Reportagens

É hora de preservar os afluentes para repovoar o Rio Doce, diz biólogo

Segundo João Luiz Gasparini, ainda não se pode dizer se o rio Doce será afetado para sempre, mas sugere que a pesca seja suspensa nos rios da bacia

Fábio Pellegrini ·
1 de dezembro de 2015 · 9 anos atrás
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O biólogo Gasparini. Foto: Flávia Martinelli.

No dia 15 de novembro, o biólogo João Luiz Gasparini saiu de Vitória, onde mora, até o município de Baixo Guandu, na divisa com Minas Gerais, com uma missão: orientar pescadores e populares que formaram um grupo para capturar peixes do rio Doce antes da chegada da onda de rejeitos de minérios que vinha causando morte rio acima, devido ao rompimento da barragem da Samarco em Mariana (MG).

A intenção dos populares era salvar uma amostra do que sobrou dos estoques pesqueiros. A convite da Superintendência do Ibama em Espírito Santo,  Gasparini orientou as pessoas a identificarem espécies nativas, e também quanto à legislação ambiental.

Em entrevista a ((o))eco, Gasparini fala que o estrago maior para a vida do rio foi na região de cabeceira, em Minas Gerais, pois no baixo Doce, no Espírito Santo, os efeitos da chegada da onda de rejeitos de minérios foram mais brandos. E quanto aos seus efeitos no oceano, ele afirma que ainda é cedo para opinar: “Não há o que fazer agora a não ser pesquisar e monitorar tudo, multidisciplinarmente. Atuar sem achismos, de maneira científica, clara e honesta”.

Biólogo graduado pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), ele é pesquisador de História Natural, Ecologia, Biogeografia e Taxonomia de peixes. Também atua como consultor.

Leia a entrevista:

((o)) eco: É possível uma recuperação do rio Doce? Como isso se daria? Quanto tempo a ictiofauna levará para repovoá-lo?

João Luiz Gasparini: Na bacia do rio Doce existem 12 espécies endêmicas, ou seja, ocorrem exclusivamente nela. Há espécies novas ainda não descritas, e também necessidade de revisões taxonômicas para alguns grupos de espécies mais complexos. Esse número deve alcançar algo entre 18 e 20 espécies. Até o momento não são conhecidas espécies com distribuição restrita à calha do rio Doce. Algumas espécies, notadamente as de maior tamanho (como o surubim-do-Doce e a piabanha-do-Doce), são características da calha, mas também ocorrem em afluentes de maior porte.

O rio Doce, entendido aqui como a calha central que foi afetada, voltará a ser colonizado pela fauna que ocorria pré-acidente. Os afluentes representarão as áreas doadoras de onde será iniciada a recolonização da calha principal. Isso deverá ser mais importante nas regiões mais próximas do local do acidente, onde a fauna de peixes foi severamente afetada, quase aniquilada. Entretanto, todos os afluentes devem ser encarados como importantes, e isso independente de tamanho e diversidade de espécies que abrigam hoje.

Em função das proximidades da barragem que rompeu, vale destacar primeiramente os rios Gualaxo do Sul e Piranga. Na região do médio rio Doce, destacam-se os rios Santo Antônio, Suaçui Pequeno e Suaçui Grande. Mas todos os afluentes não afetados serão importantes nesse processo, devendo ser priorizados nas etapas que devem se seguir ao acidente, ou seja, no monitoramento, fiscalização e recuperação.

Como essa tragédia ambiental da Samarco foi recebida pela comunidade científica do Espírito Santo?

Com perplexidade total. Ninguém, por mais bem informado que fosse, jamais pensou ou aventou a possibilidade que uma tragédia dessa magnitude pudesse ocorrer. Uma imensa barragem de rejeitos localizada na cabeceira de um dos formadores do rio Doce, em MG, pudesse romper e o material nela armazenado escoar por centenas de quilômetros e chegar até o oceano. O total desconhecimento das consequências criou grande perplexidade, ansiedade, ações e inúmeras previsões, algumas fundamentadas e outras completamente sem sentido. Decorridos quase trinta dias do evento, o panorama ambiental começa a se aclarar. Entretanto, ainda levaremos tempo para entender tudo o que se passou.

O fato acabou por evidenciar um problema mais amplo e complexo. Agora, lendo reportagens referentes a outras barragens de rejeitos em diversos estados do Brasil, surgem informações que algumas delas estão em situação delicada, com alto risco. Isso permite deduzir que outros rios e ecossistemas inteiros estão vulneráveis e nem fazíamos ideia.

Como você analisa iniciativas como a “Operação Arca de Noé”, em que populares tentavam salvar peixes do rio Doce?

“Muita gente com coração puro e com vontade de ajudar mas sem uma coordenação com conhecimento técnico-científico e da legislação ambiental. Acabaram atropelando o bom senso, coletando sem autorização, sem critério e soltando em lagoa adjacente ao rio Doce e em outros espelhos d’água naturais.”

Foi um “estouro de boiada” no primeiro instante. Muita gente com coração puro e com vontade de ajudar, mas sem uma coordenação com conhecimento técnico-científico e da legislação ambiental. Acabaram atropelando o bom senso, coletando sem autorização, sem critério e soltando em lagoa adjacente ao rio Doce e em outros espelhos d’água naturais. Isso mostra que nem sempre as boas intenções são as corretas. Mas após algumas diretrizes alinhadas com o IBAMA, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o Instituto Estadual de Meio Ambiente do Espírito Santo (IEMA) e prefeituras, houve uma adequação na metodologia e apenas peixes nativos e/ou ameaçados foram coletados e mantidos em tanques de aquicultura ou açudes isolados para posterior envio ao Centro de Pesquisa e Conservação de Recursos Pesqueiros Continentais (CEPTA) de Pirassununga (SP), detentor de grande expertise na reprodução e manutenção de peixes em cativeiro.

O desespero se deu como resposta às filmagens da mortandade em massa observadas em Governador Valadares e outras localidades do médio e do alto rio Doce.

Uma das maiores preocupações dos cientistas era a chegada dos sedimentos no mar. Agora que isso ocorreu, quais os impactos sobre a vida marinha na região afetada?

Sem sombra de dúvidas a pior magnitude ocorreu nas proximidades da cidade de Mariana e no alto rio Doce, onde o rio corre veloz e encaixado em vales profundos. Nestas áreas a lama muito densa desceu arrastando e arrasando tudo em seu caminho, não sobrou nada. O cenário foi de uma verdadeira terra arrasada.

No médio e no baixo Doce os impactos foram se abrandando, mas continuaram com magnitudes altas.

Quanto à vida marinha, ninguém sabe ao certo. A falta de dados cruciais deixa tudo ainda difícil de mensurar. Mas uma coisa é certa – não podemos ter uma visão simplista e despreocupada, tampouco uma visão totalmente pessimista, apocalíptica. O problema é imenso e todos os impactos devem ser considerados. Se os rejeitos forem tóxicos e acumularem na biota, podemos ter impactos diversos tanto ambientais como socioeconômicos. A pesca tradicional poderá ser afetada por muito tempo, tanto no rio, nos afluentes, como na foz e em uma boa porção marinha adjacente.  

Há risco para as unidades de conservação (UCs) marinhas como o Parque Nacional de Abrolhos?

Com certeza há para as UCs do Espírito Santo, principalmente a REBIO Comboios, situada na Foz do rio Doce – onde as tartarugas-de-couro (Dermochelys coriacea) realizam suas desovas. Praticamente é a única localidade do país onde ocorre a desova dessa espécie ameaçada de extinção.

O Refúgio de Vida Silvestre (REVIS) de Santa Cruz e a Área de Proteção Ambiental (APA) Costa das Algas, situados poucos quilômetros ao sul da Foz do Doce, também estão em risco.

O Parque Nacional de Abrolhos, situado ao norte, pode receber essa lama de rejeitos, não agora, mas a medida que os sedimentos forem sendo retrabalhados ao longo dos anos, após sucessivos eventos de cheia do Doce e de outros rios da região, e após mudanças de ventos e correntes. Podem chegar lá, sim. Não sabemos como esse “talco” de sedimentos de rejeitos pode afetar corais e algas. Será necessário pesquisar e monitorar.

Barreiras flutuantes colocadas na foz do Doce como medida emergencial por parte da Samarco não surtiram efeito, observa o biólogo. Foto: Foto: João Luiz Gasparini.
Barreiras flutuantes colocadas na foz do Doce como medida emergencial por parte da Samarco não surtiram efeito, observa o biólogo. Foto: Foto: João Luiz Gasparini.

As barreiras flutuantes fariam alguma diferença ao impedir a disseminação da pluma no mar?

Vale frisar que a Samarco foi obrigada a adotar uma solução imediata e numa tentativa desesperada de mostrar alguma ação, lançou mão do que conseguiu em meio ao seu despreparo e a sua limitação de tempo. Acabou soando como um misancene (mise-em-scéne) patético. Ainda mais que a empresa afirmou que as barreiras flutuantes fizeram diferença, sim, no que tange à turbidez da água, mas não foi o que observamos in loco. Impossível conter uma massa liquefeita com barreiras flutuantes, isso era óbvio até para os mais inocentes.

A única coisa boa de terem adotado essa medida foi que acabou gerando a contratação imediata de cerca de 40 pescadores locais sem pescar há quatro meses por conta da seca extrema no rio Doce.

Onde os esforços deverão ser concentrados na tentativa de minimizar esses prejuízos?

“Não há o que fazer agora a não ser pesquisar e monitorar tudo, multidisciplinarmente. Atuar sem achismos, de maneira científica, clara e honesta.”

Uma sugestão pessoal é que a pesca seja suspensa em todo o rio, nos principais afluentes (para salvaguardar os poucos peixes que restaram como possíveis matrizes que deverão repovoar o rio) e no mar, no entorno da foz (também para proteger os consumidores pois pouco sabemos dos efeitos de bio-acumulação desses rejeitos (nos pescados, por exemplo). Devemos realizar monitoramento químico dos pescados, principalmente das espécies bentônicas – mais expostas ao fundo –, onde os elementos químicos se depositam.

Outro ponto interessante de mencionar é que seja estabelecida desde já a proibição de projetos de peixamento. Geralmente políticos e proprietários rurais desinformados adoram comprar alevinos e soltar nos corpos d´água para incrementar a pesca. Neste momento espécies exóticas de todos os cantos do mundo aparecem e podem impactar ainda mais as espécies nativas.

Quais cenários se desenham diante do que aconteceu até então, a longo prazo?

Há ainda muito sedimento descendo o rio, e deverá chegar ao mar. Informações (não oficiais, mais uma vez) descrevem que, a montante de Governador Valadares, existe mais sedimento denso descendo em função das chuvas. Se isso se concretizar, os impactos vão continuar acontecendo.

Acredito também que os impactos sociais estão subestimados; se a situação continuar assim por mais tempo, os conflitos vão se intensificar. Saques, manifestações cada vez mais intensas, exacerbadas pelos oportunistas de plantão.

Vão ocorrer perdas econômicas significativas, vai aumentar o desemprego em cascata num país já em crise. Acho que o governo deveria encarar este problema como um caso não só de calamidade, mas também como sendo de segurança nacional. Em Colatina, por conta do desabastecimento de água potável, já  ocorreram manifestações e enfrentamentos.

Difícil prever os impactos na biota com tantas peças faltando neste quebra-cabeça. Primeiramente precisamos saber as concentrações e o comportamento da química desses rejeitos que estão presentes nos sedimentos e todos os efeitos nocivos dos elementos químicos, principalmente dos supostos metais pesados presentes nos rejeitos. E se realmente houver elementos químicos com propriedades cumulativas, podemos esperar efeitos teratogênicos [Tudo aquilo que é capaz de produzir dano ao embrião ou feto durante a gravidez]. É tudo muito impreciso, o que torna ainda mais assustador. Não à toa a palavra de ordem é pesquisar e monitorar cientificamente e multidisciplinarmente. Tudo com muita clareza e total transparência para desconstruir o pânico, o achismo e o alarmismo.

 

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Comentários 5

  1. Emilio Montenegro diz:

    Parabéns Gaspa ótima postura.


  2. Antônio Borge diz:

    Muito boa entrevista. O pesquisador é sensato.


  3. Edvard Pereira diz:

    O que me deixa intrigado é que após tanto tempo não foi divulgado nenhum resultado das análises das águas (ou lama), nem mesmo por algum pesquisador independente ou alguém que se interessasse pelo problema. Será que estão com medo de divulgar o que está dentro desta sujeira? Um exame destes pode ser feito em poucos dias, poucas horas. Mas até agora nada… Há um cheiro de podre no ar!


  4. Janete Marangon diz:

  5. paulo diz:

    parabéns por esta reportagem.