
O elo esquecido da transição
Como a eficiência energética pode ajudar a descarbonizar a indústria
Reportagem por Ellen Nemitz
Nem a luz da sua casa, nem os transportes: o elo mais problemático (e esquecido) da transição energética no Brasil está nas indústrias, que respondem por 31,7% do consumo de energia, segundo o Balanço Energético Nacional 2025, e representam hoje um dos principais gargalos da descarbonização no país. Isso porque 78% do consumo final de energia do setor é proveniente da energia térmica resultante da queima direta de combustíveis e utilizada para o aquecimento de fornos e caldeiras, necessárias para processos em diversos setores, como alimentos e siderúrgicas. Ou seja, neste caso não basta descarbonizar a matriz elétrica, que alimenta apenas 22% do consumo médio de uma planta industrial: é necessário criar estratégias para lidar com todo um sistema tecnológico que depende de combustíveis como gás natural, óleo diesel, lenha, carvão mineral ou biomassa, entre outros.
A indústria brasileira, que em 2024 consumiu 91,4 Mtep (milhares de toneladas equivalentes de petróleo) de energia, um aumento de 1,4% em relação a 2023, enfrenta desafios para a implementação de políticas robustas de eficiência energética, ou seja, a capacidade de fazer o mesmo – ou mais – com menos. As principais barreiras são o alto custo e a ausência de capital para investimento em novas máquinas, a falta de conhecimento ou interesse dos empresários, a carência de mão de obra especializada e a baixa regulamentação dos padrões de consumo dos equipamentos.
“Existem dificuldades de cunho técnico, para acesso a dados de mercado, de consumo e de situação tecnológica da indústria brasileira, que o governo tem tentado superar com uma maior conscientização e aproximação com os interlocutores industriais”, afirma, em nota, o Ministério de Minas e Energia (MME). “Mas o grande desafio está mais relacionado à mobilização dos investimentos privados necessários para a indústria brasileira se eficientizar, destacar a vantajosidade do investimento em eficiência energética diante de outras opções de aplicação de capital.”
Outro empecilho para o avanço dos projetos de eficiência energética nas fábricas, segundo o Gerente Sênior da equipe de Clima da CLASP, uma organização sem fins lucrativos global com ênfase em eficiência energética, Colin Taylor, é que no Brasil não há regulamento para esses equipamentos tal como existe para os nossos eletrodomésticos, que já vêm com o selo Procel (Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica) de consumo e uma categoria de A até G (sendo A os mais eficientes). Dados do Inmetro confirmam que os fornos e caldeiras movidos a combustíveis térmicos não são contemplados pelo Programa Brasileiro de Etiquetagem. O país fica atrás, assim, de outros como Estados Unidos, China e Índia, onde há regulamentos e requisitos mínimos da eficiência energética, como etiquetas (aos moldes do nosso selo Procel). “Isso [a etiquetagem] é importante não somente para eliminar caldeiras de baixa eficiência do mercado, mas também para ajudar os engenheiros da fábrica na escolha de equipamentos mais eficientes”, explica Taylor.

O problema está largamente concentrado em indústrias de pequeno e médio porte, que enfrentam os maiores custos unitários de energia e possuem o menor acesso a capital e tecnologia para investir em eficiência, criando uma barreira estrutural à competitividade e à sustentabilidade. Por outro lado, empresas consideradas de grande porte possuem acesso a tecnologias de ponta e, em muitos casos, investem recursos financeiros e humanos para o cumprimento de metas públicas de eficiência energética.
Segundo o professor da UFABC (Universidade Federal do ABC) na área de Economia da Energia e Eficiência Energética, Paulo Henrique de Mello Sant’Ana, não há nenhuma tecnologia hoje que o Brasil não tenha condições técnicas de implementar, mas nem sempre isso acontece na prática. “As grandes empresas estão na vanguarda da tecnologia porque isso significa dinheiro e competitividade e porque, em escala, os investimentos se justificam e o crédito se torna mais barato. O que acontece é que a adoção aqui às vezes é menor do que em outros países, sendo que isso varia com a questão do preço, do mercado de energia, etc.”, pondera.
Diversas empresas com alto impacto ambiental, como indústrias de alimentos e bebidas, siderúrgicas e setor químico, ao menos mencionam em seus relatórios integrados medidas de promoção da eficiência energética, como diagnósticos em sistemas de combustão de caldeiras e implementação de sistemas de monitoramento de emissões, além de uso de biocombustíveis para redução das emissões. Ainda assim, Colin Taylor afirma que as grandes indústrias não podem ser esquecidas por programas de apoio à eficiência energética do governo federal, bem como de uma necessária regulação do setor que sirva para estimular metas mais ambiciosas e compromissos formais de redução do consumo energético.
Combustíveis renováveis: trocas são benéficas, mas com atenção
A boa notícia é que o bagaço de cana surge como uma das principais fontes individuais nas indústrias (21,3%), o que mostra um potencial grande de uso de biocombustíveis, idealmente menos poluentes. O dado, segundo o professor Mello Sant’Ana, demonstra o sucesso do modelo de bioenergia do país. “O gás natural, que começou a ser mais usado nos anos 2000, é considerado um combustível de transição, muito melhor que o óleo combustível, por exemplo, que era utilizado anteriormente. Mais recentemente também temos a lenha de reflorestamento, que entra como boa opção para uso térmico”, exemplifica.
Ainda assim, a exemplo das usinas de energia eólica e solar – cujos impactos sobre biomas e comunidades vêm sendo demonstrados pela ciência –, o uso em si de energias renováveis não é necessariamente sustentável. É necessário, em cada caso, que sejam realizados estudos sobre as fontes de cada biocombustível e as emissões ocasionadas por sua queima, afirma Taylor.

Biocombustíveis são alternativas para o abastecimento energético das indústrias. Foto: Christian Tragni/Folhapress
Políticas públicas incentivam eficiência, mas metas são pouco ambiciosas
No Brasil, existem leis e programas que buscam estimular a eficiência energética desde 1984, com a criação do Programa Brasileiro de Etiquetagem, bem como a Lei de Eficiência Energética (Lei n. 10.295/01) e o Plano Nacional de Eficiência Energética 2030, o primeiro estudo de planejamento integrado dos recursos energéticos, desenvolvido entre 2005 e 2007. Iniciativas importantes se destacam, como o Procel (Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica) e o Programa Brasileiro de Etiquetagem (PBE), coordenado pelo Inmetro.
Mas alguns desafios perduram, ponderam os especialistas, como a baixa disponibilidade de informações sobre o potencial e os custos das oportunidades de eficiência, a falta de coordenação e integração institucional de diferentes iniciativas relacionadas à eficiência energética e a necessidade de criação de uma cultura de eficiência energética na sociedade.
Neste sentido, o governo federal vem investindo em ações para “apoiar a indústria na melhoria de processos”, segundo o MME. Uma destas iniciativas é o Programa Aliança, que conta com a parceria da Confederação Nacional da Indústria (CNI) para auxiliar indústrias de alto consumo energético (energointensivas) na realização de diagnósticos energéticos. O Programa Aliança é financiado com recursos do Procel e tem entre seus apoiadores a ENBPar (Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional S.A) e Abrace Energia. De acordo com a CNI, no primeiro ciclo foram atendidas 12 plantas industriais e na segunda edição o número subiu para 16 unidades.
Nas grandes indústrias, afirma a instituição, o programa “reúne especialistas, ferramentas e laboratórios capazes de identificar oportunidades de otimização” que ajudam a transpor a barreira técnica impostas pela “complexidade dos processos produtivos”, o qual exige “equipes multidisciplinares e análises detalhadas”.
Além disso, um dos projetos de maior destaque no âmbito das políticas públicas é o programa PotencializEE, focado em pequenas e médias indústrias. Com liderança do MME e cooperação internacional da alemã GIZ (Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit), o PotencializEE foi pensado para atuar inicialmente no Estado de São Paulo a partir do desenvolvimento de projetos e financiamento público e privado.
De acordo com o MME, o programa, que deve ser expandido para outras regiões do país, levando “capacitação, assistência técnica, mitigação de riscos financeiros e outras ações que visam destravar investimentos de EE industrial” para o nível nacional, tem como principal desafio a conscientização das empresas para o fato de que a eficiência energética deve ser prioritária e preceder o aumento de oferta ou consumo energético.
Até o momento, estima-se que já foram realizados 374 projetos e investidos R$ 104 milhões, com um potencial de impacto de 1010 GWh de economia de energia e uma redução de emissões de gases de efeito estufa de mais de 300 mil toneladas de CO₂ equivalente. A meta do programa é gerar uma economia de pelo menos R$ 10 bilhões e a redução de cerca de 4,5 MtCO₂e (milhão de toneladas de CO₂ equivalentes) até 2050.

Para especialistas no tema, o programa é meritório e representa um avanço nas políticas públicas brasileiras para eficiência energética. “É um programa muito importante justamente para diminuir essas barreiras para as pequenas e médias indústrias, que não é somente técnica. O PotencializEE também atua com o BNDES e outros bancos de fomento para facilitar o acesso ao crédito e combater a barreira financeira. É um programa importantíssimo e muito abrangente”, opina Mello Sant’Ana.
A avaliação de Taylor também é positiva, de modo geral, mas ele destaca que o país precisa investir de forma mais contundente em formação de mão de obra, regulamentação e fiscalização, a exemplo da China, o gigante da indústria mundial atualmente. Um problema típico, ele comenta, é que normalmente não há uma equipe responsável por eficiência energética nas fábricas, sendo que o foco dos profissionais costuma estar voltado unicamente à produção.
“Para terem sucesso, os projetos de eficiência energética precisam de um engenheiro ou outro profissional que possa avaliar e identificar as necessidades. Na China, é um requisito em empresas médias e grandes que haja esta pessoa encarregada da eficiência energética”, exemplifica. Também da China vem outra boa prática ainda não adotada no Brasil: a execução de estudos e pesquisas periódicas que possam mensurar o potencial de economia financeira e redução de emissões derivadas dos projetos de eficiência energética.
Com a proximidade do lançamento do novo Plano Clima – previsto para outubro – a eficiência energética na indústria deve ser contemplada, segundo dados fornecidos pelo MME, com metas de 2% de aumento da eficiência até 2030 e de 4 a 8% até 2035, em relação a 2024. Segundo o Ministério, a NDC 2050 serviu como uma das bases nos estudos prévios para a construção do documento. “Eu acho um pouco triste [as metas], porque normalmente nos planos da China para melhorar a eficiência energética na indústria a meta é 15 a 20% em 5 anos, e o Brasil está trabalhando com 3%”, avalia Taylor.
O professor da UFABC também avalia que o poder público tem a função de criar as condições para que essas empresas consigam adotar melhorias em eficiência energética, por meio de reformulações dos projetos que já existem e fortalecimento de programas como o PotencializEE, além do alinhamento da “política fiscal com as metas climáticas através da eliminação gradual dos subsídios aos combustíveis fósseis e fortalecer os padrões regulatórios de eficiência para equipamentos industriais”.
A CNI, que representa as indústrias, faz coro ao discurso favorável à parceria público-privada para o desenvolvimento de diagnósticos e apoio à implementação de projetos de eficiência energética industrial, estímulo ao mercado de fornecedores de produtos e serviços de eficiência energética e apoio às indústrias atendidas na submissão a financiamento. “As políticas públicas têm um papel central para que a eficiência energética ganhe escala. A atuação do governo ajuda a criar um ambiente mais previsível e favorável ao investimento. Essa interação entre indústria e governo é fundamental para ampliar os resultados.”
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