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“Ou se juntam a nós ou, por favor, saiam da frente”, declara Panamá diante de esboço decepcionante do Tratado de Plásticos

Ambientalistas criticam versão de rascunho do texto final, que escancara a dificuldade de consenso entre países e deixa a desejar em decisões mais ambiciosas

Alice Martins Morais ·
29 de novembro de 2024

Busan, Coreia do Sul – Se já houve momentos em que o Brasil foi o líder nas negociações, agora é a vez dos países do Caribe e os Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento (que atendem à sigla SIDS, em inglês). Junto à União Europeia (UE), esses países têm cobrado firmemente que os países mais conservadores assumam um compromisso ambicioso até domingo (1º), quando as negociações do Tratado Global contra Poluição Plástica oficialmente se encerram em Busan, na Coreia do Sul.

Contudo, mesmo com a pressão dessas nações e de diversos movimentos da sociedade civil, a versão de rascunho do acordo, redigida pelo presidente do comitê, Luis Vayas, revela o quanto os países não conseguiram ainda nem definir o que é plástico (são sete opções de texto só para esse termo) e, segundo a organização não governamental WWF, os “países ambiciosos estão falhando com o Planeta ao fazer concessões a países que nunca aderirão a um tratado global sobre poluição plástica”, como declarou em nota.

Isso porque os Estados que possuem maior ambição, como o Panamá, que buscam um acordo que inclua cortes na produção do plástico, têm tentado dialogar com os países petrolíferos, cuja pauta vai contra seus interesses. “Não apenas estamos formando a ponte, como também estamos atravessando ela para negociar com alguns países que não se moveram um centímetro sequer desde que chegaram aqui”, declarou o chefe da delegação panamense, Juan Monterrey-Gómez, que tem sido um ator de destaque na última semana.

Sempre com discursos fortes em plenárias e coletivas de imprensa, Monterrey-Gómez é o representante especial para Mudanças Climáticas e Diretor Nacional de Mudanças Climáticas do Ministério do Meio Ambiente de seu país e também lidera as discussões do Panamá no âmbito das COPs do Clima, Biodiversidade e Desertificação. Para ele, é preciso ter clareza de que o Tratado de Plásticos não se resume apenas à gestão de resíduos. “Não podemos sair de Busan com um Tratado de Greenwashing de reciclagem”, afirmou. Na tarde desta sexta-feira (29), ao falar sobre as dificuldades de negociação com os países mais conservadores, Monterrey-Gómez concluiu com o recado: “Ou se juntam a nós ou, por favor, saiam da frente”.

Sivendra Michael, Secretário Permanente, Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, Fiji, e Juan Carlos Monterrey Gómez, Representante Especial para Mudanças Climáticas, Panamá. Foto: IISD ENB/Kiara W

O WWF também defende que os países mais ambiciosos não baixem o nível da discussão, mesmo que isso signifique fazer um acordo sem a oposição. “Os países com alta ambição devem garantir que essas medidas façam parte do texto final do tratado ou devem desenvolver um tratado ambicioso entre aqueles que estão dispostos”, diz  Eirik Lindebjerg, líder da política global de plásticos do WWF.

Michel Santos, gerente de Políticas Públicas do WWF-Brasil complementa que o texto apresentado hoje pelo presidente do comitê não reflete a ambição que mais de 100 países “têm expressado de forma clara e consistente”. “Ignorar propostas essenciais, como as relacionadas a produtos plásticos, produtos químicos preocupantes e disposições de governança, é um retrocesso preocupante em um momento em que o mundo exige ação decisiva”, critica. “Medidas voluntárias não são suficientes. Precisamos de ações juridicamente vinculantes, um financiamento robusto e mecanismos de governança eficazes para garantir o sucesso desta iniciativa histórica”, resume.

Em sua avaliação, o texto atual precisa ser mais enfático quanto aos recursos financeiros que serão mobilizados e quais serão as responsabilidades dos países desenvolvidos e produtores. “Sem um pacote financeiro robusto, as metas do tratado não poderão ser implementadas de forma justa ou eficaz”, explica.

Os delegados analisam o novo texto proposto pelo presidente do INC-5 após sua divulgação no final da tarde – Foto: IISD ENB/Kiara Worth

Entenda o novo texto que está em jogo

A discussão do Tratado é dividida em artigos, que são os tópicos que o acordo deve considerar. As delegações dos países se dividiram na última semana, desde segunda-feira (25), em quatro grupos para analisar ponto a ponto e fechar um texto referente a cada artigo. Nessa etapa, ONGs cadastradas no evento e que receberam credencial puderam observar, mas não se manifestar no processo. 

Como o ritmo estava muito lento, o presidente do comitê ouviu os facilitadores de cada grupo, reuniu-se com os líderes das delegações e decidiu ele mesmo escrever uma versão de rascunho do acordo. O texto de 23 páginas é uma tentativa de Vayas de dar celeridade ao processo, considerando que agora os países têm apenas este final de semana para bater o martelo.

Pelo texto, dá para perceber que a negociação está mais avançada em alguns tópicos, como o que diz que cada país deve facilitar uma transição justa para ter produção e consumo mais seguros e sustentáveis, considerando a situação dos catadores de recicláveis, pescadores artesanais e povos indígenas, dentre outras populações mais afetadas pela poluição plástica.

Muitos artigos, no entanto, apontam para uma questão em aberto que, na prática, faz toda a diferença: a linguagem que indica se os países “devem” ou “podem” (em inglês, os verbos shall ou may). “Acreditamos que o Tratado deva ter o máximo de shall [devem] o possível, para fortalecer o caráter de obrigação legal, de tratado vinculante. Quando se usa o may [podem] realmente enfraquece a implementação dessas medidas, tornam-se praticamente obrigações voluntárias”, explica Amy Youngman, especialista jurídica e de Políticas da Environmental Investigation Agency (EIA), uma ONG que investiga e faz campanhas contra crimes e abusos ambientais.

Em evidência, o presidente do comitê, Luis Vayas, na reunião com líderes das delegações. Foto: UNEP/Duncan Moore

Há artigos ainda com opções divergentes que devem ser escolhidas pelos negociadores até domingo, inclusive o da “cadeia de produção do plástico”. Na opção 1, abre-se a possibilidade de até mesmo excluir esse tópico do documento, enquanto que na opção 2 diz que cada país deve tomar medidas ao longo de todo o ciclo de vida dos plásticos.

O rascunho deve servir de base para, no sábado e no domingo, os negociadores poderem fazer suas contribuições e defesas até fechar o documento final. “Nem todo mundo vai ficar feliz com o que for decidido, mas agora está nas mãos do presidente decidir como vai encaminhar os próximos dias”, informa Youngman.

O que já se sabe é que agora os negociadores começam uma rodada de reuniões a portas fechadas, sem a participação de ONGs como observadores, e o resultado será apresentado em plenária. “Pelo ritmo que está, acho que as negociações vão perdurar até tarde da noite de domingo, com um texto final provavelmente sendo divulgado na segunda-feira [2º] pela manhã. Mas não dá para se arrastar muito mais do que isso. Alguns delegados precisam pegar seus voos de volta e queremos que esse seja um processo justo, no qual todos ainda estejam envolvidos”, analia Youngman.

“Nós podemos decidir depois qual a meta exata para a redução de produção, por exemplo, mas precisa ficar claro desde já que vai ter essa estratégia. Acreditamos que somente será um acordo bem sucedido se fecharmos a torneira, fazendo do plástico menos tóxico e assegurando que haja uma gestão de resíduos eficaz”, finaliza.

Biodiversidade é esquecida no Tratado de Plásticos

Embora a biodiversidade, em especial a vida marinha, seja diretamente impactada pelos plásticos (não só os seres humanos) esse tópico não recebe nenhuma menção de estratégia específica. “Há discussões nesse sentido, mesmo que não haja texto, pensando por exemplo como as atividades de limpeza de onde o plástico já está acumulado deve ser feita, de uma forma ecologicamente sensível, para garantir que essa remoção do plástico não acabe trazendo outros danos para a vida marinha”, contextualiza Falco Martin, diretor de programas de plásticos marinhos da Fauna & Flora, uma instituição beneficente internacional de conservação da vida selvagem.

Por toda a cidade, mensagens fortes destacam os impactos devastadores da poluição plástica, ao mesmo tempo em que conclamam os delegados a chegarem a um acordo ambicioso – Foto: IISD ENB/Kiara Worth

“A biodiversidade frequentemente não é vista como prioridade por muitos países, diante de tantos desafios que o tema do plástico traz, mas não deveria ser um assunto subestimado. Ter o termo ‘ecologicamente sensível’ já seria uma forma de incluir esse olhar ao texto”, complementa. 

Observando o rascunho, apesar de lamentar a falta de citações sobre biodiversidade, Martin comemora que os microplásticos foram incluídos, algo que não constava no documento anterior, o non paper que iniciou esta última sessão de negociações. “No que fizermos no âmbito deste Tratado devemos garantir que não se aumente involuntariamente a pressão sobre a biodiversidade, nem que exacerbe a degradação ambiental ou contribua para a mudança climática”, adverte.

E o Brasil?

A União Europeia, Panamá, Fiji e mais de 40 outras nações assinaram uma declaração chamada “Bridge to Busan”, meses atrás, exigindo por ações mais ambiciosas para o Tratado de Plásticos, como o congelamento ou redução de produção. O Brasil não assinou esse compromisso e também não se considera parte da coalização mais ambiciosa nem da mais conservadora, colocando-se no papel de facilitador. No entanto, uma reportagem da Agência Pública publicada revelou que internamente há divisões de ideias que podem ser barreira para posicionamentos mais arrojado do Brasil, especialmente no quesito de produtos plásticos e químicos preocupantes, justamente o tema que a ministra Maria Angélica Ikeda co-lidera nas articulações, e que é um dos principais alvos de críticas no novo texto.

Como parte da bolsa de reportagem 2024 da Internews/Earth Journalism Network, a jornalista Alice Martins Morais faz a cobertura presencial do INC-5, em Busan, Coreia do Sul, de 25 de novembro a 1º de dezembro.

  • Alice Martins Morais

    Jornalista freelancer e especialista em Comunicação Científica. Sua cobertura foca especialmente em temas relacionados ao Meio Ambiente, Ciência e Amazônia.

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