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Publicado originalmente por Mongabay
O biólogo russo Kyrill Kravchenko é apontado por autoridades brasileiras como um traficante internacional de vida selvagem para a biopirataria (uso em pesquisas). É monitorado desde 2017. Em meados de janeiro deste ano, tentava embarcar para a Rússia no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, com mais de cem lagartos, aranhas e sapos na bagagem de mão. Os animais teriam sido capturados nas regiões Sudeste e Sul.
Já em junho, um homem identificado como “russo”, com outro lote de animais, foi apanhado na BR-116, em Seropédica (RJ). Agentes rodoviários não confirmaram se era Kravchenko, dado que não portava passaporte, mas informaram que o criminoso tivera o documento retido no início do ano. Semana passada, no dia 15, Kyrill Kravchenko foi preso em uma ação conjunta entre Ibama, Polícia Rodoviária Federal e Interpol.
A atuação repetitiva de bandidos estrangeiros e nativos faz do Brasil um dos líderes em apreensões de animais no transporte aéreo na América Latina e no Caribe. México e Colômbia compartilham esse pódio. Confiscos no setor representam mais de um quinto (22%) dos flagrantes ligados ao tráfico de fauna regional.
No Caribe e na América Latina, houve 281 apreensões no transporte aéreo entre 2010 e 2020. Os criminosos usaram terminais em 84 cidades, tentando alcançar 53 países no período.
“Traficantes movem bens ilícitos explorando agentes corruptos, baixa capacidade de fiscalização e outras fraquezas dos sistemas de transporte. O tráfico de animais selvagens no trânsito aéreo global está vinculado a mais de 150 países”, alerta Henry Peyronnin, do Centro de Estudos Avançados em Defesa (C4ADS, sigla em Inglês).
A C4ADS, baseada em Washington (Estados Unidos), maneja dados públicos da aviação civil global e contribuiu com o primeiro relatório da Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID) sobre rotas e métodos de ilícitos contra a fauna na América Latina e Caribe.
O estudo é parte do programa Routes (Reduzindo Oportunidades para o Transporte Ilegal de Espécies Ameaçadas de Extinção, em inglês), uma parceria entre órgãos de governo, empresas de logística e de transporte e ONGs ambientalistas como a Traffic e a WWF.
65 espécies são alvo do tráfico na região
A demanda por animais traficados nos 33 países latino-americanos e caribenhos é a segunda maior entre as regiões monitoradas pelo C4ADS, logo atrás da Ásia.
Os aeroportos de Manaus (AM) e São Paulo (SP), no Brasil, e da Cidade do México e Tijuana, no México, acumulam 38% (107) das apreensões na região. O terminal na colombiana Leticia, na fronteira com Brasil e Peru, acumula um terço dos confiscos no país vizinho, parte das rotas mundiais do tráfico de espécies desde a Amazônia.
A compra de mascotes exóticas infla os números dos delitos contra a fauna, enquanto o mercado doméstico brasileiro absorve a grande maioria dos animais nativos traficados. Sete em cada dez apreensões vinculadas ao Brasil tiveram origem no próprio país. As demais cargas rumavam à União Europeia e ao resto do continente americano.
“Faz sentido sermos uma grande fonte de tráfico. Somos um país megadiverso com fronteiras enormes sob baixa vigilância”, destaca Juliana Ferreira, diretora-executiva da Freeland Brasil, organização de combate ao comércio ilegal de animais silvestres. “Também há problemas graves quanto à rastreabilidade entre espécies ilegais e criadas em cativeiro, o que permite a ‘lavagem’ de animais traficados rumo aos mercados nacional e estrangeiro”, completou.
Segundo o relatório da USAID, 65 espécies foram registradas nas apreensões entre 2010 e 2020 na América Latina e no Caribe. O estudo igualmente aponta que bichos vivos viajam quase sempre na bagagem de mão, enquanto barbatanas de tubarões, bexigas de totoaba (peixe mexicano), peles e presas de onças e outras partes de animais são comumente despachadas.
Peixes e répteis resistem mais a longos voos em pequenos espaços. Todavia, as aves são as mais traficadas desde a América Latina e a Caribe, sobretudo para Brasil, Holanda, Alemanha e Estados Unidos. Em Nova York e outras cidades, pássaros vendidos ilegalmente são usados até em rinhas.
Alguns dos peixes mais procurados pelos bandidos são o peixe-zebra e o pirarucu. Exclusivo da Amazônia brasileira, o “zebrinha” viu seu valor disparar desde que a hidrelétrica de Belo Monte mudou o fluxo do Rio Xingu, no Pará, e aumentou o risco de sua extinção na natureza. Já o pirarucu, também amazônico, é buscado por sua carne, pele e escamas.
Transporte de animais vivos pode causar risco à saúde humana
O tráfico ameaça a sobrevivência de inúmeras espécies globalmente. Só a América Latina e o Caribe abrigam quatro em cada dez espécies conhecidas no planeta, mas suas populações de animais nativos caíram em média 94% desde os anos 1970, aponta o relatório Planeta Vivo 2020, da WWF. Desmatamento, caça e outras pressões pesam nessa conta.
Crimes ambientais ameaçam igualmente a saúde pública. Em tempos de pandemia, preocupa o balanço publicado no relatório da USAID de que 40% dos confiscos aeroportuários regionais foram de espécimes vivos que podiam transmitir doenças às pessoas. Investigações internacionais não descartam que a covid-19 tenha origem em animais selvagens.
Justamente tentando reduzir o tráfico e as chances de novas pandemias, um relatório da Proteção Mundial Animal lançado em maio listou inúmeras brechas legais e de fiscalização nos países do G20 (maiores economias globais) que pintam um amplo “quadro de permissividade à exploração da vida silvestre”.
“Embora o foco mundial permaneça na implantação da vacinação, a prevenção de vírus não pode ser ignorada, pois estima-se que mais de 320 mil vírus de mamíferos estão na iminência de serem descobertos. Não podemos mais ignorar os perigos do comércio de vida silvestre”, destaca Helena Pavese, diretora-executiva da entidade.
Reduzir a demanda de compradores, construir e manter bases de dados integradas entre países e suas regiões, ampliar a colaboração com empresas de transporte aéreo, capacitar e ampliar os quadros de agentes em aduanas e aeroportos engrossam a lista de recomendações para enfrentamento do tráfico.
“Algumas medidas podem não ser implantadas simplesmente porque o comércio ilegal de animais selvagens não é historicamente priorizado como um problema. Esperamos que nosso relatório forneça provas e amplie a relevância global do tema”, ressalta Henry Peyronnin, do C4ADS.
Responsáveis pela investigação e fiscalização sobre o tráfico de espécies no transporte aéreo nacional, a Polícia Federal e o Ibama ignoraram os pedidos de entrevista à Mongabay até o fechamento desta reportagem.
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