Em 1997, em Monte Verde, no sul do Chile, uma reunião dos mais importantes estudiosos do povoamento humano das Américas serviu para consagrar uma mudança de paradigma científico. Desde os anos 1930, a arqueologia norte-americana defendia que o início do povoamento das Américas teria se dado a no máximo 13 mil anos. A defesa desta tese se pautava na datação radiométrica das pontas de flecha da cultura Clóvis, usadas há 11,5 mil anos por bandos de caçadores-coletores que perseguiam manadas de mamutes no sudoeste do que são hoje os Estados Unidos (as primeiras flechas foram achadas na cidade de Clóvis, Novo México, daí seu nome).
A narrativa tradicional da arqueologia norte-americana dava conta que os primeiros humanos a adentrar o continente o fizeram cruzando o estreito de Behring, que separa a Sibéria do Alasca, há 12 mil anos, no final da idade do Gelo. Mil anos mais tarde, seus descendentes diretos, a chamada cultura Clóvis, estariam caçando a megafauna (as preguiças gigantes, gliptodontes e mastodontes hoje extintos) na região central dos Estados Unidos. Seriam necessários ainda outros mil anos para que a expansão humana cruzasse o istmo do Panamá e invadisse a América do Sul e começasse a povoá-la, portanto há no máximo 10 mil anos.
Esta teoria sobre o povoamento das Américas começou a fazer água a partir do final dos anos 1970, quando foram escavados na América do Sul sítios arqueológicos com datações mais antigas que as de Clóvis. O caso emblemático foi Monte Verde, no sul do Chile, onde caçadores-coletores esquartejavam mastodontes há 14,8 mil anos. Em outras palavras, havia sido descoberto um sítio humano 3 mil anos mais antigo que os de Clóvis, e situado mais de 10 mil quilômetros ao sul dos Estados Unidos, no sul do Chile.
Ou as datações para Monte Verde estavam incorretas, ou então o povoamento da América do Norte teria iniciado muito antes do que se supunha. E assim foi. Após quase 20 anos debate, finalmente os arqueólogos norte-americanos aceitaram as datações sul-americanas e, naquela reunião em Monte Verde em 1997, celebraram a mudança de paradigma. Os primeiros humanos teriam pisado no Alasca há mais de 15 mil anos, quando o frio cortante da idade do gelo apenas começava a ceder.
Agora, em 2018, acontece algo similar. Uma mudança de paradigma, que só foi possível graças aos avanços da biologia molecular, e particularmente nos avanços no estudo de DNA fóssil. Assim, a história do povoamento da América Central e da América do Sul acaba de ganhar uma nova interpretação − quem sabe, definitiva. O maior e mais abrangente estudo já feito a partir de DNA fóssil, extraído dos mais antigos restos humanos achados no continente, confirmou a existência de um único contingente populacional ancestral de todas as etnias ameríndias, passadas e presentes.
Há mais de 17 mil anos (não mais 15 mil), os primeiros humanos cruzaram o estreito de Behring para povoar o Novo Mundo. O DNA fóssil indica que os integrantes daquela corrente migratória tinham afinidade com os povos da Sibéria e do norte da China – ou seja, não possuíam DNA africano ou da Australásia, como sugere uma teoria tradicional formulada nos anos 1980, e que acaba de ser descartada.
Uma vez na América do Norte, é o que revela o novo estudo, os descendentes daquela corrente migratória ancestral se diversificaram em duas linhagens há cerca de 16 mil anos. Os membros destas linhagens acabaram, separadamente, por se expandir para a América Central. Ao cruzar o istmo do Panamá, povoaram a América do Sul em três levas consecutivas e distintas.
A primeira destas levas ocorreu entre 15 mil e 11 mil anos atrás, e a segunda se deu há no máximo 9 mil anos. Há registros do DNA fóssil de ambas migrações em todo o continente sul-americano. Uma terceira leva é bem mais recente e de influência restrita, pois se deu há 4,2 mil anos, e seus membros se fixaram nos Andes centrais.
O trabalho “Reconstructing the Deep Population History of Central and South America” foi realizado por 72 pesquisadores de oito países, e pertencentes a instituições como a Universidade de São Paulo, a Universidade Harvard e o Instituto Max Planck, entre outras.
Os resultados da pesquisa sugerem que, na primeira linhagem de humanos a executar o trajeto norte-sul entre 16 mil e 15 mil anos atrás, seus membros pertenciam à cultura Clóvis, que está associada à caça da megafauna pleistocênica. Com o declínio e a extinção da megafauna, há 11 mil anos, a cultura Clóvis eventualmente desapareceu. Muito antes disto, entretanto, bandos de caçadores-coletores Clóvis, ao explorar novas áreas de caça cada vez mais ao Sul, eventualmente acabaram por ocupar a América Central − como o comprova o DNA fóssil de 9,4 mil anos de um humano de Belize analisado neste novo trabalho.
Posteriormente, talvez em perseguição de manadas de mastodontes, bandos de caçadores-coletores Clóvis cruzaram o istmo do Panamá para invadir e se espalhar pela América do Sul, como evidenciam os registros genéticos de enterramentos humanos no Brasil e no Chile agora revelados. Tal evidência genética vem corroborar evidências arqueológicas no sul do Chile, um acampamento de caçadores de mastodontes há 14,8 mil anos.
Voltando ao Oeste norte-americano, entre os diversos sítios Clóvis conhecidos, o único enterramento humano associado às ferramentas da cultura Clóvis fica no estado de Montana. Lá foram achados os restos de um menino chamado Anzick-1, de cerca de 12,6 mil anos. Seu DNA foi o ponto de partida do trabalho. O DNA extraído dos ossos daquele garoto está relacionado ao DNA dos esqueletos do Povo de Lagoa Santa, um grupo de humanos antigos que habitou o Brasil central − mais especificamente as grutas no entorno de Lagoa Santa (MG) − entre 10 mil e 9 mil anos atrás. Em outras palavras, o Povo de Lagoa Santa descende dos migrantes da cultura Clóvis da América do Norte.
Outra descoberta agora anunciada dá conta de que os restos humanos de Lagoa Santa não guardam relação genética alguma com hipotéticas migrações humanas provenientes dos estoques genéticos africano ou aborígenes − como sugeria a teoria tradicional da ocupação da América do Sul.
“Do ponto de vista genético, o Povo de Lagoa Santa era formado pelos primeiros ameríndios,” explica o arqueólogo André Menezes Strauss, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, que coordenou a parte brasileira do trabalho.
“Estranhamente, os membros daquela primeira linhagem de sul-americanos não deixaram descendência identificável entre os povos ameríndios atuais. Em torno de 9 mil anos atrás, seu DNA desaparece completamente das amostras fósseis, sendo substituído pelo DNA de uma segunda leva migratória, não relacionada à cultura Clóvis, da qual descendem todos os ameríndios vivos. Ainda não sabemos os motivos que levaram ao desaparecimento do estoque genético do povo de Lagoa Santa,” explica Strauss.
Uma possibilidade para o sumiço do DNA da primeira migração, encontrado no DNA do Povo de Lagoa Santa, é que este tenha se diluído em meio ao DNA dos ameríndios descendentes dos integrantes da segunda leva populacional, tornando-se assim não identificável através dos métodos atuais da pesquisa genética.
O trabalho dos pesquisadores brasileiros contribuiu de forma fundamental para a pesquisa. Entre 49 indivíduos dos quais se extraiu DNA fóssil, sete esqueletos com idades entre 10,1 e 9,1 mil anos são provenientes da Lapa do Santo, um abrigo rochoso em Lagoa Santa. Aqueles sete esqueletos, ao lado de dezenas de outros, foram achados e desenterrados em campanhas arqueológicas sucessivas no local, lideradas primeiramente pelo antropólogo físico Walter Alves Neves, do Instituto de Biociências (IB) da USP, e desde 2009 por André Menezes Strauss.
Ao todo, o estudo investigou o DNA fóssil de 49 indivíduos, provenientes de 15 sítios arqueológicos situados na Argentina (2 sítios, 11 indivíduos com idades entre 8,9 mil e 6,6 mil anos), Belize (1 sítio, 3 indivíduos, idades entre 9,4 mil e 7,3 mil anos), Brasil (4 sítios, 15 indivíduos, idades entre 10,1 mil e 1 mil anos), Chile (3 sítios, 5 indivíduos, idades entre 11,1 mil e 540 anos) e Peru (7 sítios, 15 indivíduos, idades entre 10,1 mil e 730 anos).
Os esqueletos brasileiros são provenientes de cinco sítios arqueológicos: a já citada Lapa do Santo (7 indivíduos com cerca de 9,6 mil anos), o sambaqui Jabuticabeira 2 (5 indivíduos com cerca de 2 mil anos), que fica em Santa Catarina, e dois sambaquis fluviais no estado de São Paulo do Vale do Ribeira: Laranjal (2 indivíduos com cerca de 6,7 mil anos) e Moraes (1 indivíduo com cerca de 5,8 mil anos).
As pesquisas nos sambaquis fluviais paulistas foram feitas pelo arqueólogo Levy Figuti, do MAE-USP. Segundo ele, “o artigo representa um grande avanço na pesquisa arqueológica, aumentando exponencialmente o que sabíamos há poucos anos sobre a arqueogenética do povoamento da América.”
Nem todos os restos humanos fósseis achados em alguns dos mais antigos sítios arqueológicos das Américas Central e do Sul pertencem a indivíduos geneticamente descendentes da cultura Clóvis. Há diversos sítios cujos habitantes não tinham DNA associado a Clóvis. Apesar disto, nestes mesmos sítios já foram desenterradas ferramentas de pedra lascada que carregam a assinatura característica da cultura Clóvis.
“Isto mostra que, muito além da contribuição genética, a primeira leva migratória para a América do Sul, e que era relacionada à Clóvis, também transmitiu a sua tecnologia a outros grupos humanos que aqui encontraram,” diz Strauss.
Um novo rosto para Luzia
Até hoje não se sabia quantas correntes migratórias humanas originárias da Ásia teriam adentrado as Américas no final da era do gelo, há mais de 16 mil anos. A teoria tradicional, formulada nos anos 1980 por Walter Neves e outros pesquisadores, dava conta de que teria havido uma primeira leva de humanos, cujos membros possuíam características africanas ou semelhantes aos aborígenes da Austrália.
Foi de acordo com essa hipótese que foi modelada a famosa reconstrução facial da Luzia, nome dado ao crânio de uma mulher que viveu em Lagoa Santa há 12.500 anos e, por isto, carinhosamente chamada de a primeira brasileira. O busto de Luzia com feições africanas foi composto a partir a morfologia de seu crânio, num trabalho realizado pelo especialista britânico Richard Neave na década de 1990.
“Entretanto, a forma do crânio não é um marcador confiável de ancestralidade ou de origem geográfica. A genética, por outro lado, é a técnica que se presta por excelência a esse tipo de inferência,” explica Strauss.
“Os resultados genéticos deste estudo mostram de forma categórica que não existiu nenhuma conexão entre as populações de Lagoa Santa e grupos da África ou da Austrália. Portanto, a hipótese de que o Povo de Luzia representaria uma leva migratória anterior aos ancestrais dos indígenas atuais não se confirma. Pelo contrário, o DNA mostra que o Povo de Luzia tem genética totalmente ameríndia.”
A reportagem procurou, sem sucesso, entrar em contato com o biólogo Walter Alves Neves, a fim de colher sua opinião sobre os resultados deste trabalho.
Mas se as feições de Luzia não são mais consideradas corretas, há um novo busto que veio substituir o de Luzia no panteão científico brasileiro. Caroline Wilkinson, pesquisadora da Liverpool John Moores University, na Inglaterra, especialista em reconstrução forense e discípula de Richard Neave, realizou a reconstrução facial de um dos indivíduos desenterrados na Lapa do Santo. O trabalho foi feito a partir do modelo digital do crânio.
“Por mais acostumados que estejamos com a tradicional reconstrução facial de Luzia, com traços fortemente africanos, essa nova reconstrução facial reflete de forma muito mais precisa a fisionomia dos primeiros habitantes do Brasil apresentando traços generalizados e indistintos a partir dos quais, ao longo dos milhares de anos, a grande diversidade Ameríndia se estabeleceu,” explica Strauss.
De acordo com o arqueólogo brasileiro, o estudo publicado na renomada revista científica Cell também apresenta os primeiros dados genéticos para os sambaquis da costa brasileira. “Esses monumentais montes de conchas foram construídos há cerca de dois mil anos por sociedades populosas que ocupavam a faixa costeira do Brasil. O estudo do DNA fóssil de enterramentos sambaquis de Santa Catarina e de São Paulo mostram que esses grupos têm uma relação de proximidade genética com os indígenas atuais do Sul do Brasil, especialmente os grupos Kaingang.”
Os primeiros restos humanos de Lagoa Santa, cerca de 30 esqueletos, foram encontrados em 1844 no fundo de uma gruta inundada pelo naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880). Quase todos estes fósseis se encontram hoje no Museu de História Natural de Copenhagen, na Dinamarca. Um único crânio ficou no Brasil, doado por Lund ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro.
Ao longo do século 20, outros fósseis foram coletados, entre eles o crânio de Luzia, nos anos 1970. Quase uma centena de crânios escavados por Neves e Strauss nos últimos 15 anos se encontram atualmente na Universidade de São Paulo. Outros tantos fósseis estão guardados na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Mas a grande maioria destas preciosidades osteológicas e arqueológicas, talvez mais de 100 indivíduos, estava depositada no Museu Nacional, e foi presumivelmente consumida no incêndio que devastou aquela instituição no dia 2 de setembro passado.
Luzia sobreviveu.
O crânio estava exposto no Museu Nacional ao lado do busto com suas feições feito por Neave. Temia-se que o crânio tivesse sido destruído no incêndio, mas felizmente foi uma das primeiras peças do museu recuperadas dos escombros. Mesmo que fragmentado, o crânio de Luzia sobreviveu.
Já o busto original (do qual há várias cópias), este se perdeu no fogo.
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“Uma possibilidade para o sumiço do DNA da primeira migração, encontrado no DNA do Povo de Lagoa Santa, é que este tenha se diluído em meio ao DNA dos ameríndios descendentes dos integrantes da segunda leva populacional, tornando-se assim não identificável através dos métodos atuais da pesquisa genética”.
Com o avanço das técnicas de análise, quem sabe futuramente será possível verificar se os atuais troncos linguísticos indígenas (Tupi e Macro-Jê), bem como as diversas famílias linguísticas (Aruak, Karib, etc…) refletem um gradiente de miscigenação genética dessas duas (ou mais) levas migratórias, por exemplo, os povos Jês tendo maior porcentagem de DNA da primeira leva, os Yanomami tendo a menor ou nenhuma, e por aí vai?
Mui interessante. A história ambiental das Américas passa pela história da sua ocupação humana.