Reportagens

Efeito colateral de hidrelétrica, árvores centenárias morrem no leito do rio

Estudo aponta a relação da alta mortalidade de macacarecuias centenárias na Amazônia com a construção da hidrelétrica de Balbina e mudanças climáticas

Duda Menegassi ·
6 de julho de 2020 · 4 anos atrás
Os paliteiros de macacarecuias mortas ao longo do rio Uatumã. Foto: Angélica Resende

O rio é um organismo vivo e na Amazônia Central isso fica ainda mais visível ao observar os períodos de enchente e vazante, que causam disparidades de cerca de 10 metros entre o auge da cheia e da seca, numa completa transformação da paisagem. Nesse ambiente de estresse hídrico, espécies da flora se desenvolveram e evoluíram junto com esses pulsos de inundação. A espécie que talvez melhor tenha se adaptado a isso é a macacarecuia, uma árvore típica das florestas alagáveis e que se especializou tão bem aos ciclos do rio que em alguns lugares “só dá ela”. Identificada como uma das árvores mais longevas da Amazônia, com indivíduos de mais de 800 anos de idade, a adaptação que tanto favoreceu a macacarecuia saiu pela culatra quando a construção de uma hidrelétrica alterou completamente o ritmo próprio do rio e seus ciclos de cheia e seca. Uma pesquisa recém-publicada aponta que a mudança causou alta mortalidade nas florestas de macacarecuias ao longo do rio Uatumã, abaixo de onde foi erguida a hidrelétrica de Balbina, construída na década de 80, no Amazonas.

O habitat das macacarecuias pode ser considerado o próprio rio, já que, em condições naturais, elas passam cerca de 10 meses inundadas por ano. Por isso, “se acontece qualquer alteração no rio, essa espécie vai sofrer. Ela pode ser considerada um indicador de distúrbio [no rio] porque como ela está mais próxima do rio, ela é a mais intimamente ligada com o pulso de inundação, qualquer alteração no pulso vai afetar primeiro ela”, explica a pesquisadora de pós-doutorado da Embrapa Amazônia Oriental, Angélica Resende, que liderou o estudo sobre as macacarecuias no rio Uatumã e os impactos da hidrelétrica nas populações a jusante (abaixo) da hidrelétrica.

A pesquisa foi feita com apoio de pesquisadores do do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e foi publicada em junho, no periódico New Phytologist.

As macacarecuias (Eschweilera tenuifolia) pertencem à família das castanheiras, do gênero Eschweilera. “É o gênero de árvore mais bem-sucedido na Amazônia, porque existem muitas espécies e elas estão espalhadas em diferentes ambientes, desde montanhas até ambientes como o que essa espécie vive, que são as florestas alagadas”, explica Angélica. Mais especificamente os igapós, já que a macacarecuia é uma espécie que ocorre em rios de água preta, como é o caso do rio Uatumã e do rio Negro.

A relação intrínseca da árvore com o rio e seus pulsos de inundação foi diretamente afetada com a construção da hidrelétrica de Balbina. De acordo com pesquisa do Inpa, tanto em 1983, quando a barragem começou a ser construída, quanto em 87, quando foi fechada para encher o reservatório, foram observados grandes picos de mortalidade das macacarecuias do rio Uatumã, no Amazonas.

Floresta de macacarecuias vivas no Parque Nacional do Jaú. Foto: Tayane Carvalho

“A gente datou a morte desses indivíduos mortos na parte baixa da hidrelétrica e vários morreram nesse período da construção. Ou seja, elas [as macacarecuias] responderam bem rapidamente a essa perturbação. Provavelmente as que estavam mais próximas do rio foram as que reagiram primeiro e a mortalidade de árvores seguiu até 125 quilômetros após a barragem”, explica a botânica.

A construção de uma hidrelétrica envolve estudos de impacto ambiental, mas via de regra, são observados apenas os impactos da área que será alagada, acima da barragem, e não como a construção pode impactar o rio como um todo. O impacto rio abaixo, entretanto, foi visível e chamou a atenção da equipe de pesquisadores do Inpa, que constatou os enormes paliteiros no leito do rio, como são chamados as áreas onde troncos nus de árvores mortas formam verdadeiros cemitérios fluviais. “Os estudos prévios que são feitos antes de instalar uma hidrelétrica nem sequer contemplam essa parte a jusante da barragem e a maioria dos estudos científicos também só aponta os efeitos da hidrelétrica acima da barragem. Nós decidimos estudar os efeitos na parte abaixo da barragem porque era visível ao percorrer o rio a quantidade de árvore morta”, descreve Angélica. “Em toda essa parte a jusante, a gente não tem uma noção exata do tamanho do dano que a hidrelétrica causa. Estamos só começando a entender isso”.

Na topografia da margem do rio e das florestas alagadas, há aquelas árvores que ficam mais próximas do rio, situadas em níveis mais baixos do terreno, e outras que ficam mais acima. “Na parte alta do igapó, as espécies passam menos tempo inundadas, são cerca de 2 meses por ano só. Já quem está na parte de baixo, passa cerca de 10 meses do ano inundada. Ou seja, são árvores que só saem da água em média 2 meses por ano. As macacarecuias podem até ser encontradas em florestas mistas, que são essas florestas altas que alagam menos, mas são mais raras nesse ambiente. Enquanto que na parte mais baixa, onde há mais alagação, ela ocorre em monodominância, que é uma coisa rara na Amazônia, que é um bioma onde no geral há uma grande variedade de espécies ocorrendo juntas. Na monodominância, uma espécie domina mais de 50% dos indivíduos, ou seja, existe local ali que só tem macacarecuia. E por que? Porque ela é altamente adaptada. As outras espécies que vivem mais acima no igapó não conseguem sobreviver a uma inundação tamanha, por isso ela domina aquele ambiente”, conta a botânica.

Usina Hidrelétrica de Balbina em construção. Crédito: International Rivers.

Em 2019, a pesquisadora já havia publicado um artigo com uma análise espacial de onde estão os paliteiros. “Se você analisar espacialmente onde estão as macacarecuais mortas e os espaços próximos, você vê que há outras florestas e outras populações que ainda estão sujeitas à uma alta perturbação, porque o pulso de inundação do rio Uatumã, abaixo da hidrelétrica de Balbina, passou a ser totalmente irregular após a instalação da hidrelétrica. Provavelmente as espécies que estão ali, não apenas as macacarecuias, vão sofrer ainda uma maior mortalidade”, complementa Angélica.

A pesquisa também estudou as árvores vivas a partir de amostras de madeira nas quais é possível identificar os anéis de crescimento da árvore, “cada ano ela forma um anel e fica marcado ali, justamente pelo pulso de inundação”, detalha. “Quando eu verifiquei os anéis, eu vi que elas vinham crescendo num ritmo e aí, quando foi instalada a hidrelétrica, a maioria delas aumentou o crescimento. Isso ocorreu provavelmente porque ao fechar a barragem para encher a hidrelétrica, elas aproveitaram esse período seco para crescer, já que elas crescem exatamente na seca e por isso costumam crescer tão lentamente e ficam tão velhas, porque em condições naturais elas têm só 2 meses fora d’água para isso”.

“Algumas morreram e outras aproveitaram para crescer”, resume a pesquisadora. A diferença entre vida e morte pode ter sido o acesso a outra fonte de água, como um lençol freático, supõe a botânica. O “estirão” de crescimento durou cerca de 10 anos e, no início dos anos 2000, cerca de 10 anos após a conclusão da hidrelétrica, elas passaram a diminuir seu crescimento. “Essas árvores estão decrescendo em incremento de diâmetro até hoje e nós acreditamos que são as próximas a morrer. Nossa hipótese é que ainda vai ter mais mortalidade de árvores de macacarecuias e provavelmente de outras espécies também”, alerta. Nesse mesmo período, no início dos anos 2000, houve um segundo pico de mortalidade entre as macacarecuias, porém menor.

O efeito das mudanças climáticas

A ameaça ao futuro das macacarecuias no rio Uatumã não é apenas a hidrelétrica, um perigo maior – e global – também lança uma sombra de incerteza sobre o futuro das florestas de macacarecuia em toda a Amazônia Central: as mudanças climáticas.

Outra população monodominante de árvores centenárias já mortas em igapó do Rio Uatumã, a jusante da barragem hidrelétrica de Balbina. Foto: Jochen Schongart

Para poder comparar os resultados obtidos com as macacarecuias no rio Uatumã, os pesquisadores decidiram repetir a análise nas florestas alagadas do rio Jaú, no Parque Nacional do Jaú, uma área com pouca influência antrópica. “Lá também ocorrem esses macrohabitats de macacarecuias, só que ali elas não foram afetadas por hidrelétrica ou nenhum fator humano de grande impacto. Mas no Jaú, nós também vimos macacarecuias mortas, ainda que em menor quantidade”, descreve Angélica, “ou seja, as árvores também foram minimamente afetadas por algo e esse algo provavelmente são as mudanças climáticas”.

Nos últimos 100 anos, o nível mínimo médio dos rios na Amazônia Central subiu cerca de 1 metro e nos últimos 40 houve uma intensificação dos ciclos hidrológicos, que provoca cheias e secas mais extremas, e tudo isso também afeta as macacarecuias. Os períodos de mortalidade identificados no Jaú coincidiam com períodos de eventos climáticos extremos de El Niño e La Niña.

“Principalmente a La Niña, que causa na Amazônia Central um ano mais úmido, com mais chuva e mais cheia. Esses eventos climáticos extremos, que antigamente ocorriam com menor frequência e agora com o aquecimento global têm ocorrido com maior frequência, somado à influência das mudanças climáticas que estão afetando a Bacia Amazônica, com o aumento do nível mínimo médio dos rios e a intensificação dos ciclos hidrológicos, nos leva a conclusão de que essas espécies também sofrem influência climática. Lá no Uatumã, a influência é muito maior da hidrelétrica, mas também há efeitos do clima”, resume a pesquisadora.

“Com o aumento do nível do rio, elas já estão e continuarão sendo afetadas. Do lado da hidrelétrica, lá em Balbina, pode haver uma extinção local ou um colapso nos macrohabitats de macacarecuias, onde há monodominância. E claro, isso vai diminuir a longevidade local delas. Se o nível do rio continuar subindo, isso pode acontecer para toda bacia”, ressalta.

Os impactos da hidrelétrica

A história do rio Uatumã e da hidrelétrica de Balbina não é uma exceção. Nos processos de licenciamento ambiental de hidrelétricas, onde são levantados os impactos ambientais que serão causados pelo empreendimento e propostas as ações compensatórias para mitigá-los, a parte do rio a jusante da barragem na maioria das vezes nem é considerada.

Balbina: lago gigantesco, com impactos ambientais e pouca energia gerada. Foto: Alexandre Kemenes

O biólogo especialista em políticas públicas ambientais, André Aroeira, que por muitos anos trabalhou com licenciamento ambiental de hidrelétricas, explica que o dano causado à hidrelétrica à dinâmica natural de um rio é irreversível. “Quando você faz um barramento, atrapalha toda a migração de fauna que tem lá dentro e toda a dinâmica do rio, isso é irreversível. Até porque essa dinâmica de cheia e seca do rio é muito imprevisível, você não consegue fazer isso nem artificialmente se você quiser depois. Por quilômetros abaixo no rio, as espécies que estavam acostumadas a viver com o ciclo de cheia e seca, isso é perdido, completamente alterado. A árvore que esperaria 10 meses de alagamento, vai receber 5, e é um impacto grande tanto na estratégia produtiva dessa árvore quanto na estratégia reprodutiva de quem está dentro d’água, porque tem peixe que espera a cheia para ir pra terra depositar seus ovos nas raízes das árvores. É uma dinâmica muito particular. E essas coisas não entram no licenciamento. Esses impactos sobre a dinâmica hidrológica do rio são completamente subestimados, na maioria das vezes nem entram nos estudos”, reforça o biólogo.

“Acho que há uma ignorância muito grande, principalmente com essas questões de grandes rios da Amazônia, de subestimar o impacto que será causado. Eles estão preocupados com a barragem, com o tamanho do lago, com a floresta que será desmatada, mas eles não enxergam que por mais de 100 km a jusante ele vai impactar árvores centenárias e mudar toda dinâmica, é uma ignorância ecológica. E por outro lado, há pouca disposição de entender esses impactos”, continua Aroeira.

“Afeta o rio todo, afeta as florestas alagáveis e de terra firme, toda comunidade de plantas, os peixes… só que esses estudos só estão começando. Acima da barragem é muito mais bem estudado, então parece que em cima é muito maior o efeito, mas eu acredito que a gente não tenha ideia ainda de quão grande é o efeito abaixo”, alerta Angélica.

A alta mortalidade de árvores também causa outro efeito não calculado pelos estudos de impacto ambiental da hidrelétrica de Balbina: a alta emissão de metano, um dos principais gases do efeito estufa, liberados pela madeira apodrecida. Em 2013, ((o))eco produziu uma reportagem sobre o tema, leia na íntegra.

LEIA MAIS: Balbina: boa de metano, ruim de energia

Segundo Aroeira, a solução para um processo de licenciamento mais adequado começaria com órgãos ambientais mais fortalecidos, com procedimentos padronizados e com mais servidores, o que permitiria análises mais rápidas e eficientes. Além disso, um zoneamento das áreas onde os impactos ambientais sejam considerados mais viáveis para construção de empreendimentos como hidrelétricas, o que inclusive reduziria os custos do empreendedor com medidas compensatórias.

“Acho que falta ter um debate mais honesto sobre impacto de hidrelétrica, porque tem coisa que não dá para mitigar, então a gente tem que partir do pressuposto que não será mitigado. Tendo clareza de que certas obras são inviáveis por conta de tais impactos em tais regiões, como um zoneamento, você já consegue dar mais informação e clareza pro empreendedor de que naquele local, o empreendimento dele não vai sair”, conclui.

 

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  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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Comentários 1

  1. Cleveland M Jones diz:

    Por essas e outras (como mostra a matéria "Balbina: boa de metano, ruim de energia"), Balbina tem um grande valor – serve como exemplo do que não fazer. É a pior UHE do Brasil, e a que mais impactos negativos causou, proporcionalmente à sua produção.