Nesta terça-feira (31 de agosto), a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), instituída pela Lei 6.938 de 1981, completa 40 anos. Configurada no final do período da ditadura militar, mas considerada avançada àquela época, essa legislação pavimentou o caminho para a construção do Capítulo de Meio Ambiente da Constituição Federal de 1988, uma inovação no arcabouço legal brasileiro, com reconhecidas contribuições ao fortalecimento de outros marcos ambientais em cenários de redemocratização do país.
Para ambientalistas de longa trajetória, diante da atual conjuntura de riscos à agenda ambiental e à própria democracia, é preciso refletir sobre a necessidade de reconstrução do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama), base de sustentação do processo de implementação da PNMA que se encontra enfraquecida em tempos de esvaziamento do Ministério do Meio Ambiente (MMA).
“A 6.938 é uma lei estruturadora. Apesar de não ter sido construída com grandes debates, foi feliz no seu conjunto de diretrizes”, afirma Suely Araújo, especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima. Como ex-presidente do Ibama, dentre outras funções que tem exercido, ela tem acompanhado o processo de implementação da PNMA, marcado por avanços e também por percalços.
“Sendo do final do regime militar, essa lei foi marcada por um olhar tecnocrata, mas tinham especialistas no grupo de pessoas do governo”, observa. Isso contribuiu para a visão sistêmica da PNMA, que compartilha responsabilidades entre União, Estados e municípios, além de favorecer a participação social no processo de tomadas de decisão. Essa arquitetura institucional complexa, sem o devido suporte de recursos financeiros e humanos, tem gerado problemas na sua implementação e as lacunas existentes repercutem no Sisnama, formado pelas três esferas governamentais e por representações da sociedade civil, sob a coordenação do MMA.
Como parte dos avanços dessa política, Suely destaca o processo de licenciamento ambiental, obrigatório para atividades potencialmente poluidoras. Mas nesse contexto de muitas contradições, os municípios são os elos mais frágeis no que se refere à aplicabilidade da lei. “Há dificuldades de coordenação. Além disso, meio ambiente, historicamente, tem pouco dinheiro e pouca gente”, opina.
Outro grande avanço da PNMA, na visão da especialista, foi a instituição do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), cujo “histórico normativo é importante”. Ela recorda que no atual governo, esse colegiado formado por representações governamentais e não governamentais foi reduzido na sua composição, embora não tenha sido extinto. A perda de representatividade da sociedade civil repercutiu entre ambientalistas.
Além disso, menciona que os processos de criação do Ibama (em 1989), do próprio MMA (em 1992) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio (em 2007) têm respaldo na Lei 6.938.
“Nesse contexto histórico, houve também uma evolução normativa no Congresso”, avalia. Outras leis importantes, instituídas posteriormente, têm ampla interface com a PNMA. Dentre as quais, se destacam a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH, de 1997); o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC, de 2000); a Política Nacional de Biodiversidade (PNB, de 2002), a Lei de Florestas Públicas (de 2006), além da Política Nacional sobre Mudanças do Clima (PNMC, de 2009) e da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS, de 2010). “Mas ainda enfrentamos no Brasil problemas de aplicabilidade da PNMA e de outras leis ambientais”, reforça.
Apesar de todos os desafios existentes, resultados importantes foram alcançados com o fortalecimento institucional e legal nas últimas décadas no Brasil. Como exemplo, a especialista menciona que o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) reduziu em 83% o desmatamento da Amazônia entre 2004 e 2012, embora tenha perdido o protagonismo no atual cenário político nacional.
Esvaziamento administrativo do MMA é retrocesso
Para Suely Araújo, ainda que não tenha sido extinto, como desejado pelo atual governo brasileiro, o esvaziamento administrativo do MMA representa um grande retrocesso. “Vamos ter que reconstruir o que foi desmontado e vamos conseguir. O Ibama, por exemplo, é uma organização forte. Tem força suficiente para resistir ao governo Bolsonaro.” Ela opina, ainda, que será preciso retomar o Fundo Amazônia que está paralisado desde 2019 e tem R$ 3 bilhões já depositados.
No auge da crise climática, “o Brasil terá que se esforçar para sair do patamar de sexto maior emissor (de gases de efeito estufa)”, opina a especialista. Ela recorda os alertas do último relatório do IPCC deixando claro o cenário de gravidade. “Enquanto isso, a nossa NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada) em vez de melhorar, piorou. Ficou menos ambiciosa no Acordo de Paris”. Não por acaso reforça que ativistas jovens processaram o governo brasileiro por “pedalada climática”. “Temos que empreender mais esforços na linha climática, sobretudo, descarbonizando a economia”, defende.
No contexto de reconstrução, como principais desafios a enfrentar, a especialista considera que o Sisnama precisará de mais capacidade dos órgãos ambientais e melhor coordenação federativa. Além disso, será cada vez mais fundamental estabelecer conexões da área de recursos hídricos com outras agendas centrais como clima e biodiversidade, dentre outras. Nesse sentido, defende que a implementação da PNRH precisaria retornar à esfera do MMA de onde foi transferida para o Ministério do Desenvolvimento Regional.
“Não dá para ter legislação destruída. A nova composição do Congresso está pautando tudo. Tem que se impedir esse processo legislativo de desconstrução das leis instituídas nas últimas décadas.” A pauta “mais dolorida” se refere à tentativa de retirar direitos indígenas, por meio de propostas como as do PL-490-2007. Mas há também muito risco envolvido na tentativa de alteração das regras de licenciamento ambiental em tramitação.
Por fim, a especialista diz acreditar no papel de pressão dos financiadores internacionais no que se refere às exigências de manutenção das salvaguardas socioambientais. E como a participação social foi destruída no governo Bolsonaro, ela defende que mecanismos de interlocução precisam ser restabelecidos. “Temos que ter governança em rede”, conclui.
Clima e biodiversidade devem estar no centro das decisões, defende ambientalista
Como deputado federal por três mandatos consecutivos, entre 1986 e 1998, Fabio Feldmann contribuiu ativamente para a construção de inúmeras políticas ambientais brasileiras e para a elaboração do próprio Capítulo de Meio Ambiente da Constituição Federal de 1988. Atento ao cenário político nacional, ainda que já tenha se afastado da política partidária, o ambientalista e consultor considera que o atual momento é dramático, mas também pedagógico. “O governo Bolsonaro é uma lição. Ele nos colocou numa certa armadilha ao fragilizar as instituições como política deliberada. Dificuldades foram criadas para destruir agendas”, analisa.
Para Feldmann, a celebração dos 40 anos de instituição da PNMA representa um momento oportuno para uma reflexão profunda sobre o que tem acontecido com processo de implementação das políticas ambientais nacionais. “O Brasil poderia ter andado melhor nas políticas, em geral, e depois do governo Bolsonaro terá que repensar sobre tudo.” Independentemente de qualquer incerteza decorrente desse percurso, o ambientalista não tem dúvidas sobre as prioridades que precisam ser definidas: “É preciso colocar as agendas da biodiversidade e do clima no coração das decisões estratégicas do país”.
Para ser capaz de “virar a chave” em dez anos, Feldmann considera que o governo federal precisaria investir em fortalecimento institucional em escala nacional, no âmbito do Sisnama. Como alternativa para viabilizar essa demanda, sugere inclusive a possibilidade de se buscar empréstimo junto ao Banco Mundial e a outros financiadores. Segundo ele, isso contribuiria para a garantia de continuidade de implementação de políticas ambientais, após um período de inúmeros retrocessos.
Outra necessidade de avanço envolve o uso de inteligência artificial. “A Alemanha está usando drones em testes de poluição e controle de emissões. Isso exige capacitação qualificada e promove economia de recursos financeiros”, opina. “Pode servir também para monitoramento de lançamento de poluentes nos rios”, acrescenta. Além disso, para o ambientalista, “temos que resgatar a visão holística nesse momento em que o ambientalismo tem adquirido uma imagem tão negativa”.
Do ponto de vista dos avanços institucionais, Feldmann reconhece que a PNMA “tem mérito indiscutível”. “A ideia de Política Nacional é importante em um país desigual como o Brasil, onde existe uma grande diversidade de perfis municipais, desde os municípios mais robustos e ricos a outros sem estrutura.”
Como presidente da Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente (Abema), na década de 1990, Feldmann conta que acompanhou de perto a falta de capacidade institucional enfrentada por alguns Estados e municípios. “Defendo um papel proativo da União. É preciso financiar o Sisnama”. Segundo ele, a União normalmente delega obrigações para os Estados, mas não transfere recursos. “Teria que se repensar o Sisnama, já que a União se desonera e os Estados e municípios não têm capacidade. Isso gera estresse institucional”, opina.
Feldmann menciona avanços proporcionados após a instituição da PNMA, sobretudo, no que se refere ao fortalecimento do papel desempenhado pelo Ministério Público na defesa das salvaguardas socioambientais construídas nas últimas décadas.
Dentre outros marcos também destacados, ele mencionou a relevância da Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA, de 1999) e da Lei de Redução de Emissões de Poluentes por Veículos, de 1993, que ajudou a fortalecer o Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), nas quais contribuiu diretamente como parlamentar. Ressaltou, ainda, que a questão do controle da poluição atmosférica precisa ser aprimorada nos Estados, onde tem sido difícil o monitoramento, tendo em vista as suas interfaces com inúmeros problemas de saúde pública que tendem a se agravar em cenários de mudanças climáticas.
Para o ambientalista, outro grande desafio da atualidade envolve integrar a PNMA com demais políticas dirigidas a agendas estratégicas como a Política Nacional de Mudança do Clima. Mas conclui que falta liderança para deslanchar essa pauta que, por sua vez, tende a exigir cada vez mais protagonismo do governo federal. Embora o momento não seja favorável a esse debate na agenda governamental brasileira, ele considera que o país precisará avançar nessa direção futuramente.
O desafio de engajar a sociedade na agenda da conservação da natureza
Como motivo de celebração da PNMA, como marco que abriu caminho para inúmeras conquistas, a ambientalista Maria Tereza Jorge Pádua considera que o Brasil conseguiu construir, nas últimas décadas, uma legislação de conservação da natureza reconhecida como uma das melhores do mundo.
“A Lei do SNUC foi um grande avanço e continua sendo muito atual. O grande problema é conseguir avançar na sua implementação”, afirma a expoente da conservação da natureza que, nas últimas quatro décadas, se dedicou ativamente à criação de parques, reservas e outras unidades de conservação, sendo reconhecida internacionalmente pelas contribuições a essa agenda.
Para Maria Tereza, como um país de grande diversidade em termos de biomas e ecossistemas, o Brasil deveria ter um sistema de áreas protegidas bem implementado. “Mas não conseguimos avançar nesse sentido, principalmente porque faltam recursos financeiros e humanos”.
Como elemento complicador, embora muitas pesquisas indiquem que o país está gastando mal os seus recursos naturais, a ambientalista considera que “ainda não conseguimos passar para a sociedade, de forma mais ampla, a importância da existência de um sistema de áreas protegidas”. Para ela, ampliar essa visão dos brasileiros representa um desafio, sobretudo, em relação ao setor agropecuário, cujos embates com o movimento ambientalista têm sido frequentes no atual cenário político-institucional. Nesse sentido, destaca também o papel fundamental do jornalismo na difusão de informação qualificada para o público em geral sobre essa agenda estratégica.
A ambientalista ressalta que, embora o país tenha avançado em termos de instituição de áreas protegidas, com mais de 2 mil unidades de conservação existentes, das quais, mais de 70 parques nacionais, grande parte ainda não tem Plano de Manejo, zoneamento e estrutura para atender aos seus objetivos. “Na prática, não se consegue manejar essas áreas efetivamente. Até mesmo os Parques, categoria mais conhecida e de grande importância para o turismo e pesquisa científica, enfrentam dificuldades em termos de infraestrutura. No mundo inteiro os parques nacionais são bem desenvolvidos. Porque não conseguimos avançar nesse sentido?”, questiona.
O Parque Nacional do Iguaçu, com visitação expressiva e recursos financeiros para manejo, representa uma das exceções mencionadas pela ambientalista. Ao mesmo tempo, ela ressalta que parte do Parque Nacional do Pantanal Matogrossense foi queimada junto com outras áreas do bioma impactadas por incêndios no ano passado, sem que a opinião pública tenha se dado conta do que essa problemática representa no presente e no futuro.
Cenários de retrocessos inimagináveis para as UCs
“O retrocesso é inimaginável no processo de conservação da natureza no Brasil. A gente vê todo dia a circulação de notícias sobre tentativas de redução ou extinção de unidades de conservação. Estão deixando queimar UCs na Amazônia, no Pantanal, em outros biomas”, afirma a ambientalista. Para ela, é crucial que a sociedade possa compreender os riscos existentes e se engajar na cobrança por soluções.
Em contrapartida, muitos países estão preocupados com a crise climática, segundo Maria Tereza. Considerando que o desequilíbrio climático é um dos fatores de pressão para a biodiversidade global, ela acredita que essa temática deve ganhar mais espaço no âmbito da Décima Quinta Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP-15), cujo início das negociações está previsto para outubro, devendo ser concluído em maio de 2022, em reunião presencial na China. Essas são discussões desafiadoras para o Brasil.
“O Brasil deveria estar preocupado também pois já sofre as consequências das mudanças climáticas. Sabemos que enfrentamos problemas complexos, mas vamos precisar nos prevenir com unidades de conservação e leis realmente implementadas. Essa é uma estratégica crucial”, alerta a ambientalista.
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