O processo de construção dos planos de manejo de sete unidades de conservação (UCs) municipais de Florianópolis, conduzido pela Prefeitura e uma empresa terceirizada, não assegura a ampla participação das comunidades tradicionais, com fortes interesses de setores econômicos especulativos, além de desrespeitar diretrizes estabelecidas pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). É o que denunciam representantes do movimento socioambiental da capital catarinense.
Assim, ao se elaborar planos de manejo frágeis que não assegurem a devida proteção às áreas demarcadas e às populações que nelas vivem e no entorno, o poder municipal acaba por deixar as UCs expostas à influência das indústrias da especulação imobiliária e do turismo, que estão entre os segmentos mais fortes da economia local. Muito mais do que a elaboração de planos de manejo, dizem os críticos, pode-se chegar a verdadeiros “planos de negócios” para as áreas protegidas.
“A questão é que eles querem fazer sete planos de manejo em um ano. É o absurdo dos absurdos. Fizeram um pregão para contratação da empresa, que tem dois técnicos apenas. O risco é que ofereçam como produto final um plano de negócios, e não um plano de manejo. Nas oficinas estão mapeando os limites, os problemas que temos hoje e vão trazer as soluções por fora, via iniciativa privada e concessões”, diz Flora Neves, presidente da Associação Coletivo UC da Ilha, entidade que integra o Fórum dos Conselhos de Unidades de Conservação Municipais de Florianópolis.
Em 16 de maio de 2022, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente lançou o pregão eletrônico 221, para a “elaboração do plano de manejo das unidades de conservação do município de Florianópolis”. A Geo Brasilis, de São Paulo, foi a vencedora ao apresentar proposta no valor de R$ 280 mil. O valor de referência da pasta era R$ 1,1 milhão. Conforme o edital, a empresa tem 300 dias para entrega e aprovação final dos planos de manejo das sete UCs.
Ao todo, a capital de Santa Catarina possui nove unidades de conservação municipais, o que corresponde a quase 20% de todas as unidades dentro de seus limites. A gestão delas é de responsabilidade da Fundação Municipal do Meio Ambiente de Florianópolis (Floram).
Com uma população estimada em 516 mil habitantes em 2021, segundo o IBGE, a ilha de Santa Catarina passa por um acelerado processo de inchaço populacional, o que resulta em aumento das pressões sobre as áreas urbanas e naturais. Entre os problemas mais comuns estão o aumento do despejo de esgoto e a produção de lixo.
Com extensão de 674 km2, Florianópolis é composta por uma diversa e complexa formação natural, coberta pela Mata Atlântica, possuindo manguezais, as áreas costeiras e de restingas (incluindo as dunas), morros, lagoas e lagunas.
A criação das unidades de conservação – municipais, estaduais e federais – foi a forma encontrada ao longo das últimas décadas de amenizar os impactos da expansão populacional e urbana de Florianópolis, além de garantir a preservação desses ambientes que oferecem inúmeros benefícios e serviços ecossistêmicos aos moradores. Elas asseguram o direito de existir de todos esses seres que co-habitam a Mata Atlântica local, um dos biomas brasileiros mais devastados ao longo dos séculos.
De olho no crescimento econômico de Florianópolis está o setor imobiliário, que tenta ampliar os negócios com a construção de novos e maiores empreendimentos. Em meio ao processo dos planos de manejo, a Prefeitura também conduz mudanças no plano diretor da cidade.
Uma das principais propostas é permitir a verticalização das construções, autorizando a construção de grandes edifícios ante as dificuldades de expansão por conta das características geográficas da ilha – formada por morros e dunas – além das próprias UCs que amortecem o crescimento imobiliário.
A elaboração dos planos de manejo passa a ser instrumento fundamental na redução dos danos. O documento é o responsável por definir as regras sobre os usos das potencialidades, bem como estabelecer o que pode e o não pode ser desenvolvido em cada uma das sete UCs, respeitando-se os aspectos ambientais e sociais.
E é em muitas delas onde ainda sobrevivem e resistem as comunidades tradicionais de Florianópolis, formada, em sua maioria, por pescadores artesanais. Os moradores nativos são as principais vítimas deste boom imobiliário especulativo, que os expulsa das áreas à beira-mar, as mais cobiçadas pelos novos e ricos residentes da ilha.
Para Rafael Freitag, presidente do Instituto Sócioambiental do Santinho, a forma como a construção dos planos de manejo é conduzida, acompanhada com bastante atenção pelo setor privado, tende a resultar numa “privatização” das sete unidades de conservação, por meio das chamadas parcerias-público-privada.
“A gente sabe que não se pode privatizar uma unidade de conservação, mas os usos dela e os serviços prestados, aí sim. A ideia deles é dizer, ok, já sabemos o que se pode fazer, tá feito os planos de manejo, vamos fazer de qualquer jeito”, diz Freitag.
O Instituto Socioambiental do Santinho tem como uma de suas zonas de atuação o Parque Natural Municipal Lagoa do Jacaré das Dunas do Santinho, localizado no norte da ilha, uma das regiões com a maior concentração populacional de Florianópolis – e ainda em expansão.
Ele defende que, ao invés de serem tocadas por empresas, a gestão de atividades como o turismo sejam conduzidas pelas próprias comunidades que vivem nas UCs e seus entornos. “Isso precisa ser prioridade, que a comunidade local exerça a gestão dos serviços públicos. Mas aí a ideia é passar a gestão para a construtora, que contrata a mão de obra local. Já se pensou em cobrar até a entrada em unidades de conservação aqui”, afirma.
Ativista ambiental dentro do Coletivo UC da Ilha, Fernanda Haskel também defende a governança com participação comunitária como um dos princípios para a gestão das UCs municipais. Ela afirma ver indisposição por parte da prefeitura em empoderar as comunidades tradicionais para que assumam esse protagonismo.
“Nós temos movimentos comunitários muito articulados, muito fortes, com o apoio da universidade. A gente construiu, em tempo recorde, um plano diretor alternativo, para as unidades de conservação é a mesma coisa, mas só que eles não escutam, não querem escutar. Esse lugar da governança está muito fragmentado na cidade e ele não tem, definitivamente, os interesses comunitários”, comenta Haskel.
“Toda a desestruturação pública é boa para o capital. Quanto maior for a desmontagem do serviço público, melhor é para esse grupo de pessoas que atua com o capital. A desestruturação da Prefeitura é parte do jogo. A falta de participação comunitária é projeto. Eles aplicam nas discussões do plano diretor e dos planos de manejo. É o mesmo projeto.”, completa Esdras Pio Antunes, integrante da ONG Costa Legal. A entidade representa a região da Costa da Lagoa, no leste da ilha.
Para os representantes do movimento ambiental, a forma como a realização das oficinas é divulgada acaba por resultar no baixo envolvimento comunitário no processo. Em alguns casos, dizem eles, a presença de funcionários da prefeitura ou de empresas interessadas é maior que da sociedade civil, criando uma desproporcionalidade.
A participação equilibrada dos setores impactados é um dos princípios estabelecidos pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Outra presença comum nos encontros é de pessoas que se apresentam como proprietárias de áreas no interior das UCs, e reivindicam a desafetação delas.
Segundo Flora Neves, o chamado para as oficinas públicas fica restrito à divulgação nas redes sociais e site da prefeitura, ferramentas inacessíveis a pescadores artesanais, por exemplo. Além disso, a quantidade e a duração dos encontros – em média de quatro horas – resulta em menos oportunidades de discussões e envolvimento social.
Entre dezembro e fevereiro, já foram realizados dois ciclos de oficinas para cada uma das sete. Segundo o edital de concorrência, cada UC contará com cinco oficinas. Outro problema apontado é que, das sete UCs, quatro nem mesmo possuem seus conselhos consultivos compostos.
De acordo com Flora Neves, do Coletivo UC da Ilha, caso os problemas identificados persistam, o Ministério Público pode ser acionado para que intervenha e, assim, exija o cumprimento de normas definidas pelo SNUC. Uma carta apontando todas as problemáticas já foi enviada à promotoria de Meio Ambiente, que até o momento não se manifestou.
“Nós já chamamos o Ministério Público para participar deste processo, visto que a gente entende que eles [prefeitura e empresa] não estão sendo construídos conforme a lei do SNUC. Não estão sendo respeitadas várias diretrizes e metodologias do SNUC, assim como entendemos que a discussão do Plano Diretor não segue o Estatuto da Cidade. Está tudo muito parecido neste processo de patrolaço”, ressalta Neves.
A importância estratégica das UCs de Floripa
Ao todo, 27,19% do território de Florianópolis tem sua proteção ambiental garantida pelas unidades de conservação. As municipais representam a maior parte da fatia: 18,71%. Em seguida vêm as estaduais (4,36%) e as federais (3,81%). Todas elas exercem funções ecossistêmicas essenciais, assim como mantêm preservadas paisagens naturais que fazem a capital de Santa Catarina ser chamada de a “ilha da magia”.
Para Flora Neves, todavia, a função mais importante das UCs é a proteção das bacias hidrográficas que asseguram o fornecimento de água potável. A regulação climática, o equilíbrio ecológico e a manutenção da biodiversidade estão entre outros aspectos. A preservação das áreas costeiras e restingas são outras funções exercidas por esse cinturão verde dentro da ilha de Santa Catarina.
“A questão da manutenção do modo de vida das comunidades tradicionais que ainda resistem em Florianópolis depende exclusivamente destes territórios naturais protegidos”, diz Neves. “Essas áreas protegidas são essenciais para garantir o real equilíbrio da relação dos moradores da ilha com a sua natureza”, complementa Rafael Freitag.
O que diz a Prefeitura
Procurada pela reportagem de ((o)) eco, a Prefeitura de Florianópolis afirmou que “está realizando uma série de oficinas públicas, com ampla divulgação”. A instituição afirmou ter convidado “toda a comunidade e instituições públicas, privadas e da sociedade civil para participarem do processo de elaboração dos planos de manejo de sete unidades de conservação municipais, através das oficinas participativas”.
Sobre os prazos criticados, tanto para a conclusão dos trabalhos (300 dias) bem como das oficinas, a Prefeitura disse que o “cronograma é adequado à elaboração dos Planos de Manejo, processo que vem contando inclusive com a participação ativa dos técnicos do Departamento de Unidades de Conservação (DEPUC), da Floram.
Segundo a assessoria, caso seja avaliada a necessidade de prorrogação dos prazos, a proposta será analisada pelo município, “assegurando que os Planos de Manejo sejam efetivos e de fato assegurem a proteção ambiental destas UCs, bem como o modo de vida tradicional das comunidades que nelas vivem ou no seu entorno”
Quanto a possíveis interferências ou interesses de setores econômicos especulativos no processo, a Prefeitura negou qualquer ingerência neste sentido. “Toda a comunidade e instituições públicas, privadas e da sociedade civil podem participar do processo de elaboração dos Planos de Manejo. A execução do contrato com a empresa responsável e contratada via processo licitatório regular é acompanhada diretamente pela SMMA e Floram”, encerrou.
UCs com planos de manejo em construção
Parque Natural Municipal Lagoa do Jacaré das Dunas do Santinho
Refúgio de Vida Silvestre Municipal Meiembipe
Parque Natural Municipal da Lagoinha do Leste
Monumento Natural Municipal da Lagoa do Peri
Parque Natural Municipal das Dunas da Lagoa da Conceição
Parque Natural Municipal do Maciço da Costeira
Monumento Natural Municipal da Galheta
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