Reportagens

Ocupação indígena no Parque Estadual Cunhambebe quer retomar posse do território

Indígenas estão acampados desde quinta (12) ao lado da sede do parque fluminense, em mobilização pela retomada do seu território ancestral

Duda Menegassi ·
18 de maio de 2022 · 2 anos atrás

Na madrugada da última quinta-feira (12), um grupo de cerca de 400 indígenas montou acampamento numa área vizinha à sede do Parque Estadual Cunhambebe, no estado do Rio de Janeiro, para reivindicar a posse do território da unidade de conservação. Desde então, o grupo tem se reunido com entidades das três esferas de governo para articular suas demandas. O movimento, intitulado “Retomada Cunhambebe”, busca retomar a posse do território de valor ancestral para os Tupinambás e realizar a autodemarcação da área como Terra Indígena.

O movimento é liderado pela União Nacional Indígena (UNI). De acordo com a organização, há 32 etnias envolvidas na Retomada, de vários estados do Brasil.

O parque é um dos maiores do estado e ocupa uma área de cerca de 38 mil hectares de Mata Atlântica entre os municípios de Mangaratiba, Angra dos Reis, Rio Claro e Itaguaí, no litoral sul fluminense, região conhecida como Costa Verde. A sede do parque, vizinha ao acampamento indígena, está localizada em Mangaratiba e, apesar de ser limítrofe à área protegida, não está propriamente inserida dentro dos limites do parque estadual.

De acordo com a liderança indígena da UNI, Júnior Xucuru, entretanto, os indígenas já estariam dentro do parque. “A gente não quer ser ouvido, a gente chegou para ficar. A gente vem falando há muito tempo e nunca ninguém ouviu, agora chegamos para ficar”, afirma a liderança em conversa com ((o))eco. 

“A nossa presença ali é para mostrar que ali começa a retomada do Brasil. Queremos retomar tudo aquilo que já foi roubado de nós”, completa. Um segundo território, cuja localização ainda não divulgada pela UNI por estratégia, já estaria na mira para uma próxima reivindicação de posse indígena.

Entrada da sede do Parque Estadual Cunhambebe, em Mangaratiba. Foto: UNI/Reprodução

Cunhambebe, que dá nome ao parque criado em 2008, foi um chefe da nação Tupinambá, nascido em Angra dos Reis, que lutou contra os portugueses no primeiro século de colonização no país. A maioria dos tupinambás que viviam no estado do Rio de Janeiro foi exterminada. 

De acordo com manifesto da Direção Nacional da UNI, a organização quer inspirar “a capacidade da vontade das Nações Indígenas de se autodeterminar, segundo uma legislação moral por elas mesmo estabelecidas” e busca “alcançar na luta a Autonomia da Etnia Tupinambá”, com a autodemarcação e gestão do território a partir de suas tradições e costumes.

“O Brasil é indígena, por isso iremos retomar o que é nosso”, completa a nota da Direção Nacional da UNI.

Em nota, o Inea-RJ, órgão estadual que faz a gestão do parque afirmou que: “o Instituto Estadual do Ambiente (Inea)  reitera que os índios permanecem acampados ao lado da sede do Parque Estadual Cunhambebe, em Mangaratiba, que está localizada fora da unidade de conservação. O órgão ambiental estadual informa ainda que os indígenas ocuparam uma área que não pertence ao Estado e que o diálogo com os mesmos está sendo conduzido pela Funai. O Inea segue acompanhando a situação”.

O Inea ressalta ainda que a ocupação não afetou a rotina do parque. “A unidade de conservação encontra-se aberta à visitação e os guarda-parques continuam atuando no monitoramento dos atrativos, manejo das trilhas e demais atividades que fazem parte do cotidiano da unidade de conservação”.

A reportagem procurou a Fundação Nacional do Índio (Funai) para entender o posicionamento da entidade diante da situação e como está o diálogo com os indígenas que pleiteiam a posse do parque. Apesar de acusar o recebimento do e-mail com as perguntas a serem respondidas, a Funai não enviou nenhuma resposta até o fechamento desta edição.

De acordo com relato de um morador da região, que preferiu não se identificar, os indígenas chegaram em vários ônibus, micro-ônibus e vans por volta das três da manhã. Assim que chegaram, soltaram fogos de artifício e derrubaram o portão da sede com um carro. Dentro da área, entretanto, está um prédio do Comando de Polícia Ambiental, da 4ª Unidade de Polícia Ambiental (UPAM Juatinga). Ao ouvir os barulhos, os policiais foram de encontro aos indígenas e contiveram a entrada do grupo. Não houve nenhum disparo.

Em diálogo, os policiais orientaram os indígenas a ficarem “do outro lado da cerca”, um terreno vizinho à sede. O local, que originalmente pertencia à empresa Brascan, foi cedido à prefeitura de Mangaratiba e o próprio parque utiliza a área para acesso a um dos seus atrativos, a Trilha Curumim. Lá, os indígenas ergueram seu acampamento, com acesso controlado, conforme conta o morador da região.

Desde o início da ocupação dos indígenas já foram realizadas duas reuniões. A primeira na própria sexta-feira (13), que contou com representantes da Funai, da Secretaria Especial de Saúde Indígena e da Polícia Federal; e a segunda nesta terça-feira (17) de manhã. Na última reunião, realizada a pedido do Conselho Estadual do Direito Indígena (CEDIN), os indígenas reuniram-se com representantes da prefeitura de Mangaratiba, do Inea-RJ, além de moradores locais. A Funai, apesar de convocada, não compareceu.

Entre os pedidos feitos pelo grupo à Funai, estão o da criação de um Grupo de Apoio em defesa das Comunidades Tupinambás, que atue conjuntamente com o Conselho Nacional de Direitos Humanos do Brasil (CNDH), para garantir a proteção dos interesses e dos participantes das mobilizações de autodemarcação, para protegê-los de ações policiais “injustificadas e truculentas”.

De acordo com Júnior Xucuru, a mobilização dos indígenas não tem nenhuma filiação partidária nem apoio financeiro de nenhum político. Numa publicação em rede social, entretanto, o deputado federal David Miranda (PTD-RJ) demonstrou apoio à causa. “O David Miranda ofereceu ajuda se a gente precisar juridicamente de alguma coisa, mas não temos partido político nem recurso de político nenhum, nem do David Miranda”, reforça a liderança. 

“As pessoas estão muito iludidas de que o indígena precisa viver de esmola e de migalha dos outros, nós temos a nossa própria autonomia. Tudo isso que nós gastamos é fruto do nosso trabalho. A gasolina é do nosso bolso, as passagens são do nosso bolso, os alimentos… é tudo recurso nosso. Passamos 4 anos trabalhando e lutando para que isso acontecesse”, explica Júnior.

Reunião realizada na última sexta-feira (13) com a presença da representante da Funai. Foto: Reprodução

Ambientalistas x Indígenas?

A invasão justamente de um parque, uma unidade de conservação estadual de proteção integral, provocou um atrito incomum entre indígenas e ambientalistas. “Essa questão do querer tomar um parque, uma unidade de conservação, é colocar essa pauta ambientalista contra a pauta indígena que sempre andaram juntas”, pondera uma fonte ouvida por ((o))eco que pediu para manter seu anonimato.

Em nota divulgada à imprensa, a Associação Profissional dos Engenheiros Florestais do Estado do Rio de Janeiro (APEFERJ) afirmou que “a despeito de reconhecermos a necessidade urgente de debate e resolução das questões que envolvem nossos povos originários, reconhecemos igualmente a necessidade manter um outro patrimônio brasileiro: o Sistema Nacional de Unidades de Conservação”.

No texto, a APEFERJ destaca que, assim como os direitos indígenas, as áreas protegidas do Brasil vivem sob ataques, que foram intensificados nos últimos anos.

“Entendemos que as duas questões não são incompatíveis, e que merecem, cada qual, encaminhamentos adequados para a resolução de conflitos. Desta forma, defendemos que as reinvindicações dos ocupantes do Parque Cunhambebe sejam atendidas o mais rápido possível. Mas que o Parque se mantenha com suas funções atuais: Um Parque Estadual, Unidade de Conservação de Proteção Integral, incompatível por nossa legislação com a ocupação humana”, dizem em um dos trechos da nota.

Do lado indígena, Júnior Xucuru garante que as Terras Indígenas são as áreas que melhor preservam o meio ambiente. “Nenhum parque mantém a preservação que a gente mantém”, sentencia. 

“Nós enquanto povos indígenas somos os verdadeiros guardiões do meio ambiente e não recebemos para isso, fazemos isso de forma voluntária para a Mãe Natureza porque nós temos obrigação com a Mãe Natureza, diferente de pessoas que estão ali por cargos e salários. Para nós a maior riqueza que tem é cuidar do meio ambiente, afinal nós somos a natureza viva. Ambientalistas, somos desde nascidos. Eu desafio qualquer ser humano que seja biólogo, ambientalista a cuidar do meio ambiente melhor que o indígena”, declara a liderança indígena da UNI.

Uma nota de convocação para a reunião do dia 17/05 elaborada pela agência Uma Gota no Oceano, que atua em apoio a movimentos sociais com o desenvolvimento de estratégias de comunicação, afirma que “a ideia do movimento indígena é proteger a região, impedir o avanço do desmatamento e a entrada de caçadores na área protegida, além de combater a grilagem de terras”. E cita o projeto do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) de municipalizar a gestão das unidades de conservação nos municípios de Angra dos Reis, Paraty e Mangaratiba.

Em 2020, o Inea-RJ assinou um acordo de cooperação técnica com a empresa Vale que prevê investimentos de R$17,7 milhões nos próximos cinco anos no Parque Estadual Cunhambebe, através de doações de bens, materiais e prestação de serviços. Atualmente, além do corpo de guarda-parques, há uma equipe terceirizada pela Vale que realiza o monitoramento na área protegida.

Cachoeira Véu de Noiva, um dos principais atrativos turísticos do Parque Estadual Cunhambebe. Foto: Alan Senna/Inea-RJ

Apreensão na vizinhança

Vizinhos de porta da sede e do acampamento dos indígenas estão dois condomínios residenciais. De acordo com a fonte ouvida por ((o))eco, entre a maioria dos moradores que vivem nos arredores da sede, o clima é de apreensão, incerteza e até medo de invasão dentro do condomínio. “A situação está tranquila, mas não é tranquila, porque ninguém sabe o que vai acontecer se eles passarem pro lado de cá da cerca. É um clima tenso”, conta. Segundo a fonte, alguns moradores estão se organizando para cobrar providências na Justiça.

Em um vídeo publicado na própria quinta-feira (12) em sua página no Facebook, o prefeito de Mangaratiba, Alan Costa (PP), acalmou os moradores do município e disse que a prefeitura irá aguardar as orientações judiciais. “Não precisam ficar preocupados, eles são organizados, são pessoas do bem. Nós caminhamos lá, conversamos com alguns deles. Eles querem ter seus direitos, ter o direito a plantar…”, disse no vídeo. “Agora é aguardar a resposta do juiz”, ponderou o prefeito. 

Atualmente, na região, a única Terra Indígena (TI) reconhecida é a TI Guarani do Bracuí, habitada pelos povos Guarani e Guarani Mbya. O território de 2,1 mil hectares fica no município de Angra dos Reis.

“Os parentes de várias etnias trazem uma mensagem dos encantados de que vieram retomar o ancestral território Indígena onde viveu o Guerreiro Cunhambebe e, com isso, dar início a um processo de cura do estado do Rio de Janeiro que, por ter sido no passado um território onde ocorreu o extermínio dos povos originários que aqui viviam antes da Colonização européia e onde houve a destruição quase completa da Mata Atlântica, ainda hoje é um território marcado pela decadência econômica, degradação ambiental, violência urbana e crescente desigualdade social”, aponta o membro do CEDIN-RJ, Sérgio Ricardo Potiguara.

O Conselho tem atuado para apoiar o diálogo com os indígenas e garantir boas condições de saúde, assistência e alimentação aos participantes da mobilização.

  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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Comentários 4

  1. Eu espero que os indígenas sejam assentados em terras degradadas do entorno, onde eles podem produzir suas roças à vontade. Infelizmente vimos muitas vezes o resultado da entrada de indígenas nas unidades de conservação do sul da Bahia e norte do Rio Grade do Sul, para no falar do litoral de São Paulo e Paraná. A extinção local dos animais de maior porte se segue rapidamente, assim como a venda de madeira. As unidades de conservação não são palco para solucionar os nosso grave problemas sociais.


    1. Leandro Travassos diz:

      Falou e disse! Com a diplomacia e o respeito que o tema merece. Parabéns à Duda pela matéria e ao Everton pelo lúcido comentário. Muito bom!


  2. Israel Gomes da Silva diz:

    Se não tem apoio de partido político, quem está bancando a picanha e a bebida que a liderança está comendo todos os dias no Sahy Vilage Shopping, sendo solicitado apenas Notinhas da comida? Todos os dias um grupo de indígenas vão à praia e aí Shopping, mesmo no frio.


  3. Salvador Sá diz:

    Parabens ao Duda pela materia, me permite concluir que estamos diante de uma nova e muito grave ameaça ao q sobrou, grave pq faz uso de uma causa nobre, mas cheia de equivocos e que está enganando muita gente e não só os próprios índios. A materia fura o cerco de silencio feito pelo ambientalismo seletivo e chapa branca midiatico.