Por mais de 8 mil anos, o arquipélago Moleques do Sul guardou seu segredo. Localizadas a pouco mais de 8 quilômetros de Florianópolis, estas pequeninas ilhas fazem parte do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, e não são muito conhecidas para além dos círculos de pescadores locais. Tratam-se de três formações rochosas salpicadas de grama e arbustos, um pequeno paraíso para várias espécies de aves marinhas que utilizam o lugar como sítio de nidificação, mas um lugar desimportante para a economia humana. No entanto, a maior dessas ilhas abriga, em seus meros 0,1 km2, a única população de um dos animais mais raros da Terra.
À primeira vista, o preá de Moleques do Sul, Cavia intermedia, não parece muito diferente dos demais preás brasileiros. Os primeiros grupos de pesquisadores a colocar os olhos sobre ele chegaram inclusive a confundi-lo com mais de um de seus parentes continentais, identificando-lhe como Cavia aperea em 1989 e Cavia magna em 1991. Apenas em 1999, o biólogo Jorge Cherem mostrou que os habitantes de Moleques eram, sem dúvida, uma espécie própria, com tamanho, coloração, crânios e genética bem diferentes das demais espécies de Cavia. E isso levantava uma questão um tanto interessante. Apenas encontrado numa pacata ilhota do tamanho aproximado de dez campos de futebol, o preá de Moleques era possivelmente o mamífero com a menor distribuição geográfica do planeta, o que prontamente aguçou a curiosidade de mais cientistas.
“A minha dúvida inicial era sobre como funcionava essa população de preás, como era sua ecologia”, relembra Carlos Salvador, biólogo responsável pelo primeiro estudo ecológico da espécie. “Nós já sabíamos que ela estava confinada lá há muito tempo. Não eram 10 ou 100 anos, mas cerca de 8 mil anos!” Essa foi a época em que o arquipélago se separou do continente devido à elevação do nível do mar, isolando os poucos preás de Moleques do resto do mundo. E poucos eles de fato eram. Uma das perguntas que Carlos buscava responder, juntamente com o professor Fernando Fernandez da Universidade Federal do Rio de Janeiro, era quantos preás havia em média na ilha ao longo do tempo. A resposta, publicada na revista científica Journal of Mammalogy em 2008, era 42.
É inusitado que um número tão pequeno de indivíduos consiga sobreviver isolado durante tanto tempo. Vários eventos imprevisíveis podem debilitar a população ou acabar com ela de uma só vez, incluindo acidentes ambientais, como incêndios e secas prolongadas. Fora isso, populações muito pequenas tendem à endogamia – o cruzamento entre parentes próximos – aumentando a incidência de problemas de natureza genética nos animais e reduzindo a variabilidade genética da população. De fato, tão drástica é essa redução de variabilidade no preá de Moleques que todos os animais são, na prática, como irmãos gêmeos. “São como se fossem um bando de clones,” diz Carlos. Isso deixa a espécie particularmente vulnerável à doenças e mudanças ambientais drásticas, e ainda não é bem compreendido como a espécie conseguiu persistir por tanto tempo nessa condição. O que é certo é que as instituições ambientais envolvidas na conservação do preá de Moleques não estão dispostas a correr mais riscos.
Ainda em 2008, Carlos sugeriu que Cavia intermedia fosse incluída na lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) como uma espécie criticamente ameaçada. A partir daí, o então desconhecido preá começou a ganhar notoriedade. O grupo de especialistas em pequenos mamíferos da IUCN o classificou como uma prioridade de conservação. A espécie também encontrou um lugar na lista EDGE, que identifica os animais ameaçados mais únicos do planeta em termos evolutivos, assumindo, no momento, a dubiamente honrosa posição de número 84 dentre os mamíferos do mundo. Eventualmente ela também encontrou destaque em listas nacionais e estaduais.
Aos poucos, a academia também foi se tornando mais familiar ao preá. Após os primeiros passos dados para se entender a ecologia e a genética da espécie, seu comportamento também começou a ser observado mais de perto. “Em meados de 2004, li um artigo a respeito da existência do preá e, coincidentemente, conheci o Carlos, que estava interessado em estudá-lo”, conta a pesquisadora Nina Furnari. Nina já havia estudado o comportamento de um dos parentes da espécie de Moleques, Cavia aperea, e pode ajudar Carlos com os passos iniciais de seu projeto. Mais tarde, ela mesma voltaria sua atenção para o preá da ilha. “Fiquei dois anos observando os animais na ilha, de 2007 a 2009. O preá da ilha é social, vive em pequenos grupos de até 10 indivíduos e passa a maior parte do tempo alimentando-se. Seu comportamento é parecido com o de Cavia aperea, mas por não ter muitos predadores em potencial na ilha, os animais vivem em média mais tempo, o que pode ter contribuído para que se conheçam melhor. Também vi brincadeiras em jovens e filhotes que nunca havia observado nos animais do continente.”
Por terem evoluído num ambiente quase totalmente livre de predadores – aves de rapina passando pela ilha muito ocasionalmente predam algum indivíduo – os preás também são bem menos temerosos à presença humana e de outros animais. Mas o que é realmente surpreendente a respeito do comportamento da espécie é sua variedade, mesmo quando todos os animais são tão parecidos. “Havia animais, por exemplo, que eram extremamente viciados em cair nas armadilhas onde se alimentavam de rodelas de milho, sendo capturados diversas vezes ao longo do estudo, enquanto outros só eram capturados uma vez e nunca mais, apesar de serem observados nos mesmos locais,” diz Nina. “Os animais que eram muitas vezes capturados também tendiam a ser menos assustados em relação a nossa presença.”
Após os anos de caminhada do preá de Moleques para dentro do campo de visão da academia, em 2019 algumas instituições, incluindo a própria IUCN, organizaram uma reunião para a elaboração de um plano de ação para a conservação de Cavia intermedia. A reunião aconteceu entre os dias 8 a 12 de abril, e contou com a presença de 40 pessoas envolvidas de formas diferentes com a conservação do preá, indo desde especialistas a membros de comunidades locais. Vinte e oito ações foram definidas para os próximos 5 anos, divididas em 3 frentes. A primeira dela passa pelo constante monitoramento da espécie, e à criação e execução de protocolos de pesquisa e de resposta à qualquer ameaça imediata que possa surgir. A segunda diz respeito à ações preventivas. Hoje, a espécie está vulnerável à invasão de espécies exóticas à ilha, incêndios e doenças (essa última possibilidade sendo particularmente grave devido à baixa variedade genética da população). Por causa disso, os pesquisadores estão estudando a possibilidade de se criar uma segunda população de preás em cativeiro, ou em alguma outra ilha, para garantir que alguns indivíduos sobrevivam a uma possível catástrofe. A última frente, que de forma alguma é a menos importante, é a de mobilização comunitária.
“Eu me encantei com a ideia de nossos alunos participarem de um projeto de educação ambiental, principalmente envolvendo o local onde eles vivem,” conta Jusci Vidal, diretora da escola Severo Honorato da Costa. Esse colégio, localizado na comunidade de Pântano do Sul, já vem sendo o palco de um programa de educação ambiental focado no preá de Moleques desde antes da formalização do plano de ação. “O projeto foi logo aceito pelas crianças. Como somos uma comunidade pesqueira, temos muitos filhos e netos de pescadores que já haviam ouvido sobre o preá.”
“Acho que a ação principal para conservação do preá é justamente a mobilização comunitária do entorno”, revela Carlos, que esteve à frente da organização do workshop. “Só com a comunidade participando que um plano como este pode dar certo.” E o público infantil não só é receptivo a esse tipo de mensagem, como também é uma peça chave no estabelecimento dos hábitos futuros de uma comunidade. “A turma do 6° ano, depois de aprenderem mais sobre extinção e conservação criaram um plano de ação mirim,” conta Jusci, “que vai desde bandeira com a logo do bichinho e um concurso de redação até a figura do preá como mascote da escola. Com certeza todos aprendemos muito com esse projeto em nossa escola.”
O futuro do preá de Moleques está longe de garantido, mas toda a mobilização recente em torno da espécie tem caminhado muito bem. O plano de ação foi muito bem recebido pelo IMA, órgão ambiental de Santa Catarina, que possui jurisdição sobre o Parque Estadual da Serra do Tabuleiro. “Todo o projeto depende muito do envolvimento deles,” diz Carlos. “Minha maior satisfação ao longo desse processo foi termos estabelecido um bom plano de ação, com possibilidades muito promissoras.” Com um pouco de sorte e a contínua diligência de todas as partes envolvidas na conservação dessa espécie, é bem possível que continuemos a encontrar mais ou menos 42 preás em Moleques do Sul pelas próximas décadas.
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Parabéns aos envolvidos neste projeto, que o projeto seja um exemplo para outras frentes de proteção e conservação das espécies da fauna de Santa Catarina.
Parabéns pela matéria, aqui na Escola Severo Honorato o projeto continua encantando alunos e professores.
Abraços.
Jusci Lane
Biologia da conservação, parabéns.