Reportagens

Empresas globais ainda estão longe do cumprimento de metas de descarbonização, aponta estudo

De 2 mil companhias de capital aberto analisadas, 98% não têm planejamento de transição energética e devem exceder metas climáticas acordadas globalmente se não mudarem trajetórias

Elizabeth Oliveira ·
2 de outubro de 2025

Distantes dos discursos de economia verde que costumam propagar, negócios de capilaridade global e alto nível de lucratividade ainda passam ao largo das práticas de descarbonização. Uma pesquisa realizada pelo TPI Global Climate Transition Centre (TPI Centre) da London School of Economics and Political Science (LSE), instituição britânica centenária de referência internacional, identificou que de um universo de mais de 2 mil empresas de capital aberto, 98% ainda não tornaram públicos planos confiáveis de descarbonização. Pelo levantamento, publicado há duas semanas, caso mantenham as trajetórias atuais, empreendimentos intensivos no uso de combustíveis fósseis devem exceder metas de estabilização climática atreladas ao Acordo de Paris nas próximas duas décadas.

Recursos para a descarbonização podem não ser o maior empecilho já que se tratam de negócios de altos níveis de faturamento e valor de mercado. Segundo a pesquisa, as empresas analisadas somam US$ 87 trilhões em capitalização e aproximadamente três quartos do total de ações listadas mundialmente. Elas se inserem em 24 setores e foram selecionadas pela expressividade tanto nesse quesito de capitalização de mercado como em pegada de carbono. Diante dos resultados, David Russell, presidente da Transition Pathway Initiative, afirmou em comunicado: “Os investidores querem evidências da transição, não apenas retórica”. 

Entre outros caminhos metodológicos adotados, a constatação de que esse coletivo empresarial tem lacunas de planejamento e implementação de ações de transição energética foi elaborada a partir de uma pontuação média de qualidade da gestão, em uma escala de 1 a 5. De acordo com essa métrica, menos de 10% das empresas atendem a qualquer um dos indicadores de nível 5. Segundo a pesquisa, os indicadores com as menores pontuações foram: A redução gradual de investimentos em ativos intensivos em carbono (abaixo de 1%) e o alinhamento com metas de descarbonização de longo prazo (2%). 

Os setores de alumínio, petróleo e gás, além de mineração de carvão são os mais desalinhados aos compromissos com a agenda de estabilização climática do Acordo de Paris, segundo o estudo. Transporte marítimo foi considerado o único abaixo da meta de 1,5 °C, horizonte mínimo de segurança do clima global, pactuado em 2015.  

A economia no olho do furacão climático

As fontes ouvidas pelo ((o))eco na repercussão desse estudo da LSE não demonstraram surpresas diante dos resultados. Nas reflexões compartilhadas, Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam), destacou questões envolvendo economia climática, campo no qual se especializou. Não por acaso, fez questão de destacar que o principal objetivo das empresas “é a maximização de lucros para a entrega aos seus acionistas”. Diante dessa máxima que rege o universo empresarial, ele observa que majoritariamente tem se sobressaído a tendência global de manutenção dos negócios como sempre foram (business as usual), enquanto de forma minoritária, se percebem algumas inovações em ESG (Governança Ambiental e Social, na sigla em inglês).

No entanto, ele pontua que há uma tendência global de que, para além das pressões de mercado, dentre as quais as já pactuadas no âmbito da União Europeia para evitar o chamado desmatamento importado, questões jurídicas devem exigir, cada vez mais dos países, tomadas de decisão em relação ao cumprimento de compromissos políticos-diplomáticos da agenda climática. Pela sua análise, isso há de repercutir na atuação empresarial, direta ou indiretamente. 

Palácio da Paz, em Haia, sede da Corte Internacional de Justiça. Foto: Yeu Ninje/Wikipédia

Um exemplo mencionado envolve o reconhecimento recente da responsabilidade dos países sobre a questão climática no âmbito da Corte Internacional de Justiça, órgão judicial da Organização das Nações Unidas (ONU) que prevê processos para a falta de engajamento nos esforços de estabilização do clima. Nessa decisão inédita, foi consensuado que as metas do Acordo de Paris são vinculantes, devendo, portanto, ser respeitadas e cumpridas pelas nações.

“Estamos caminhando para ter mais regramento de mercado. Há uma demanda global, seja de consumidores, de organizações não governamentais e de outros segmentos sociais incomodados com a inação em relação à crise planetária. O que precisamos é alinhar tudo isso com uma real mudança de comportamento. Isso representa um desafio na era do conhecimento que vivemos”, opina Bocuhy.

Outros fatores ligados às questões de interesse humano devem contribuir para uma sociedade cada vez mais atenta e exigente em relação ao papel das empresas e dos governos, segundo ele. “A mudança climática começa a alterar a percepção dos efeitos de desestabilização da vida na Terra. Mundialmente, ampliam-se os relatos de eco ansiedade nos consultórios, fenômeno psicológico que reflete o sentimento de perda de futuro”. 

No entanto, existem dilemas que os países precisam resolver e que envolvem grande complexidade na visão do presidente do Proam. Um deles se refere às inúmeras limitações relacionadas à contabilidade da geração de riquezas nacionais pelo Produto Interno Bruto (PIB), considerado um parâmetro ultrapassado. Outro, tem a ver com a própria natureza de países cujas economias giram em torno dos combustíveis fósseis, como aqueles vinculados à Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo). 

Como soluções possíveis para o cenário de crise civilizatória, ele aponta a necessidade urgente de ampliação de mecanismos de rastreamento de financiamento às atividades econômicas insustentáveis. “Temos que seguir o dinheiro. É no coração do dragão [do sistema capitalista] que mora o perigo”, alerta. Além disso, menciona a importância do fortalecimento das ações educacionais e do papel dos meios de comunicação no enfrentamento do desafio de sensibilização da sociedade, seguindo vigilantes em relação à fiscalização dos poderes constituídos.

Transição energética pode favorecer empresas brasileiras, aponta economista

O economista João Marcelo Abbud, especialista em Financiamento Climático do Instituto E+Transição Energética, também não se surpreendeu com o resultado do estudo recém-publicado. Para ele, o cenário apresentado na publicação reflete uma realidade que afeta a economia global. Isso tem gerado preocupações quanto à perspectiva de ultrapassagem do limite de segurança climática de 1,5ºC, no âmbito dos esforços de estabilização do Acordo de Paris. “Vamos ultrapassar essa margem se for mantida essa pegada de carbono”, observa.

Sobre a realidade brasileira envolvendo o setor petrolífero e a dificuldade de promover a transição energética com recursos gerados por negócios dessa indústria, Abbud menciona o panorama traçado pela Nota Técnica Renda do petróleo no Brasil: desafios, contradições e caminhos para a superação da era fóssil. Esse levantamento, divulgado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), segundo ele, derruba argumentos de que a produção de petróleo vai custear a descarbonização no país. A justificativa tem sido usada, inclusive, para o planejamento de exploração da Margem Equatorial, pela Petrobras, nessa área de altíssima vulnerabilidade socioambiental, que se estende entre os estados do Amapá e Rio Grande do Norte. Mas o mapeamento indica que uma parcela mínima do seu retorno financeiro foi destinada a ações ambientais e climáticas, no ano passado. 

Plataforma para exploração de petróleo no mar. Acima, a P-51. Foto: Divulgação Petrobras / ABr.

Segundo o levantamento do Inesc: “Em 2024, o Brasil arrecadou R$ 108,2 bilhões das chamadas “rendas do petróleo” provenientes dos royalties, participações especiais e bônus de assinatura, sendo o Pré-sal responsável por 79% desse montante. No entanto, apenas 0,16% desse total (ou R$ 168,33 milhões) foram efetivamente direcionados a ações ambientais e climáticas”. Como fatores de limitação, nesse caso, são mencionados concentração de recursos, ações judiciais e falta de regulação. 

Por outro lado, Abbud pondera que embora empresas dos setores petrolífero, siderúrgico e de produção de cimento, por exemplo, enfrentem maiores desafios para a descarbonização de suas atividades, o cenário empresarial brasileiro ainda apresenta vantagens competitivas para reduzir a sua pegada de carbono. Isso porque, diferentemente de outros países, onde as indústrias, os transportes e a produção energética estão entre os maiores emissores de Gases de Efeito Estufa (GEE), majoritariamente, as emissões brasileiras são oriundas da mudança do uso da terra, incluindo fatores de degradação como desmatamento e incêndios florestais, sobretudo, para avanço da fronteira agropecuária. 

O especialista destaca, ainda, que a descarbonização pode fortalecer ainda mais a competitividade brasileira, atraindo empresas alinhadas com o uso de energias renováveis e outros fatores associados às agendas de sustentabilidade global. Essa nova tendência de realocação de indústrias, denominada de powershoring, está mobilizando negócios mundo afora, “podendo agregar valor ao país”. Além disso, defende o fim de subsídios a setores intensivos em combustíveis fósseis, para que o Brasil possa realmente avançar em uma rota de descarbonização da sua economia.

Ele acrescenta que as propostas de construção dos controversos data centers não fazem parte desse perfil empresarial por serem altamente impactantes ambientalmente e geradores de oportunidades muito limitadas de empregos. “Estamos falando de negócios associados ao cuidado socioambiental e geradores de ciclos virtuosos de prosperidade”, reitera. “Já exportamos muitas commodities primárias, de baixo valor agregado, poluímos muito as nossas águas e desenvolvemos outros negócios de altos impactos socioambientais, em detrimento de cadeias produtivas mais limpas que poderíamos impulsionar. Na prática, os data centers representam uma lógica de não-agregação de valor”, conclui.

Entre compromissos e descolamento da agenda climática no setor empresarial

Para Claudio Angelo, coordenador de Política Internacional do Observatório do Clima, o desempenho das empresas brasileiras dificilmente será muito diferente do alcançado pelas empresas internacionais, mencionadas no estudo. Segundo ele, o atual cenário econômico, político e geopolítico global não tem favorecido avanços na iniciativa privada. “Existe um movimento mundial de recuo em relação às metas climáticas. Isso pode ser visto nos bancos e nas empresas de petróleo, especialmente depois da guerra da Ucrânia”, opina. Pela sua análise, nesse contexto, muitas corporações passaram a expressar pouca importância dada aos compromissos assumidos em relação à agenda climática e resolveram “dobrar a aposta na produção de óleo e gás”. 

Pela perspectiva de Angelo, “em grande parte, esse mundo empresarial está contando com o fracasso das metas de descarbonização”. “É triste, mas diante da falta de uma regulação mais firme dos governos, parece que as empresas estão tentando extrair o máximo que elas podem dessa economia altamente carbonizada”, observa. 

Como exemplo de que grandes empresas brasileiras não estão muito distantes da realidade das corporações globais, analisadas no recente estudo internacional, ele menciona a Petrobras, “que de uns anos para cá desinvestiu em renováveis e passou a concentrar mais investimentos em exploração e produção de óleo e gás”. Angelo acrescenta que “isso mudou um pouquinho no seu último Plano de Negócios, que salta de algo como 5% para 15%, em investimento total em coisas que não são exploração e produção de óleo e gás”, embora o seu posicionamento ainda esteja muito aquém do necessário.

Em síntese, Angelo percebe na realidade atual do setor empresarial global, “um descolamento muito forte da agenda climática, quando as empresas deveriam estar fazendo o contrário, investindo mais em transição”. Mas ele também acredita que a sociedade está atenta a esse cenário e vai cobrar mudanças de postura: “As empresas não vão poder fazer lobby para sempre para se livrar da regulação, pois os mercados consumidores vão passar a exigir delas. Elas estão tentando ganhar tempo para adiar a descarbonização que é inevitável”. 

O coordenador menciona que um exemplo na contramão do mundo vem sendo dado pela China, cujos esforços pela redução de emissões têm sido surpreendentes. O país asiático está eletrificando seus transportes e sua indústria e prometendo instalar 3.600 gigawatts (GW) de fontes renováveis, até 2035. Para dar uma ideia do que representa esse potencial, Angelo compara que toda a matriz energética brasileira conta com 200 GW de potência centralizada. “A transição vai acontecer e quanto mais cedo as empresas migrarem, menos elas vão correr riscos. Além dos riscos de imagem têm riscos judiciais e elas têm que acelerar”, opina.

Recentemente, o Observatório do Clima lançou dois estudos apontando soluções possíveis para que a Petrobras consiga avançar na sua trajetória gradativa de descarbonização e assumir a liderança como empresa de energias renováveis, futuramente. Angelo destaca que essas análises podem servir para inspirar outras companhias, cujos principais negócios envolvem a exploração e a produção de combustíveis fósseis. Nesse rol se destacam as petrolíferas estatais, incluindo as de países como México e Venezuela. “Essas são empresas que trazem muita receita para seus governos e, portanto, os governos criaram uma dependência muito grande delas”. 

Para ele, o Brasil também precisa se inspirar em exemplos como os da Colômbia, país que já decidiu parar a expansão de combustíveis fósseis, embora venha sofrendo muito nos mercados financeiros globais por isso. “O país anunciou num dia que ia interromper a expansão de fósseis e no dia seguinte o seu rating [classificação de riscos] nas agências de crédito caiu. Isso não pode acontecer. Deveria ser o contrário. Deveria ter nota subindo”. Para o jornalista de longa trajetória no acompanhamento da agenda climática global, a reação ilustra que o mercado financeiro ainda opera sob uma lógica econômica muito atrelada aos combustíveis fósseis. “Isso é muito difícil desmontar. Ainda sai muito barato para os empresários, por enquanto, escapar da transição, pois tudo lhes favorece no mercado”, conclui. 

  • Elizabeth Oliveira

    Jornalista e pesquisadora especializada em temas socioambientais, com grande interesse na relação entre sociedade e natureza.

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