O nome Diamantina reflete riqueza, preciosidade, um adjetivo que o Parque Nacional da Chapada Diamantina (BA) carrega com justiça. Porém, se outrora o que reluzia era o ouro e o diamante, hoje o bem precioso é diferente: o turismo. A atividade turística transformou a visão dos moradores do entorno. Do extrativismo total, motivado pelo garimpo, à proteção da natureza como garantia de fonte de renda para guiar e receber visitantes na Chapada. E a joia desse tesouro são as trilhas. São 46 percursos que juntos somam uma rede com 287 quilômetros de trilhas oficialmente reconhecidas pela unidade. Um número para lá de expressivo entre os parques brasileiros.
Nada mais apropriado, portanto, do que a Chapada Diamantina ser um dos palcos escolhidos para receber uma das dez travessias organizadas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) no ano de comemoração do seu décimo aniversário. O percurso selecionado para o evento, com 17 quilômetros de extensão percorridos em um único dia, é apenas uma amostra do grande cardápio de trekkings do parque. A travessia entre o povoado de Capão, no município de Palmeiras, e a cidade de Lençóis cruza o Vale do Serrano, uma paisagem menos conhecida que o vale vizinho, o do Pati.
A realização da trilha, no dia 17 de setembro, foi também uma comemoração ao aniversário de 32 anos do parque, criado nesta exata data, em 1985. O grupo, de aproximadamente 30 pessoas, se reuniu na cidade de Palmeiras. Entre os participantes, estava a gestora da unidade, Soraya Martins, além de servidores, conselheiros, brigadistas e voluntários do parque, e guias da região.
No deslocamento feito de carro até o início da trilha, passamos pelo povoado de Capão Seco, onde ainda é possível identificar a vegetação de Caatinga arbórea. Um lembrete de que estamos em zona de domínio do bioma, apesar do parque ser um oásis em pleno sertão baiano, onde predominam o Cerrado e os campos rupestres.
Essa mistura de biomas e diferentes tipos de vegetação, somado às montanhas e chapadões milenares da Serra do Espinhaço, fazem da Chapada Diamantina única. Isso se traduz em endemismo, ou seja, espécies que ocorrem apenas naquela região. Ainda em um dos primeiros quilômetros do trekking, o botânico e analista ambiental da unidade de conservação, Cezar Neubert, avisou “esta é uma espécie endêmica da Chapada”, enquanto apontava para uma pequena flor, rosada com as pontas mais claras em formato de estrela, uma crista de galo (Spigelia pulchella). O anúncio de Cezar poderia se repetir alguma dezena de vezes ao longo do caminho, porque há registro de mais de 400 espécies de plantas endêmicas da Chapada Diamantina, com orquídeas e bromélias nas mais variadas cores, formatos e tamanhos. Na fauna, são 70 espécies endêmicas, como o beija-flor-gravatinha-vermelha (Augastes lumachellus).
De volta à travessia, o começo da caminhada segue uma estradinha de terra por cerca de dois quilômetros até que uma placa avisa que estamos entrando no território do parque e o percurso se estreita. Essa é uma trilha pouco explorada pelo turismo e alguns trechos estão mais fechados, o que dificulta a orientação. Como todas as outras trilhas do parque até então, ela não é autoguiada e não possui nenhuma sinalização além da placa na entrada. A contratação de um guia, entretanto, é opcional – ainda que recomendada. O duelo guias versus sinalização é antigo por lá. Se o parque coloca uma placa, alguns dos próprios guias removem, com medo de que isso acabe com a relevância de seu trabalho e tire sua fonte de renda. Um receio que limita a visão de que guia são apenas “mostradores de caminho”, em contrapartida a todas as outras informações que ele pode agregar a experiência.
O que não falta no percurso, por sinal, são histórias. Este é um dos antigos caminhos utilizados para o escoamento de mulas e produtos agrícolas entre os povoados, e também como meio de acesso e abastecimento dos garimpos. De acordo com a coordenadora de Uso Público do parque, Marcela de Marins, estima-se que havia cerca de 500 quilômetros de caminhos como esse. “A malha de trilhas que o parque possui hoje é proveniente dessa época”, conta a coordenadora. Essa herança dá outros contornos ao trekking, como calçamentos centenários, tocas de garimpeiros e corredores de pedra utilizadas para facilitar a busca por pedras preciosas. “Eu vejo que percorrer esses caminhos também é uma forma de manter viva esta história da ocupação da região”, pontua Marcela.
Enquanto a trilha nos conduzia para entrada do Vale do Serrano, foi impossível não nos impressionar com a paisagem. A 1.038 metros de altitude, o ponto culminante da travessia, tínhamos um visual privilegiado do início do vale, ladeado por um paredão de formações rochosas ainda mais imponentes com o efeito da neblina que fazia com que o céu invadisse a montanha.
Já havíamos andado cerca de 6 quilômetros quando fizemos a primeira parada, por volta de 11h. O local foi estratégico, às margens do córrego das noivas, onde além de um rápido lanche tivemos a oportunidade de beber água direto do rio, que corre límpido em meio às pedras. Apesar do nome, o guia Manuel me garante que a água não traz casamento, no máximo faz com que o visitante se enamore ainda mais da Chapada e “acabe ficando aqui para sempre”.
Em contraste com a aridez do interior da Bahia, na Chapada Diamantina proliferam nascentes e rios. A região abriga cerca de 80% das nascentes que abastecem o estado, entre elas a do Paraguaçu, rio baiano com mais de 600 quilômetros de extensão, e de afluentes do São Francisco. Um quilômetro e meio a frente, quando fizemos nova parada, o córrego havia se avolumado em um belíssimo rio. A largura, entretanto, não significava profundidade e o rio corria raso por cima das pedras, como um manto reluzente para rocha. A exceção era um pequeno poço, fundo o suficiente para que fosse possível mergulhar nas águas de tom avermelhado translúcidas do córrego.
Do rio, que serpenteia pelo coração do vale, foi possível observar com detalhes o conjunto de formações rochosas que nos rodeava. A Chapada Diamantina está na parte norte da vasta cadeia de montanhas da Serra do Espinhaço, com mais de 1.000 quilômetros de extensão e aproximadamente 2 bilhões de anos. O formato peculiar das rochas, fruto de longuíssimos processos de erosão por agentes naturais, é um convite a divagações sobre a delicada e paciente obra da natureza.
Pontilhando a rocha, diversas cachoeiras despretensiosamente despencavam do alto dos paredões rochosos na nossa direita até sumirem entre as árvores da encosta no sopé do morro. Uma visão espetacular que durante a época das chuvas é ainda mais pontilhada por quedas d’água. Este ano, aliás, o clima tem sido atípico por lá. Em janeiro, quando as chuvas são mais esperadas, secura total. E agora, em pleno setembro, costumeiro auge da seca, trilhávamos em um dia chuvoso, frio e nublado.
O começo do ano extremamente seco, entretanto, fez a administração do parque soar o alarme, com medo de que a falta de chuvas só se agravasse com o passar dos meses, o que colocaria o risco de incêndios nas alturas. Por isso, a unidade bateu o recorde na contratação de brigadistas, com 48 profissionais. A grande equipe para combater o fogo parece ter assustado as chamas. O parque, que está entre os que mais registra incêndios no país, está tendo uma época seca inesperadamente úmida. Enquanto outras unidades de conservação estão literalmente queimando, o clima ajudou a Chapada Diamantina a registrar – até então – um dos seus anos com menos incêndios florestais.
As chamas, entretanto, são uma preocupação constante para equipe da unidade e para população dos seis municípios do entorno: Lençóis, Andaraí, Itaetê, Mucugê, Ibicoara e Palmeiras. Além da brigada oficial, os próprios moradores se organizaram para criação de 18 brigadas voluntárias espalhadas por toda extensão da Chapada. A vontade de ajudar não se resume aos corajosos que vão enfrentar o fogo de frente. Moradora de região há quase 5 anos, Catarina é uma das voluntárias que atuam no apoio aos brigadistas, seja garantindo a alimentação do grupo, ou organizando a logística e limpeza do acampamento-base utilizado durante o combate. Ela entrou no voluntariado em 2015, quando houve o último grande incêndio na Chapada Diamantina que queimou mais de 50 mil hectares, sendo 15 mil dentro do parque nacional. “É como se estivesse pegando fogo na nossa casa e eu queria ajudar como desse. Se não fosse apagando o fogo diretamente, seria dando assistência a quem apaga”, contou Catarina, que disse ainda que essa vontade de proteger a Chapada é comum entre os moradores.
A gestora acredita que “esse sentimento de pertencimento é o principal legado que os voluntários deixam para as gerações futuras e que eles espalham em suas próprias comunidades. É a percepção de que o parque é nosso”.
Depois de cerca de 10 quilômetros de caminhada pelo alto do vale, alternando entre 900 e 1000 metros de altitude, começamos a descer com a cidade de Lençóis no horizonte, nossa linha de chegada. Esse trecho torna evidente o passado histórico da região, com muros de pedra que antigamente serviam para demarcar os domínios de exploração de cada garimpeiro, conforme conta o guia Manuel. O calçamento de pedras também é uma herança de outros tempos na Chapada, quando o garimpeiro era o protagonista desses caminhos.
Contando uma história ainda mais antiga sob nossos pés, passamos por conglomerados, rochas formadas por diversas pequenas pedras e cascalhos. Outro trabalho da natureza em uma era geológica distante que mais parece ter sido feito cuidadosamente por algum artesão habilidoso.
No meio da descida, paramos para contemplar a Cachoeirinha, uma pequena queda d’água, como indica o diminutivo no nome, que desce pela parede de rocha esculpida pela força e persistência do vento e da água. De lá, vemos a cidade de Lençóis inteira, um punhado de civilização rodeado de verde.
Quando as construções deixam de ser pontos distantes no horizonte e as perspectivas se invertem, com o verde agora uma imensidão que deixamos para trás, chegamos em Lençóis. É o fim da nossa curta, porém recheada de paisagens e histórias, jornada pela Chapada Diamantina. Apenas uma das mais de 40 opções de trilha que o parque oferece. Como frisa a gestora, “o parque é responsável por uma parte considerável da renda desses municípios por conta do turismo. E o turismo é um ponto de convergência fundamental do parque com os municípios”. Essa relação converte o turismo em uma poderosa ferramenta de conservação, porque dá relevância econômica à preservação e traz aliados, como as prefeituras, os moradores e os próprios visitantes que, inevitavelmente ao percorrer os caminhos da Chapada, se encantam e se apaixonam pelo parque. É preciso, afinal, conhecer para conservar.
Travessia Capão x Lençóis
Onde: Parque Nacional da Chapada Diamantina (BA) Distância: 17 quilômetros Pernoite? Não. A travessia é realizada em um único dia. A contratação de um guia não é obrigatória, porém como a trilha não é autoguiada, é recomendada.
|
Leia Também
Um caminho pelos significados da palavra socioambiental na Floresta Amazônica
Leia também
Uma travessia nas alturas da Serra do Cipó
Caminhada de 40 quilômetros no parque nacional revela Minas Gerais vista de cima, com sua infinitas montanhas e horizontes de imensidão →
Um caminho pelos significados da palavra socioambiental na Floresta Amazônica
Travessia de 90 quilômetros na Reserva Extrativista Chico Mendes revela outros lados e histórias da Amazônia sem maquiar a realidade cruel do desmatamento →
Chapada Diamantina está em chamas, de novo
Brigadistas e voluntários lutam desde agosto para acabar com focos de incêndio no Vale do Capão e em outros pontos do parque nacional. →
Muito linda essa travessia e muito boa a matéria. O nosso Brasil é um país incrível no que diz respeito a beleza cênica da nossa natureza. Parabéns!