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Um cágado de corredeiras ameaçado por águas calmas

Represamento dos rios caudalosos na região centro-sul do Brasil ameaça o cágado-de-ferradura. Projetos de novas hidrelétricas podem comprometer mais de um terço do que sobrou do seu habitat

Duda Menegassi ·
27 de junho de 2023

O cágado-de-ferradura gosta de corredeiras e águas turbulentas. Por isso, as águas paradas de represas que acompanham as hidrelétricas – tanto grandes quanto pequenas – são uma sentença de morte. As barragens alteram a dinâmica natural dos rios e, com isso, comprometem o habitat do cágado e a conectividade entre as populações. Em estudo recém-publicado, pesquisadores soaram o alarme: mais de um terço do que sobrou do habitat da espécie está ameaçado pela previsão de futuros projetos hidrelétricos.

Com cerca de 30 centímetros de casco, o cágado-de-ferradura (Phrynops williamsi) vive nas bacias do rio Uruguai e da Prata, desde o sul do Brasil até os vizinhos Paraguai, Uruguai e Argentina. Apesar da ampla distribuição, ela possui um habitat específico: os rios com corredeiras. Em especial aqueles com muitas pedras, onde podem tomar seu banho de sol – o que é essencial para sua regulação térmica.

Nas últimas décadas, seu território tem sido palco da implementação de um grande número de empreendimentos hidrelétricos. O resultado é catastrófico para os cágados. Em menos de dois meses após a construção de uma barragem, a espécie some dos reservatórios, incapaz de sobreviver nas águas represadas, lentas e muito profundas.

Na fuga da calmaria, os cágados-de-ferradura costumam se jogar dos vertedouros das barragens ou seguir pelas margens em busca de outros rios próximos que possam servir de refúgio. Depois das grandes hidrelétricas, entretanto, vieram as pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) que têm se multiplicado na região centro-sul do país e comprometido os demais rios que ainda servem de abrigo ao cágado.

A pesquisa, publicada na revista Journal of Applied Ecology é assinada por dez pesquisadores e alerta que as hidrelétricas previstas (e ainda não construídas) podem impactar 33,5% da área de distribuição estimada do cágado.

A projeção foi feita através do cruzamentos dos registros e potenciais áreas de ocorrência da espécie, com os dados de projetos hidrelétricos da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), sendo um total de 687 represas: 406 em operação, 48 em construção e 233 planejadas. Já para calcular o impacto sobre o animal, foram consideradas a perda de habitat e de conectividade entre as populações.

“Se todas as hidrelétricas forem construídas, as pequenas hidrelétricas irão impactar uma área que equivale a mais que o dobro das PCHs já em operação ou em construção. Como consequência, se todas as hidrelétricas forem implementadas, as PCHs vão impactar uma área quase tão ampla quanto as grandes hidrelétricas, e as micro hidrelétricas serão as de menor impacto”, apontam os pesquisadores no artigo. 

A espécie foi descoberta apenas em 1983 e permanece pouco estudada devido ao difícil acesso às águas turbulentas em que gosta de viver. Foto: Ivo Ghizoni

Os pesquisadores destacam que é possível desenvolver indicadores robustos dos impactos causados por um empreendimento baseado na integração entre a modelagem de nichos ecológicos, análises da conectividade hidrológica e os dados georreferenciados da ANEEL. “Esses resultados podem embasar a tomada de decisões sobre operação e expansão da matriz energética para atingir metas sustentáveis ao comparar impactos entre localidades alternativas para construção de hidrelétricas”, explicam.

A maioria das represas planejadas estão em áreas de alta e moderada prioridade para conservação da espécie. Devido ao risco que a instalação das hidrelétricas representa aos cágados-de-ferraduras, o estudo sugere que a espécie deveria ser classificada como Vulnerável à extinção no país, conforme os critérios da IUCN.

“O cágado-de-ferradura não aceita a transformação de rios caudalosos em reservatórios de águas calmas e profundas. Uma infinidade de empreendimentos hidrelétricos vem trazendo forte impacto às populações e um cenário futuro indica que a espécie deve sofrer grande efeito por fragmentação e isolamento de sua população”, alerta o biólogo Ivo Ghizoni, um dos autores do estudo.

O biólogo destaca ainda o fato de que a ciência só conseguiu descrever esta espécie em 1983. “Desde então, poucos estudos foram realizados para conhecer melhor a biologia da espécie, bem como seus requerimentos ecológicos”, conta. O motivo é justamente o habitat de águas turbulentas em que o cágado vive, muitas vezes de acesso perigoso. Isso cria uma grande lacuna de conhecimento sobre a espécie, que muitas vezes é ignorada pelos próprios estudos ambientais dos empreendimentos hidrelétricos que impactam seu habitat.

  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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