sobreviver ao racismo ambiental”. O filme que a Visão [Coop] produziu, que tem como apresentadora Juliana Coutinho, como diretora Fabricia Sterce, e que conta essas histórias, que eu acabei de enumerar duas. Contei do pessoal do EAE que combate incêndio e refloresta e tem as mulheres de Queimados que fazem esse mutirão de combate à enchente. Temos também um pescador caiçara que trabalha com a qualidade do ar e uma grande liderança da Cidade dos Meninos que conta a história do envenenamento por DDT [pesticida já banido] na periferia de Caxias. Então é um filmaço. Não saiu ainda, mas se você entrar lá no perfil da Visão e chorar muito, talvez a gente libere o filme pra você ver também.
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Em entrevista ao podcast Planeta A, Miriam Garcia discute as responsabilidades comuns e diferenciadas entre as nações na crise climática e os impactos em cada país →

Já vivemos a crise climática e precisamos enfrentá-la, diz ex presidente do Ibama
Em entrevista ao podcast Planeta A, Suely Araújo coloca as mudanças climáticas como ponto central nas discussões nacionais e mundiais →