Reportagens

Divulgadores da Ciência: uma conversa sobre cobras

((o))eco conversou com o pesquisador Rafael de Fraga sobre a importância da divulgação científica e sobre os riscos de ter uma cobra como animal de estimação

Duda Menegassi ·
20 de julho de 2020 · 4 anos atrás
A cobra Periquitamboia (Corallus caninus), serpentes causam medo e fascínio há milênios na humanidade. Foto: Divulgação/NatGeo

As cobras se multiplicaram nas manchetes nas últimas semanas. Desde o caso da Naja que mordeu um estudante, suspeito de tráfico ilegal de animais silvestres, e que desencadeou diversas denúncias e entregas voluntárias de cobras mantidas em cativeiros irregulares. Uma serpente é um animal que causa fascínio e medo, e enquanto há aqueles que burlam a legislação ambiental para obter e criar cobras como a Naja, outros matam cobras movidos por um temor irracional. No meio dessa equação, talvez o que mais falte seja conhecimento sobre elas, sobre os riscos de ter uma dessas em casa e sobre a importância delas no ambiente natural.

O herpetólogo Rafael de Fraga, conhecido pelos amigos como Rato, trabalha há 18 anos com cobras. Toda a bagagem acadêmica do pesquisador, que atualmente é colaborador do Laboratório de Ecologia e Comportamento Animal da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), serviu de motor para um programa de TV sobre serpentes, o “Em Busca das Cobras”, que faz com o amigo e também pesquisador, Vinicius de Carvalho, o Vini. Na série, que estreou na National Geographic em março deste ano, Rato e Vini percorrem diferentes lugares do Brasil atrás de serpentes e também atrás de ciência.

No começo do especial “Divulgadores da Ciência”, ((o))eco conversou com o pesquisador sobre divulgação científica, o manuseio de serpentes para as filmagens do programa e os riscos ecológicos de ter cobras como animal doméstico. Confira a entrevista:

((o))eco: Você e Vini levaram as cobras brasileiras para uma série de televisão. Qual o papel da série para divulgação científica sobre esses animais?

Rato: Uma das principais coisas que me motivaram a participar desse projeto era justamente a possibilidade de popularizar a ciência e a biodiversidade. Tanto eu quanto o Vini temos uma carreira acadêmica, mestrado, doutorado, dezenas de artigos científicos publicados em revistas acadêmicas, mas esses artigos científicos têm distribuição super restrita. São publicados em inglês, em revistas que ninguém de fora da academia lê, com linguagem técnica, estatística, gráficos complicados. E eu fiquei pensando, estou fazendo ciência para quem? E me vi nessa necessidade de tentar diminuir um pouco esse abismo gigantesco que existe entre a academia e a não academia. Todo esse negacionismo que vemos hoje é em parte por culpa disso, pelas pessoas nunca terem desenvolvido uma confiança na ciência, por não saberem o que os cientistas fazem de fato. Essa série foi uma grande oportunidade para criar algo mais popular e mais acessível para as pessoas não acadêmicas. Basicamente o que eu e o Vini fazemos é pegar os estudos científicos e traduzí-los numa linguagem mais acessível para que as pessoas possam não só ver os bichos – o que é muito legal –, mas ir além e mostrar as questões que movem um cientista da biodiversidade. Que tipo de curiosidade move um cientista que estuda cobras, natureza, e para que serve isso? Como esse conhecimento que a gente constrói dentro das universidades pode ser aplicado, por exemplo, na conservação da biodiversidade? Essa série foi uma grande oportunidade para isso.

Tem sido também uma chance de divulgar essas reservas [unidades de conservação], a beleza cênica, as florestas e a importância de preservar esses lugares. É uma oportunidade que a gente teve com a série de divulgar não só as cobras, mas a biodiversidade. E mostrar que a gente precisa dessas reservas. Tem um episódio na Flona do Tapajós que a gente fala sobre isso enquanto a gente admira uma samaúma gigantesca e comentamos sobre como é triste o desmatamento, por exemplo. Claro que é uma coisa muito pontual, mas de alguma forma acho que estamos contribuindo para criar algum tipo de consciência ambiental nas pessoas também.

O pesquisador Rafael de Fraga, mais conhecido como Rato, durante as filmagens do programa. Foto: Henrique Mourão

Tem muita gente que critica essa coisa de pegar as serpentes, manusear bichos para entretenimento, como você responde isso?

A gente sabe que tem críticas por estar no mato mexendo com os bichos. Até antes da série estrear muitas pessoas postaram na Internet um monte de críticas horríveis. Curiosamente depois que a série estreou nunca mais teve isso. Por enquanto só elogios, ainda bem. Mas o que a gente faz na série não é nada diferente do que a gente faz como cientistas. Cientista que estuda fauna silvestre vai pro mato atrás dos bichos para coletar dados. É assim que o conhecimento é construído. E nós fazemos tudo dentro da lei, estamos sempre em dia com o Conselho de Biologia, temos as licenças do ICMBio para capturar os bichos, antes de entrar numa reserva para filmar, nós pedimos autorização pros gestores. E claro, para emissão dessas licenças ambientais de captura precisamos respeitar um protocolo de ética, não maltratar os bichos e tal. Claro que com a nossa experiência – eu com 18 anos na área, o Vini com 20 e poucos – já temos uma certa habilidade para manusear os bichos em segurança, tanto a nossa quanto a dos bichos. Nós fazemos tudo certinho dentro dos padrões de ética, não só para evitar críticas, mas porque a gente é assim, antes de tudo somos profissionais da biologia, cientistas, e nós temos parâmetros éticos bem definidos que procuramos seguir sempre.

A série estreou em março, como tem sido esse retorno das pessoas?

Tem sido maravilhoso. A gente recebe mensagens de pessoas elogiando, dizendo que estão adorando a série, que a série é diferente do que geralmente se faz com animais, justamente porque a gente não vai só atrás dos bichos, a gente cria um contexto científico simulado com experimentos. A gente não pode utilizar esses experimentos que a gente faz para produzir ciência porque a gente não tem repetições, mas pelo menos a gente mostra como os cientistas pensam e agem para estudo da biodiversidade. E em alguns casos estamos contribuindo de fato para ciência, como no caso, por exemplo, das duas espécies desconhecidas que a gente encontrou enquanto filmava os episódios.

“E em alguns casos estamos contribuindo de fato para ciência, como no caso, por exemplo, das duas espécies desconhecidas que a gente encontrou enquanto filmava os episódios.”

Além disso, o retorno da criançada tem sido fantástico. Nós recebemos alguns desenhos, as crianças desenham uma cobra e mandam para gente, recebemos vídeos. Tem até um garotinho de 6 anos que brinca de “Em Busca das Cobras”, ele pega uma mochilinha, os equipamentos de pesquisa de brinquedo, os bichinhos de pelúcia e vai lá, fica imitando a gente. É uma coisa incrível que me deixa até emocionado. Porque eu nunca tinha pensado que a gente pudesse atingir esse público infantil.

Os experimentos realizados na série têm um caráter lúdico, mas algum deles te surpreendeu?

Na verdade todos os experimentos me impressionaram muito. Eu trabalho como ecólogo, estudo padrões de diversidade, para saber como as espécies estão distribuídas no espaço em relação a variantes ambientais: clima, tipo de vegetação, etc. Esse tipo de biologia mais experimental sobre o comportamento dos bichos eu nunca tinha feito. Então para mim foi tudo muito surpreendente. E muitas das coisas que a gente fez são inéditas. Por exemplo, a gente tem um experimento de equilíbrio com uma cobra muito fininha que a gente sabe que tem uma capacidade enorme de equilíbrio porque ela caça lagartinhos lá na ponta dos galhinhos mais finos. E descobrimos que esse bicho tem tanto equilíbrio que ele é capaz de se deslocar por um fio de náilon. É muito impressionante e são coisas que não são muito exploradas pela ciência. Ainda que preliminarmente, a gente acabou gerando informações inéditas e interessantíssimas sobre os bichos.

Recentemente houve o caso da Naja, que desencadeou toda uma visibilidade para essa questão do tráfico ilegal de animais silvestres e para cativeiros e criadouros ilegais. Quão comum você acredita que é esse comércio e o que você acha que motiva esse fascínio nas pessoas em quererem ter cobras?

Já me ofereceram bichos e já fiz algumas denúncias inclusive de grupos de internet e de pessoas que me ofereceram cobras. O tráfico de animais é um problema conhecido de longa data, todo mundo sabe que acontece e acontece às claras. Muitas vezes com casos como esse da Naja, o debate sobre o tráfico se reacende, mas depois esfria, fica por isso mesmo e o tráfico continua. A gente não sabe quanto dinheiro esse mercado ilegal movimenta. Existem dados sobre a indústria pet legal na América do Norte, onde nós sabemos que centenas de milhares de dólares são movimentados todos os anos, mas em relação ao mercado ilegal é difícil de saber porque não existem dados. Mas imagino que um animal exótico e emblemático como uma Naja deve ser caríssimo. Isso acaba acendendo um outro patamar desse debate que é o fato de existir, provavelmente, uma estruturação social na manutenção desse tipo de comércio ilegal.

A Naja, epicentro da discussão sobre o tráfico de animais silvestres no Brasil. Foto: Ivan Mattos/Zoo Brasília

Essa relação entre pessoas e cobras é muito antiga. Há milhares de anos, povos espacialmente e temporalmente isolados, desenvolveram lendas e crenças parecidas com relação às cobras justamente porque elas causam um certo tipo de fascínio nas pessoas. Imagino que uma pessoa tenha muita vontade de ter uma cobra como pet por conta desse fascínio natural. Você pode querer ter uma jiboia simplesmente porque ela é linda, mas no caso de uma Naja acho que tem mais a ver com querer ser “o cara”, acho que tem uma coisa de status social de querer aparecer, mostrar que tem uma vida muito interessante, o que é estúpido se a gente parar para pensar, porque a pessoa está se colocando em risco para ter uma foto maneira no Facebook.

Em especial sobre cobras, como você vê esse movimento de pessoas que querem ter uma cobra como pet, ou seja, como “animal doméstico”?

Eu sinceramente não enxergo com muitos bons olhos porque existe um perigo enorme em potencial nessa história. No caso da Naja, claro, o perigo imediato é de uma pessoa aparentemente sem experiência para manusear uma cobra peçonhenta tenha risco de um acidente, mas pensando mais globalmente, o risco de cobras pet é que existem precedentes nos quais as pessoas, em dado momento, enjoaram da cobra. Porque é um bicho que não interage muito com as pessoas, você não vai chegar em casa e a cobra vai estar abanando o rabinho lá. Ou então cresce demais, enfim, e a pessoa acaba soltando o bicho, achando que está fazendo um bem para natureza. O problema de soltar um bicho na natureza, principalmente quando ele não faz parte da fauna nativa, é que isso pode causar problemas ecológicos gravíssimos. No caso de uma Naja que é um bicho de outro continente isso é ainda mais terrível, pode introduzir um monte de doenças, pode competir com as espécies nativas por comida e espaço. Mas a gente pode pensar esse problema também em termos de diferentes ecossistemas que existem aqui mesmo no Brasil. Se você pegar um bicho que só existe na Amazônia e soltar na Mata Atlântica, potencialmente os problemas ecológicos podem ser tão graves quanto se fosse um bicho da Ásia.

“Se você pegar um bicho que só existe na Amazônia e soltar na Mata Atlântica, potencialmente os problemas ecológicos podem ser tão graves quanto se fosse um bicho da Ásia.”

Existem muitos casos bem documentados de problemas ecológicos gravíssimos causados pela introdução de cobras como por exemplo a extinção local de aves, de lagartos, de sapos, e alguns casos até de prejuízos materiais, porque as cobras se enroscam nos equipamentos de distribuição de energia elétrica e quebram eles. Tem o caso das pítons [ birmanesas, de origem asiática] na Flórida, onde elas estão causando um estrago ecológico. As pítons provavelmente são as cobras mais procuradas pela indústria pet porque elas costumam ficar relativamente dóceis em cativeiro, mas é um bicho gigantesco. São parecidas com a jibóia: grandes, musculosas e constritoras. E pessoas que tinham pítons como pet soltaram eles na natureza, os bichos começaram a reproduzir e uma população enorme se estabeleceu – de uma forma tão eficiente que é muito difícil controlar agora. O governo até paga pessoas que matam pítons, o que além de ser uma prática moralmente questionável, ainda é super ineficiente, mas eles não sabem o que fazer. É um bicho enorme que come tudo que vê pela frente e está causando problemas ecológicos gravíssimos. O fato de ser um predador é particularmente crítico porque quando você altera as cadeias tróficas de alimentação no nível do predador, todos os outros níveis são afetados. É muito esperado, por exemplo, que a presença das pítons esteja causando mudanças na vegetação nativa desses lugares. São os chamados efeitos cascata: você altera uma coisa naquele ecossistema e todos os outros níveis são de alguma forma afetados em consequência.

Acho legal as pessoas gostarem de cobra, quererem ter uma como bicho de estimação, mas que pelo menos houvesse algum sistema eficiente de fiscalização e também para garantir que essas pessoas não vão soltar esses bichos na natureza. Melhor doar para uma universidade, para um zoológico, devolver pro vendedor, alguma coisa assim, mas jamais soltar na natureza. Talvez exista um problema de falta de informação porque a pessoa acha que está fazendo um bem, “olha tô dando liberdade para esse animalzinho, ele vai voltar para floresta e vai ser feliz”, mas não, na verdade você pode estar criando uma tragédia ambiental.

No rastro da Naja, uma cobra-do-milho foi apreendida no Distrito Federal. Foto: Needpix

E se o bicho não for microchipado, não for documentado nas agências ambientais, é crime ambiental. Você não pode pegar uma cobra da natureza e botar numa aquário na sua casa sem uma licença do ICMBio ou do Ibama para isso. Eu não julgo ninguém por querer ter uma cobra como pet, mas eu julgo se essa cobra for ilegal.

Com relação ao bem-estar das cobras dentro de cativeiro domiciliar, pode ser danoso para as cobras estar em um ambiente que não é o natural?

Sim, sem dúvida. Não tanto em relação ao espaço porque são animais com metabolismo relativamente lento e geralmente conseguem sobreviver em um espaço pequeno. Nos laboratórios que produzem soro antiofídico, por exemplo, eles mantém cobras vivas em bandejas, em gavetas de armário. Muito mais importante do que o espaço seja talvez a manutenção dos recintos, manter sempre limpo, tomar muito cuidado com o tipo de alimento que oferece para cobra, com a assepsia do substrato, porque se não houver essa manutenção pode ter a proliferação de fungos e parasitas que podem causar danos à saúde das cobras. Uma outra coisa que eu também não acho muito legal é que às vezes criadores de cobra têm alguma dificuldade para alimentar os bichos, simplesmente porque o bicho não aceita comida em cativeiro, não se sabe muito bem porquê, e aí existe uma prática de induzir a alimentação forçada. Se isso tem algum propósito científico ou medicinal para produção de soro, eu entendo, mas no caso de pet eu acho questionável.

Divulgadores da Ciência é uma série de ((o))eco dedicada a conversar com especialistas sobre temas relacionados à biodiversidade brasileira e à conservação da natureza para destrinchar de forma acessível esses assuntos.

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  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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